Cotidiano
Tradição ou conservadorismo: quem paga a conta no primeiro encontro?
O debate “milenar” revela mais sobre as estruturas da sociedade do que você imagina
Publicado há
3 dias atrásem
por
Redação
Por Gabriela Fintelman e Natália Lindoso
Se você é um usuário de redes sociais como o Instagram e o X (Twitter), certamente já viu ou participou de debates acalorados sobre quem paga as despesas do primeiro encontro. A discussão volta e meia reaparece e assombra os corredores da internet, revelando como ainda estamos presos a certos papéis de gênero, com expectativas e tradições que insistem em resistir ao tempo.
Para muitas pessoas heterossexuais (que se atraem sexualmente pelo sexo oposto), sejam elas solteiras ou não, muitas vezes é algo natural que o homem tome a iniciativa. “É o mínimo que o homem pode fazer”, diz o diretor de audiovisual Laércio Oliveira, de 35 anos. Esse pensamento divide opiniões e resulta, muitas vezes, em debate nas redes.
O editor de vídeo Ilgner Fernandes acha que depende da intenção de quem está fazendo o convite. “Se ele quiser um relacionamento no futuro, eu acho que ele vai pensar em pagar a conta. Mas hoje em dia, com o empoderamento das mulheres e o movimento feminista, a situação está meio querendo se equilibrar, cada um está pagando a sua conta”, relata.

Henrique Damasceno, de 22 anos, bissexual e solteiro, afirma que a sua forma de lidar com a questão fianceira no primeiro encontro muda de acordo com o gênero da pessoa com quem ele está saindo. “Na questão de sair com um homem, quem convida paga o jantar, já com uma mulher muda muito. É sempre bom ser cavalheiro com a moça que está afim. Então, convidar e pagar a conta no primeiro encontro é muito importante”, disse.
A jornalista Camila Holsbach, casada há 18 anos com o também jornalista Márcio Bleiner, relata diferenças entre primeiros encontros e relacionamento sério. “Ele que pagava todas as contas no início do nosso namoro. Hoje já é uma coisa mais fluída. Por exemplo, na maioria das contas, tanto em casa quanto nas saídas, é ele quem banca. Mas se um dia do mês eu estiver afim de comer e a grana para ele está curta ou tem outras coisas que ele tem que pagar, eu pago sem problema”, diz.

A operadora de áudio Lília Moreira, de 26 anos, não vê problema em dividir a conta: “eu não me importo em dividir a conta, mas eu acho que é um cavalheirismo. Se ele convidou, então, acho que o correto seria ele pagar a conta”, avalia.
Embora não se sinta pressionado e ache que a mulher pode pagar ou dividir a conta, o repórter João Cardoso assume que até gosta de pagar em um primeiro encontro. “Eu acho que isso depende muito da iniciativa da pessoa, afinal de contas quando eu saí com a pessoa que eu estou, fui eu que chamei. Então, se eu estava chamando, eu tinha que pagar”, explica.

Padrões impostos
Nos dias atuais, com a complexidade das relações contemporâneas, que se estende para fora de um padrão tradicional, é necessário que haja espaço para novas maneiras de pensar. A pesquisadora Lisânia Ghisi, Mestre em Letras, estuda e desenvolve pesquisas sobre questões de gênero e afirma que essa binariedade que define os papéis de homens e mulheres é quase que uma lógica universalizante.
“A nossa sociedade foi constituída de discursos que carregam dualismos. Ou seja, um mundo dividido em dois: entre certo e errado, bonito e feio, homem e mulher, quem paga e quem não paga. O binarismo heteronormativo que está impregnado no nosso cotidiano”, explica Ghisi.
A pesquisadora ainda ressalta que esse padrão imposto socialmente também atinge os outros modelos de relacionamento que divergem da heteronormatividade. Ou seja, a partir da lógica histórica e cultural, relacionamentos homossexuais também podem ser afetados por essa perspectiva do “quem deve pagar a conta”. “Afinal, dentro de uma sociedade heteronormativa, quaisquer relações vão sempre partir do binarismo masculino e feminino. Consequentemente, cada pessoa terá ali, um papel ou dever a ser seguido dentro desse encontro”, acrescentou.

