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Cultura

A música como instrumento de aprendizagem para a vida

No Acre, a música influencia na aprendizagem e interação social saudável entre pessoas de diferentes faixas etárias

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A música influencia na aprendizagem e interação social saudável entre pessoas de diferentes faixas etárias

A música aproxima pessoas de diferentes culturas e idades em prol de um mesmo objetivo. A música não é somente uma ferramenta que expressa cultura. Ela é também é um elemento que constrói pontes entre as pessoas e ajuda diretamente no desenvolvimento social e criativo.

No Brasil, abordagens educacionais por meio da música são reconhecidas por lei desde 2011 e fazem parte do currículo escolar. De autoria da então senadora Roseana Sarney (PMDB-MA), a proposta alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), determinando o aprendizado de artes nos ensinos fundamental e médio, o que abriu espaço para o desenvolvimento musical como parte do processo escolar.

No Acre, o professor e pesquisador Leonardo Feichas tem buscado expandir a cultura musical através do projeto de extensão Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas. “Pensei nesse projeto como uma colaboração para o Estado”, afirma o docente que também é doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Artes Musicais pela Universidade Nova de Lisboa (UNL) de Portugal.

Do Acre para o mundo

Atualmente, Feichas é o maior pesquisador sobre o compositor, escritor, poeta e violinista Flausino Valle. Por sua dedicação aos estudos sobre o artista, o docente da Ufac carrega consigo um dos violinos que pertenceu ao músico mineiro e que foi entregue pela família do violinista.  

Leonardo Feichas é o principal pesquisador sobre o violinista Flausino Valle na atualidade – Foto: Marxon Henrique

Portugal, Espanha, Itália, França, Suécia, Áustria e Inglaterra foram alguns dos países em que Leonardo Feichas já teve a oportunidade de vivenciar experiências musicais.  Segundo ele, nestes países tocou seu “repertório de pesquisa do repertório para violino solo brasileiro e tocando o repertório padrão do violino com padrão internacional. Eu tive a experiência de tocar com fadistas, que é algo riquíssimo. O fado é a música popular portuguesa”, relembra o docente.

Clique no play e ouça a introdução da obra musical “Devaneio”, de autoria do violinista Flausino Valle, tocada pelo professor Leonardo Feichas:

Apesar de já ter vivenciado diversos momentos na música e em diferentes países, Feichas destaca sua apresentação em Portugal como a principal de sua carreira. O recital aconteceu durante o período em que morou em Lisboa para fazer o segundo curso de doutorado. “Tive muitas oportunidades de tocar. Além disso, fui spalla, que é o principal violinista da orquestra. Fui de um grupo de música contemporânea da Escola Superior de Música de Lisboa e nessa ocasião pude tocar em palácios e castelos. Uma baita experiência em Portugal”.

Recital de violino solo apresentado pelo professor e pesquisador Leonardo Feichas, Palácio Foz em Lisboa (Portugal) – Foto: Arquivo pessoal
Apresentação com a Orquestra Contemporânea da Escola Superior de música de Lisboa, no Teatro São Carlos (Portugal) – Foto: Arquivo pessoal
Concerto de violino solo apresentado por Leonardo Feichas, na Universidade de Estocolmo (Suécia) – Foto: Arquivo pessoal

Leonardo Feichas nasceu em Minas Gerais, morou em São Paulo e em 2014 chegou no Acre, após aprovação em concurso público na Universidade Federal do Acre para o curso de Música. Na época, ele conta, que buscou entender a região e o que estava sendo desenvolvido. Foi então que percebeu a oportunidade de compartilhar seu conhecimento em aulas, projetos de pesquisa e extensão. De lá para cá já ministrou disciplinas práticas e teóricas, como também auxiliou os estudantes em trabalhos de conclusão de curso.

Em 2022, Feichas recebeu um importante prêmio acadêmico da Universidade Nova de Lisboa, pelo doutorado em Portugal. Mais conhecida como insígnia, a premiação é destinada apenas para aqueles que tiveram suas pesquisas avaliadas com valor de distinção mais alto.  A entrega aconteceu durante as comemorações do aniversário de 49 anos da instituição portuguesa. Devido a impossibilidade de se deslocar até o país europeu, a premiação foi entregue à docente Terezinha Prado, da Universidade Federal de Mato Grosso, e repassada, posteriormente, a ele. 