Conservadorismo virou tendência
A discussão sobre pagar a conta em primeiros encontros ganhou força em 2022 na Internet, quando o ator global Caio Castro viralizou ao dizer em um podcast que se sente incomodado de ter a obrigação de pagar a conta no primeiro encontro. Essa declaração gerou discussão nas redes e o artista foi duramente criticado por muitos internautas. Os desdobramentos mostraram que o conservadorismo está vivíssimo entre os jovens.
O pensamento conservador ganha força nas redes sociais através de jovens e adolescentes que reforçam padrões comportamentais tradicionais. Termos como “esposa troféu” e “macho alfa” circulam junto com uma lista de comportamentos a serem seguidos.
Lisânia Ghisi destaca que as supostas obrigações existem tanto para homens como para mulheres e o debate da “dinâmica de encontros”, no entanto, é bem mais antigo. “Há séculos, papéis de gênero são definidos, disseminados e ordenados dentro da sociedade. Assim, quando a gente diz que o homem ‘deve’ pagar a conta, seria semelhante quando alguém diz que é obrigação da mulher lavar a louça, por exemplo”.
Ghisi explica que por trás dessa ideia do “dever”, existem questões socioculturais que acompanham e influenciam diretamente a compreensão sobre o mundo das pessoas. Esse contexto histórico, social e cultural traz a ideia de que o homem fica destinado aos custos financeiros, pois trabalha e detém os recursos, enquanto a mulher espera o convite.
“Essa noção sobre papéis de gênero não abarca só encontros, as diversas dinâmicas que compõem nosso cotidiano estão entranhadas de divisões socioculturais binárias. Ou você acha que é ‘normal’, numa festinha de escola, por exemplo, os meninos ficarem responsáveis por pagar os refrigerantes, enquanto para as meninas a obrigação é de providenciar a comida, quando não a ornamentação do espaço”, diz.
Quem tá liso não namora
O pensamento conservador traz com ele a capitalização do romance. A ideia de que o homem deve sempre pagar a conta, ou que apenas uma das partes deva arcar com isso, levanta a hipótese de que quem não têm abundância de recursos financeiros não deva viver uma relação amorosa.
Bordões como “tá liso dorme” ou “se não tem dinheiro para levar a namorada para sair, não tem que namorar, tem que procurar emprego” denunciam que, além de gênero, a classe social também define quem é você no campo das relações. O amor vale muito, mas não precisa custar caro.
A discussão sobre “quem paga a conta?”, é um reflexo de desigualdades maiores presentes nas relações afetivas e sociais. A estrutura social e capitalista, com a qual a sociedade se organiza, reflete nas relações amorosas. Para a socióloga Marisol Brandt, isso também é um legado do patriarcado, que coloca o homem na posição de provedor, e a mulher na posição de quem cuida.
Para Brandt, a cultura que se constituiu sobre quem paga espelha a base da sociedade brasileira. “Essa discussão também reflete a desigualdade econômica e social. A gente não pode desvincular desse ponto. Eu penso que existe um fator histórico, que é a forma como a sociedade brasileira se organizou ao longo do tempo, profundamente desigual”, explica.

Foto: cedida
A estudante de Letras Português, Brenda Feitosa, de 22 anos, é pansexual (pessoas que não determinam com quem se relacionam por gênero) e acredita que mesmo em relações sem um homem, podem existir preconceitos, “se na teoria o homem tem que pagar a conta, sem o homem fica complicado. Mas tem outros preconceitos, digamos assim, outros estereótipos, como a pessoa mais velha, a pessoa que tem mais dinheiro, por exemplo”, diz.
Isso revela que a discussão vai além da escolha individual e está diretamente conectada a construções sociais mais amplas. Para a socióloga, essas expectativas são reflexo de uma desigualdade histórica e estrutural, marcada por um legado patriarcal e patrimonial que ainda influencia as relações afetivas atuais.
“As desigualdades econômicas e socioeconômicas podem influenciar sobre quem tem maior poder aquisitivo e também, nesse sentido, sobre quem paga. Por outro lado, também a expectativa da sociedade, a expectativa cultural pode variar de acordo com a classe social e com a raça. A expectativa sobre quem paga é sociocultural”, resume.

As definições de “primeiro encontro” foram atualizadas
Não se assuste com o barulho, esse é o som do tabu sendo quebrado. E se, ao invés de vivermos como nossos pais, vivêssemos como nossos irmãos? Aquele irmão “ovelha negra” que tem coragem de questionar, e não tem medo de remar contra a maré.
O médico Lucas Lins, de 25 anos, é homossexual e se encontra em um relaciomento sério com outro homem. Para ele, a definição de “quem paga a conta?” deve ser natural, e não é algo tão complexo quanto muitas pessoas acabam interpretando.
“Pessoalmente, não me sinto pressionado em relação a esse tema. Por exemplo, se eu convido meu namorado para sairmos, não espero que ele arque com os custos; eu pago com tranquilidade, sem qualquer problema”, relata.
Para a psicóloga Madge Porto, existe uma ideia de que não se deve discutir sobre dinheiro nas relações afetivas, o que causa um certo constrangimento. Esse ideal impregnado na sociedade é encarado como uma “quebra” do romantismo, entretanto, é necessário que cada um se posicione acerca do que espera em uma relação.
“Estamos em um momento em que há a colocação de duas referências de modelos de relacionamento, modelos conservadores e tradicionais e modelos igualitários. Cada pessoa precisa ter noção de que tipo de relacionamento pretende e que é mais positivo e saudável para apresentar o seu desejo”.

A psicóloga ressalta que, nos primeiros encontros, muitas pessoas acabam tentando adotar estratégias para agradar o outro, mesmo que isso signifique se submeter a situações desconfortáveis. No entanto, ela explica que esse esforço é temporário, já que, com o tempo, a forma como cada indivíduo realmente vive e se posiciona na vida inevitavelmente aparece.
“Que pagar ou não pagar não seja o mais importante, mas sim o que cada um está disponível para construir junto com o outro”, finaliza.
Dividir as despesas não é mesquinho, é esforço mútuo. Aceitar que paguem a sua parte não é vergonha, é saber aceitar um gesto de generosidade. Se prender a uma só “fórmula” não é só atraso, mas também limitante.
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Cotidiano
Você sabia que o e-Título foi idealizado por uma acriana?
Rosana Magalhães, hoje aposentada, trabalhou na Justiça Eleitoral desde 1994. Foto: Arquivo do TRE/AC
Publicado há
1 dia atrásem
24 de outubro de 2025por
Redação
Por Francisca Samiele e Amanda Silva
Talvez pouca gente saiba, mas uma das ferramentas digitais mais importantes da Justiça Eleitoral no Brasil foi criada por uma mulher acriana. O e-Título, versão digital do título de eleitor, que ajudou a modernizar a forma como milhões de brasileiros votam, foi idealizado por Rosana Magalhães, na época, secretária de tecnologia do Tribunal Regional Eleitoral do Acre (TRE-AC).
Considerando que até 1932 as mulheres sequer tinham direito ao voto no Brasil, é irônico pensar que tenha sido justamente uma mulher a idealizar essa tecnologia, considerada essencial para o exercício da democracia ter se tornado tão prático.

A idealizadora do e-Título
Rosana Magalhães, hoje aposentada, trabalhou na Justiça Eleitoral desde 1994 e acompanhou a evolução do sistema de votação, do papel à urna eletrônica. Como analista de sistemas, ela percebeu que o título de papel era um documento que dificultava o acesso a alguns serviços da Justiça Eleitoral e a atualização de dados para muitas pessoas.
“Ele (título) não tinha foto e não tinha dados atualizados como estado civil, grau de escolaridade, nome em caso de mudança após casamento. Era um documento estático. […] Era um papel que molhava e não tinha muita durabilidade”, explicou Rosana Magalhães. A servidora comenta que foi observando essas limitações que surgiu a ideia do e-Título, um documento digital que pudesse atualizar automaticamente informações do eleitor e simplificar processos como emissão de certidão de quitação eleitoral.