Leonardo Feichas com o prêmio que recebeu da Universidade Nova de Lisboa, mais conhecido como insígnia – Foto: Arquivo pessoal

Um trabalho de impacto social

Entendendo que o conhecimento desenvolvido na universidade deve ser disseminado e compartilhado socialmente, o professor Leonardo Feichas tem desenvolvido o projeto de extensão Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas em diversas escolas de Rio Branco. Além disso, o ensino coletivo de instrumentos de cordas friccionadas é benéfico para crianças, adolescentes e adultos que apreciam a música. E por se tratar de um projeto extensionista, diversos alunos têm tido a chance de aprender a tocar violino, mas também de ensinar novas pessoas.

Nágila Batista, que hoje é professora e musicista, conta como o projeto desenvolvido por Feichas contribuiu em seu dia a dia. “O projeto somou na minha vida desde minha formação inicial como musicista. Fui muito privilegiada por iniciar na música em um formato de ensino coletivo, aprender junto com outros alunos e, ao mesmo tempo, aprender a socialização”. E ela complementa: “aprender com as dificuldades dos outros, aprender repertório juntos, estar num grupo, tudo isso é o que o ensino coletivo proporciona para o aluno iniciante”.

Abaixo você pode assistir a um trecho da aula ministrada pela professora Nágila Batista, realizada no projeto de extensão Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas:

Nágila Batista, que é fruto do projeto coordenado pelo docente Leonardo Feichas, conta como foi sua caminhada para chegar até o posto de professora de violino. “Desde cedo, o projeto de ensino coletivo teve um impacto grande em minha vida e é importante retomar. Estando, agora, do outro lado, mais ou menos 20 anos após minha formação, temos uma turma de ensino coletivo e estamos tendo a chance de causar impactos na vida dos novos alunos. É uma felicidade muito grande poder trabalhar dessa forma”.

Professora universitária e médica, Valéria Paiva conta que há 20 anos se dedicava ao piano, mas teve que priorizar a medicina quando conseguiu ingressar na graduação. Com o projeto de extensão ela conseguiu retornar para a música. “A maioria é crianças e adolescentes, e tem eu de adulta, com o violoncelo. Para mim é sensacional. Costumo dizer que é o meu momento feliz da semana, primeiro porque sou apaixonada pela música, e segundo porque o professor Leonardo Feichas, junto com a professora Letícia Porto, tem um envolvimento maravilhoso. A dedicação, a forma de ensino, é apaixonante”.

Valéria Paiva junto com os professores do projeto Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas – Foto: Valéria Paiva

A médica compartilha que não tem pretensão de seguir carreira musical, se contentando em apenas continuar tendo contato com a música, por meio do violoncelo. “Eu não tenho pretensão de virar musicista profissional, mas já avancei muito e isso me deixa feliz. O meu engrandecimento pessoal é tocar em conjunto. É uma experiência muito melhor. Eu gosto muito de participar enquanto conjunto. Mesmo tenho pouco tempo para a música, busco cada vez mais melhorar minhas habilidades através do coletivo”.

Turma do projeto de extensão Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas – Foto: Valéria Paiva

Além da habilidade, que melhora cada vez mais, a médica diz ainda que as práticas servem para que ela tenha um escape da rotina estressante na medicina e docência. “Me torna melhor como pessoa. A música é o meu escape, é a minha parte feliz, é o meu escape para o estresse do dia a dia do trabalho”.

Benefícios da música na vida de crianças e adolescentes

Paulo Azevedo é pai de Asafe Meireles Azevedo e João Pedro Meireles Azevedo. Desde cedo, os dois meninos acompanham seus pais na Universidade Federal do Acre. Foi lá que eles ficaram sabendo sobre o Laboratório de Educação Musical, um projeto criado pelo curso de Música e com foco em crianças de até sete anos de idade. Os meninos se encantaram com a ideia e desde então têm se dedicado à música.

No vídeo abaixo, você assiste a um trecho de como são realizadas as aulas no Laboratório de Educação Musical:

Mostra do Laboratório de Educação Musical

Atualmente, Asafe Azevedo tem 15 anos e João Pedro Azevedo tem 13 anos, e nesse momento participam do projeto de extensão Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas. Em entrevista, os garotos relataram que estão aprendendo coisas novas por meio do projeto e agradeceram ao pai por apoiar o aprendizado e permitir que continuem aperfeiçoando as habilidades musicais.

Asafe Azevedo destaca a importância do ensino de violino, descrevendo-o como uma “experiência agradável e divertida, em que é possível aprender novas músicas”. Enquanto isso, João Pedro Azevedo reconhece a importância de se envolver com a música, especialmente com o violino.

Paulo Azevedo, pai dos dois garotos, também entende os benefícios da música para seus filhos. Segundo ele, por meio da música, os irmãos desenvolveram habilidades importantes, como trabalho em equipe, disciplina e responsabilidade, que contribuem para fortalecer os laços familiares e melhorar o desempenho escolar.

Os relatos da família Azevedo reforçam os benefícios que a música pode trazer para a vida das crianças. Além de ser uma maneira divertida de aprender, é ainda uma forma de disciplina, foco, atenção e trabalho em equipe.

Quem também segue esses passos é Ana Joyce do Carmo Gomes, que tem 11 anos. Ela ingressou no projeto de extensão quando ainda tinha quatro anos. Ao todo, são quase sete anos vivenciando o mundo de cordas friccionadas, o que já lhe resultou em importantes momentos musicais. Exemplo disso, foi sua recente participação em uma apresentação realizada no Teatro Amazonas, em Manaus (AM).  

Ana Joyce com 5 anos e em aula no projeto Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas – Foto: Arquivo pessoal

“A experiência no Amazonas foi maravilhosa, pois foi a primeira vez que toquei em um teatro fora do Acre. O teatro Amazonas é lindo e tem uma belíssima história. Poder tocar lá, junto com a orquestra da Câmara do Amazonas, foi sensacional”, relembra Ana Joyce.  

Ana Joyce com 11 anos em sua primeira apresentação no Teatro do Amazonas – Foto: Arquivo pessoal

Abaixo você confere a apresentação de Ana Joyce, realizada em 2022, na XI Semana Pedagógica de Música Sesc Acre, quando tocou no saxofone, a famosa música Careless Whisper, de Geroge Michael.

Mãe de Ana Joyce, Vânia do Carmo Nery, acompanhou de perto todo o caminho da filha e não imaginava que o projeto Ensino Coletivo de Cordas Friccionada faria a garota se dedicar tanto à música, que fosse disciplinada, não faltasse nenhuma aula e estudasse em casa. 

“A partir disso, começamos a investir.  Eu na questão do tempo e dedicação, e meu marido com a parte financeira. Dessa forma, ele comprou os instrumentos para ela, colocou para fazer outras aulas e comecei ficar de olho em outros projetos para também colocar ela. É uma coisa que vejo que ela gosta e a partir disso abriu-se oportunidades”, relata Vânia Nery. 

Hoje, a artista de 11 anos toca saxofone na banda mirim da Polícia Militar e na marcial do Colégio Militar Tiradentes. Devido às aulas de violão e guitarra que faz no Serviço Social do Comércio (Sesc), ela integra a orquestra experimental da instituição. Por meio dessas atividades, a mãe diz que a filha é uma musicista profissional e que já ganha os “cachêzinhos” com as experiências musicais.

“Ela guarda o dinheiro na poupança e tem tido a oportunidade de conhecer outras pessoas. Acredito que a música e a  disciplina a ajudou nas oportunidades, como a viagem para outro estado. A música é uma porta para ela. Uma porta para poder desenvolver e aprender mais”, finaliza Vânia Nery. 

A música é efetiva no desenvolvimento humano. A musicoterapia é exemplo disso, pois uma terapia que utiliza a música como meio de comunicação e expressão para ajudar pessoas que estão enfrentando desafios no cotidiano, sejam eles físicos, emocionais, cognitivos ou sociais. O terapeuta utiliza técnicas musicais específicas para ajudar o paciente a atingir seus objetivos terapêuticos.

A especialista em musicoterapia, Larissa Grotti, diz que música é benéfica no desenvolvimento do ser humano. “Além de ser utilizada como forma de lazer e relaxamento, a música ajuda na tensão e concentração, ela tem a capacidade de desenvolver o foco maior na aprendizagem”.