“E outra coisa que observei durante toda essa minha experiência de vida na Justiça Eleitoral é a dificuldade que as pessoas tinham em atualizar seus dados e, quando perdiam o título de eleitor, ficavam numa fila enorme perto da eleição”, relembra.
O e-Título foi lançado em dezembro de 2017 e o projeto foi desenvolvido junto ao TRE-AC após aprovação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A primeira versão, desenvolvida em cerca de 40 dias, foi disponibilizada nas lojas de aplicativos e preparada para uso nacional, sendo adotado pelos estados de forma gradual.
O e-Título é acessível para pessoas com deficiência visual, baixa visibilidade ou daltônicas e também é permite acessar vários serviços, tais como:
• Apresentação de justificativa eleitoral no dia das Eleições e após o pleito;
• Consulta ao histórico de justificativas eleitorais;
• Consulta ao local de votação;
• Emissão de certidão de quitação e de crimes eleitorais;
• Geração do Título Eleitoral em formato PDF para impressão;
• Cadastrar mesária ou mesário voluntários;
• Emissão de declaração de trabalhos eleitorais;
• Geração de código de autenticação para sistemas parceiros;
• Consulta a débitos eleitorais;
• Pagamento de eventuais débitos eleitorais por Pix ou por meio da emissão de boleto.
Veja como o título de eleitor evoluiu ao longo dos anos:




Reações às mudanças
O e-Título trouxe mudanças significativas para os eleitores. Alguns se adaptaram muito bem, mas também tem quem ainda prefere o documento à moda antiga.
Para a assistente administrativa Janara Cristina Dutra Nogueira, 37 anos, a mudança é bem-vinda. “Para mim, a maior vantagem é a praticidade. Não preciso mais andar com o título de papel, ele fica no celular. Também dá para ver meu local de votação, regularizar situação eleitoral e até justificar voto se eu estiver fora”, explica.
A pedagoga Katiane Lima, também considera a mudança um bom progresso. “O aplicativo trouxe praticidade, oferecendo acesso rápido e fácil às informações, sem necessidade de buscar documentos físicos. A transição de papel para digital trouxe mudanças de mentalidade e aprendizado necessário para usar novas tecnologias”.
Mas nem todos os usuários que passaram pela transição do papel ao digital se adaptaram completamente, como é o caso da funcionária pública Iêda Fernandes, de 69 anos. “Tenho algumas dificuldades com a tecnologia… Já utilizei em alguns momentos, mas não me senti tão segura. Para utilizar como ferramenta principal, devo aprender mais sobre as funcionalidades. Preciso me tornar mais tecnológica”.
A aposentada Junisseia Souza de Lima enfatiza sua preferência pelo título em papel: “sabe por que eu não gosto de botar no telefone as coisas? Porque às vezes a gente é roubada, basta puxar o telefone para olhar e o ‘cabra’ vem e toma. A gente não fica tranquila andando com telefone, eu não fico. Então, com a cédula de votação, é melhor papel, eu gosto. Eu não gosto de sair preocupada com o telefone, então, para evitar isso, prefiro o de papel.”
Já a professora de português Gleiciany Florêncio de Araújo, de 34 anos, sugere algumas atualizações: “Para mim, uma grande melhoria no aplicativo seria se ele também pudesse ser usado offline, porque algumas vezes o sinal da internet é fraco e não dá para entrar no aplicativo”.
Progresso
A idealizadora do projeto ressalta que o e-Título continua evoluindo e pode, futuramente, incluir funcionalidades como coleta de biometria pelo próprio aplicativo.