Novas parcerias

Em 2022, o projeto Ensino Coletivo de Cordas Friccionadas ganhou um reforço: a Escola de Música do Acre (Emac). De acordo com o professor Leonardo Feichas, a parceria foi possível graças ao trabalho conjunto que já realizada com a docente da Emac, Nágila Batista.

“É um trabalho relevante e desmistifica a ideia de que os instrumentos de cordas friccionados, como violino, violoncelo, viola e contrabaixo acústico, são exclusivos para pessoas que têm mais poder aquisitivo. Na verdade, não são e a parceria tem ajudado na desmistificação da eruditização em relação a esses instrumentos”, explica o coordenador geral da Emac, Afonso Portela. 

Portela também destaca o desenvolver dos alunos e a formação de futuros profissionais da música. “É um passo que está sendo dado agora, para daqui a alguns anos termos grupos profissionais de alto nível, orquestras que possam fazer concertos pela cidade, que sejam da própria escola de música, da Ufac ou do teatro daqui de Rio Branco. Eu diria que este projeto tem uma função motivadora, não só no âmbito educacional, mas também social”, acrescenta.

Ainda de acordo com o coordenador da Escola de Música do Acre, a parceria “futuramente, se tornará um ciclo, pois vão sair os frutos daqui que vão retornar pra cá, mas não mais como alunos, e sim como professores”, finaliza Afonso Portela.

Coordenador geral da Emac, Afonso Portela – Foto: Arquivo pessoal

Texto: Gabrielle Mandu, Gisele Almeida, Lucas Thadeu Lins, Maylla Oliveira e Melícia Moura

Redação

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Cultura

25 anos de histórias nas margens do rio Acre

Ser catraieiro, para Antônio Viana, é mais que uma profissão, é herança. Foto: Autores

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Por Raquel de Paula, Elis Caetano e Tales Gabriel

Entre o vai e vem das águas do rio Acre, Antônio Viana encontrou na catraia mais que um sustento: encontrou um novo rumo para a vida. Há 25 anos, depois de perder o comércio, ver portas se fecharem e a tristeza quase vencer, foi no balanço das águas, com o remo nas mãos e a tradição da família no coração, que ele se reergueu. Hoje, mesmo com pontes, carros e aplicativos de transporte ocupando o espaço de antes, Antônio segue firme: “Eu amo o que faço. É honesto, é tradição. Não tenho vergonha de dizer para ninguém que sou catraieiro.”

O ano era 2000 quando a vida de Antônio parecia encalhada. O comércio que sustentava a família havia quebrado, as dívidas se acumulavam e a situação quase o empurrou para a depressão. Foi então que um amigo lhe estendeu a mão e o convidou para trabalhar como catraieiro. O serviço era duro, das cinco da manhã às seis da tarde, por apenas oito reais ao dia. Às vezes o pagamento atrasava, outras vezes nem vinha. Mas a vida, aos poucos, voltou a se movimentar. “Eu passei um tempo difícil, quase peguei depressão. Mas foi aqui, na catraia, que eu achei um rumo de novo. Peguei gosto pelo trabalho e nunca mais larguei”, conta.

Ser catraieiro, para Antônio, é mais que uma profissão, é herança. Seu tio e até parentes distantes que foram figuras históricas da família, como o poeta e pintor Hélio Melo, também viveram do remo. A catraia foi, durante décadas, o elo que ligava margens, pessoas, mercadorias e sonhos. Antes das pontes, era nas pequenas embarcações que a cidade respirava os famosos portos. “Antigamente o porto era cheio de movimento, vinha peixe, banana, melancia, jerimum. Os ribeirinhos desciam com os batelões cheios. Hoje, o que a gente vê são só umas duas, três canoas”, afirma.

Foto: Autores

As pontes chegaram, os carros e as motos tomaram espaço, os aplicativos de transporte mudaram a rotina da cidade e a catraia perdeu seu público. O que antes era a principal forma de atravessar o Acre hoje é quase peça de museu, viva apenas nas margens onde o tempo ainda passa mais devagar. “Tem gente que diz que prefere pagar um Uber do que pagar três reais para atravessar. Mas aqui, se você chegar sem um centavo, eu levo do mesmo jeito. Quero ver se o Uber faz isso”, diz Antônio, com o orgulho de quem sabe o valor que seu trabalho carrega, mesmo quando a sociedade parece esquecer.