O e-Título trouxe benefícios para os eleitores e para a Justiça Eleitoral. Agora, muitas situações podem ser resolvidas diretamente pelo aplicativo, o que diminui filas e tempo de espera. O uso digital reduz custos com impressão de títulos e certidões, e o aplicativo pode ser usado por eleitores em qualquer lugar do Brasil ou no exterior.
“O principal impacto para a sociedade, para a justiça eleitoral e para a sociedade também é a economia que teve de muitos milhões para emissão de título eleitoral, já que não há mais necessidade de imprimir”, afirma Rosana Magalhães. E ela repete uma frase que Caetano Veloso disse no dia do lançamento do e-Título: “É incrível a força que as coisas parecem ter quando elas precisam acontecer.”
Conheça um pouco da trajetória das mulheres na luta por seus direitos políticos AQUI.
Cotidiano
O preço da identidade: a luta diária de mulheres trans no combate à violência no Acre
Publicado há
5 dias atrásem
20 de outubro de 2025por
Redação
Por: Wellington Vidal e Danniely Avlis
Em uma madrugada escura e silenciosa, enquanto trabalhava em um ponto de prostituição, Fernanda Machado da Silva, uma travesti de 27 anos, lutava para sobreviver da violência da qual havia sido vítima. Ela foi abordada por dois homens que acusaram-na de ter furtado um celular. Sem poder se defender e mesmo negando a acusação, a jovem foi vítima de uma violência brutal, espancada a pauladas, sozinha em meio a escuridão da noite, sua vida se esvaiu.
A história de Fernanda, conhecida por participar ativamente de debates sobre a violência contra a comunidade LGBTQIAPN+, reflete uma dura realidade social. Antes de ser assassinada, ela havia participado de uma campanha publicitária do Ministério Público do Acre (MPAC), ao lado da mãe, Raimunda Nonata.
Segundo o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Acre ocupa o 23º lugar no ranking de assassinatos de pessoas trans. Em 2022, 19 pessoas trans foram agredidas por dia no Brasil, segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde

Fonte: Bases de dados de agressão do Sinan

Fonte: Bases de dados de agressão do Sinan
Conforme o estudo, 64% dos casos ocorrem com mulheres trans, e 60% das travestis agredidas são negras. Em 2023, houve um aumento de 4,6% nos assassinatos de travestis e mulheres trans — 136 das 145 vítimas registradas pertenciam a essa população. Estes números evidenciam um padrão: ser travesti, mulher trans e negra aumenta exponencialmente o risco de morte no Brasil.
Dahlia Pagu, travesti, psicóloga e responsável pela Divisão de Diversidade de Orientação Sexual e Identidade de Gênero da Secretaria de Estado da Mulher do Acre (Semulher), explica que os dados sobre violência contra mulheres trans e travestis no estado são difíceis de contabilizar, sendo as principais informações provenientes dos boletins da Antra.
Pelo 16º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Os casos subnotificados evidenciam a dificuldade em noticiar e caracterizar corretamente os crimes como transfeminicídios. Além da brutalidade dos assassinatos, muitas vítimas sofrem outra violência ao serem noticiadas com o nome de batismo, o chamado nome morto, uma identidade que não reflete quem realmente são.
Dahlia também comenta sobre os desafios no enfrentamento desse tipo de violência: “O acesso ao cuidado, ao atendimento e ao amparo das mais diversas redes no que tange à escuta sensível da população trans ainda é limitado. Estamos caminhando quanto a isso, mas é preciso avançar mais, pois temos sede de vida, e vida com qualidade”, declara.
A atriz trans Brenn Souza reforça as dificuldades vivenciadas na região. De acordo com ela, trata-se de uma questão política, social e cultural que permeia a construção social do Acre. “Acredito que, acima de tudo, é um processo de construção social no território em que nos encontramos e na atual conjuntura do país e do mundo, que insiste em apagar a história e a existência de pessoas trans”, afirma.
“A violência permeia o corpo de pessoas trans em toda a sua existência”
Seja verbal, física, psicológica, sexual ou familiar, a violência está presente no cotidiano de pessoas trans que vivem à margem de uma sociedade cercada por preconceitos. Brenn compartilha parte de sua experiência pessoal.
“Já sofri violência verbal, que é a mais comum no dia a dia. É sair na rua e ouvir um erro proposital de pronome ou de nome, vindo até de pessoas conhecidas. O olhar também pode ser violento. Tenho amigas que já sofreram agressões e até foram assassinadas. A violência está presente em nossas vidas e redes de afeto. Nossos corpos vivem em constante processo de receber violência por parte da sociedade”.
Dahlia reforça que também vivencia a violência diária por ser travesti, mesmo com privilégios que não a imunizam. “Relatar violências é revivê-las, e isso não é confortável. É sofrido saber que, por mais que não desejemos, nossas trajetórias acabam sendo marcadas por essas dores. Precisamos trabalhar para modificar essa cultura que age contra corpos trans”, conclui.