Mesmo com os dias de baixa, com o corpo já cansado e a saúde exigindo cuidados, Antônio insiste em permanecer. Para ele, não é apenas sobre ganhar dinheiro, é sobre significado, sobre amor àquilo que construiu sua história. “Tem gente que tem vergonha do que faz. Eu, não. Eu digo com orgulho: sou catraieiro. Tudo o que eu tenho, construí aqui, com o remo na mão e a cabeça erguida.”

Foto: Autores

Ao olhar o rio, Antônio vê um tempo que já não existe, mas que insiste em permanecer, mesmo que só na memória de quem viveu. Vê as corridas de catraieiros no 7 de setembro, os passageiros leais, a amizade que atravessa as margens junto com as embarcações. Vê também o risco de tudo isso desaparecer, engolido pelo silêncio e pela pressa de uma cidade que olha pouco para o próprio passado.

“A catraia é tradição. Podem fazer dez, cem pontes aqui, que ainda vai ter gente atravessando com a gente. O pessoal gosta, mesmo os poucos que restaram. E enquanto Deus me der força, eu continuo aqui.”

Foto: Autores

O remo corta a água devagar, levando mais um passageiro ao outro lado. Para quem olha de fora, pode parecer só uma travessia, para Antônio, é a reafirmação de uma vida inteira dedicada ao rio, ao trabalho honesto, à história de um Acre que começou sobre as águas e que, apesar de tudo, ainda respira nelas.

Redação

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Cultura

Música e identidade: jovens acreanos se constroem através dos ritmos

Do forró e reggae de fronteira ao trap, funk e MPB, a juventude do Acre encontra na música uma forma de expressão, pertencimento e resistência. Foto: cedida

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Por Ana Paula Melo e Pedro Amorim

A música que escolhemos ouvir não é apenas uma questão de gosto. Ela carrega nossas histórias, desejos, pertencimentos e até nossas contradições. No Acre, a juventude tem construído sua identidade a partir de uma combinação singular de ritmos, que vão desde gêneros tradicionais até influências contemporâneas e internacionais.

Os jovens acreanos transitam entre o forró, o brega romântico e o sertanejo universitário,  estilos que, historicamente, marcaram a cena local, e novos gêneros como o funk, o trap e até o K-pop refletem tanto suas raízes regionais quanto suas conexões com fenômenos culturais globais.

Outro estilo marcante é o chamado “reggae de fronteira”, típico das regiões próximas ao Peru e à Bolívia. Embora menos visível nos meios digitais, esse gênero ainda ressoa em festas e encontros culturais, compondo a memória afetiva de muitos jovens. Essa convivência entre o tradicional e o moderno mostra como a identidade musical juvenil no Acre é múltipla, viva e em constante transformação.

A música, nesse contexto, se transforma em ferramenta de expressão pessoal e coletiva, reafirmando a identidade desses jovens em múltiplos espaços, do bairro às plataformas globais. Paula Amanda, jornalista, cantora e já jurada de festivais de música em Rio Branco, destaca que espaços como o Mercado Velho, a Expoacre e os festivais locais ainda têm papel fundamental na formação cultural.

“A gente percebe a predominância dos jovens nesses espaços. É um lugar que influencia, sim, na identidade, porque eles estão tendo acesso de ouvir aquele repertório, ouvir aquele estilo musical e de conhecer outras pessoas que também consomem aquele estilo. Isso é de grande importância dentro dessa construção de identidade, porque eles têm alguém para se espelhar, para ter como referência”, afirma Paula Amanda.

Paula Amanda é jornalista e cantora. Foto: cedida

Ela reforça ainda que cada geração encontra na música um reflexo do seu tempo. “A geração antes de nós tinha um gênero musical que gostava e hoje os adolescentes também têm um estilo, uma identidade, um jeito de se vestir e algo para ouvir. Cada geração tem seu espaço no mundo para consumir o que gosta.”

A forma como essa música é consumida também revela muito sobre os hábitos e dinâmicas culturais dessa juventude. Segundo dados da pesquisa Cultura nas Capitais, realizada pela JLeiva Cultura & Esporte com 600 pessoas em Rio Branco entre 19 de fevereiro e 17 de maio de 2025, o celular é hoje o principal meio de acesso à música, sendo utilizado por 85% dos entrevistados. Em seguida, aparecem o som portátil (75%), o carro (41%), o rádio (33%), o computador (27%), o CD ou DVD (16%) e, ainda, o vinil (3%).

Além dos dispositivos, o uso de plataformas digitais é expressivo: 68% escutam música pelo YouTube, 44% usam o Spotify e 34% recorrem ao TikTok. Esses dados indicam que os jovens não apenas ouvem música, mas a consomem de maneira interativa. Eles compartilham faixas, criam conteúdos, remixam sons e participam ativamente das tendências que surgem nas redes sociais.

Plataformas digitais e novos sons

Abigail Sunamita, cantora, jornalista e assessora de comunicação, explica que os aplicativos mudaram completamente o acesso. “Antigamente, pra você ouvir uma música, era pela rádio, CD ou fita. Hoje, com um simples clique no Spotify ou no YouTube, a pessoa consegue acessar aquela música, colocar na playlist e o mundo inteiro pode ouvir. Isso é de grande importância porque os jovens têm o celular na mão e o acesso é imediato”, explica.

Abigail fala sobre suas experiências na música. Foto: cedida

Sobre os estilos em alta, Sunamita destaca a influência das trends digitais. “Os jovens acreanos estão sendo muito bombardeados pelas trends do TikTok. Essas músicas do auge, de gêneros diversos, muitas vezes resgatadas de tempos antigos, acabam voltando. Mas um gênero que eu percebo muito intenso na vida dos jovens é o funk, o trap e até a MPB, que tem tido um resgate muito forte”, comenta.

Rap como resistência e pertencimento

Além do entretenimento, a música também é ferramenta de resistência e de voz para os jovens, especialmente nas periferias. Kaemizê, rapper e beatmaker de Rio Branco, conta que começou ainda na escola. “A música entrou na minha vida por volta de 2014, quando ouvi ‘Linhas Tortas’, do Gabriel, o Pensador. A partir dali, senti que podia fazer rap. Foi uma grande inspiração”, explica o rapper.

Para ele, o rap cumpre uma função social importante. “Através da música eu li meu primeiro livro. O rap me trouxe essa responsabilidade de cantar algo que eu vivia, mas de forma consciente para quem está ouvindo. Isso me faz refletir até hoje sobre a mensagem que passo”, relata.

Kaemizê reforça papel social do hip-hop. Foto: cedida

O rapper também lembra que o estilo musical influencia diretamente no comportamento e na moda. “Hoje a moda streetwear faz parte da identidade do hip hop. Quando você vai numa escola fazer apresentação e o moleque te vê com uma calça larga, um tênis, isso impacta na vida de quem vê”, conclui Kaemizê.

Música Huni Kuin: ancestralidade e resistência na juventude indígena

Para os jovens indígenas do Acre, como Yubé-Warderson Rodrigues Domingos Kaxinawá, estudante de música da Universidade Federal do Acre (Ufac) e membro do povo Huni Kuin, a música é mais do que arte: é uma ponte para a ancestralidade, um espaço de resistência e uma ferramenta para ocupar espaços na sociedade. 

Ele explica como a música indígena, especialmente a Huni Kuin, contribui para a construção da identidade dos jovens e dialoga com outros estilos musicais sem perder sua essência. “A música Huni Kuin ajuda a gente a ser reconhecido, respeitado e a ocupar espaços na arte e na música”, afirma Yubé-Warderson. 

Ele destaca que os 17 povos indígenas do Acre possuem tradições musicais diversas, cada uma com sua força cultural. “Não é só o Huni Kuin. Temos referências como o Mapu, que está na mídia, gravando com artistas famosos e participando de novelas, mas há outros povos e artistas que também fortalecem nossa identidade através da música”, comenta.

Yubé-Warderson destaca importância da música para os jovens. Foto: cedida

Para ele, a música indígena carrega uma espiritualidade única, conectada aos antepassados e à floresta. “Nossas músicas falam dos elementos da natureza, pedem cura, força e paz. Não é como outras músicas que falam, por exemplo, da beleza de uma pessoa. É algo sagrado, com uma história e uma ancestralidade por trás”, destaca.

Como estudante de música na Ufac, Yubé-Warderson reflete sobre o aprendizado formal e a riqueza da música indígena. “Na universidade, aprendemos sobre ritmo, melodia, o que é considerado música no contexto ocidental. Mas, para nós, a música indígena é diferente. Ela está nos rituais, nas dietas, nos batismos, nos cantos dos anciãos e especialistas das aldeias. Nossa inspiração vem dos mais velhos, da nossa origem, não apenas de quem está na mídia”, enfatiza o estudante.

Sobre a integração da música indígena com outros estilos, ele acredita que a adaptação é natural e não compromete a força cultural. “No mundo atual, tudo se transforma, até a música indígena. Podemos usar instrumentos ocidentais, mas a essência permanece. As letras continuam espirituais. É uma criatividade que fortalece nossa resistência, porque mostramos quem somos em novos espaços, sem perder nossa história”, esclarecer.

Yubé-Warderson também destaca a importância de valorizar os artistas que vivem nas aldeias, muitas vezes invisibilizados pela mídia. “Nossa maior inspiração vem dos anciãos, dos nossos pais e tios, que cantam nas comunidades. Eles são a base da nossa música, mesmo que não apareçam na mídia. É de lá, do nosso território, que tiramos força para levar nossa cultura adiante”, destaca.

Desafios da cena musical acreana

Spartakus MC, rapper, historiador e membro do Centro Acreano de Hip-Hop, complementa a análise ao falar sobre os obstáculos de produzir música no Acre.

“A primeira dificuldade sempre foi a falta de acesso à tecnologia: estúdios, softwares, computadores. Isso era surreal há 15 ou 20 anos. Hoje melhorou, mas os equipamentos de qualidade ainda são muito caros. A gente consegue fazer muito com muito pouco”, alega o historiador.

Ele também aponta a carência de incentivo público. “Os apoios vêm por meio de editais, e nem todos conseguem chegar. O poder público incentiva pouco, e até o próprio público consome pouco o que é local”, conclui. Para ele, muitas vezes o que vem de fora é mais valorizado. E, com isso, nem todos reconhecem o valor e a qualidade da música e dos grupos locais que acompanham gerações de acreanos.

Redação

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Cultura

Rabada do Toinho: 35 anos de história

Ao manter viva a culinária típica do Acre, cozinheiro conquista turistas e moradores com sua famosa rabada no tucupi.

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Por Felipe Salgado e Leticia Vale

Ao manter viva a culinária típica do Acre, cozinheiro conquista turistas e moradores com sua famosa rabada no tucupi.

No Mercado do Bosque, um prato típico do Acre ganhou status de tradição: a rabada. Preparada há mais de três décadas por Antônio Felinto Alves,, eleviu seu nome atrelado à rabada, além de ser também o Toinho do Tacacá.

A iguaria se tornou referência gastronômica para acreanos e turistas.
Seu Antônio iniciou sua trajetória aprendendo com Dora, uma cozinheira tradicional também muito conhecida pelos acreanos. Com o tempo, decidiu seguir carreira solo e consolidar seu próprio negócio. Hoje, acumula 35 anos de experiência e 18 certificados na área gastronômica.

“Quanto mais a gente se aprofunda nos temperos, no jeito de preparar, melhor fica. O segredo da rabada perfeita é cozinhar com carinho e amor, não apenas vender por vender”, afirma.
Mesmo com décadas de tradição, Toinho também se adaptou às modernidades. O iFood tornou-se parte fundamental do negócio. “Nos tempos de friagem, chegamos a 90 ou 100 pedidos por dia. Nosso ponto forte é no aplicativo”, explica.

A fama atravessa fronteiras. Segundo ele, os turistas que chegam ao Acre procuram diretamente por seus pratos. “O pessoal, quando vem aqui, me fala que vai levar rabada para Brasília, Goiânia, Santa Catarina. Nosso sabor viaja junto com eles”, relata com orgulho.

Para o comerciante, o segredo do sucesso é manter a fé e a dedicação:“Quando o pessoal diz que está ruim, eu não concordo. Se você tem saúde e acorda enxergando, já é motivo para agradecer a Deus. O resto a gente corre atrás.”

Redação

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