Dahlia Pagu é responsável pela Divisão de Diversidade de Orientação Sexual e Identidade de Gênero da Semulher. Foto: Kauã Cabral/ Semulher
Um local de acolhimento e combate contra a violência
No Acre, a Semulher atua como ponto estratégico para acolhimento, suporte e enfrentamento das violências direcionadas a mulheres, incluindo mulheres trans e travestis. Reimplantada oficialmente em 1º de março de 2023, a instituição, tem entre suas competências, promover políticas públicas de igualdade de gênero, assistência social, proteção e educação para eliminar discriminações.
Para qualificar este trabalho, recentemente, no último dia 25 de julho, a Semulher lançou a segunda edição da cartilha Sou A Travesti, Existo!, que vem sendo distribuída em centros comerciais e espaços públicos em Rio Branco, Brasiléia e Cruzeiro do Sul.
A cartilha aborda identidade de gênero, cidadania, enfrentamento à transfobia e direitos fundamentais. A iniciativa inclui distribuição em locais como o Mercado Municipal Elias Mansour e o Shopping Aquiry, com o objetivo de sensibilizar servidores, comerciantes e a comunidade em geral para a existência e o respeito às mulheres trans e travestis.
No lançamento da cartilha, a secretária da Mulher, Márdhia El-Shawwa Pereira, destacou que o documento é educativo e um instrumento de empoderamento que evidencia que a expectativa de vida de pessoas trans no Brasil gira em torno de 35 anos. Ela reitera ainda que essas mulheres precisam ser reconhecidas, protegidas e respeitadas. “A cartilha tem um caráter transformador e visa sensibilizar diferentes setores sociais para os prejuízos causados por discriminações que, muitas vezes, escalam para violência”, afirma.
Para Dahlia Pagu, a cartilha reforça o compromisso ético da instituição em cuidar dessa população com seus afetos, dores, sonhos e histórias e afirma que tais políticas são centrais não só para informar, mas para demonstrar que mulheres trans e travestis não estão só, que há respaldo institucional e social para sua existência.
De acordo com a representante do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), Antônia Rodrigues, o principal objetivo da cartilha é, justamente, a inclusão. “É um programa importante e é um trabalho bonito que a Semulher vem fazendo. Isto porque todas as mulheres vão saber que estão sendo resguardadas e que não estão sozinhas, que podem contar com a Secretaria da Mulher e com o governo do Estado”, diz.
A ideia é que a secretaria não atue só como símbolo institucional, mas como ponte entre indivíduos em situação de vulnerabilidade e as redes de atendimento (jurídico, psicológico, social). A cartilha Sou a Travesti, Existo! passa a integrar essa estratégia, fortalecendo o discurso institucional de que mulheres trans e travestis não estão sozinhas e que há respaldo público e educativo para sua existência.
Luzes do Arco-Íris: O cinema como forma de denúncia

Auditório do Cine Teatro Recreio durante a exibição do documentário Luzes do Arco- Iris. Foto: Reprodução de redes sociais
Por meio da Lei Paulo Gustavo, com incentivo do Governo do Acre e promoção da Fundação Elias Mansour (FEM), o caso de Fernanda inspirou o curta-metragem Luzes do Arco-Íris, dirigido por Ivan de Castela e produzido pelo Instituto Social, Cultural e Esportivo Malucos na Roça. O filme estreou no último dia 5 de fevereiro, no Cine Teatro Recreio.

Cartaz do espetáculo Luzes do Arco-íris. Foto: Divulgação
“A obra tem como proposta, além da denúncia, promover momentos de fala, discussão e entendimento da vida das travestis em Rio Branco. O objetivo maior é construir uma obra cinematográfica que discuta essas questões a partir do lugar de fala das próprias travestis, entrevistadas no documentário, junto à reprodução da cena da morte da Fernanda”, explica o diretor.
Faces distópicas

Atriz Brenn Souza no espetáculo Faces Distópicas. Foto: cedida
Em meio à pandemia, quando Fernanda foi brutalmente assassinada, na noite de 25 de junho de 2020, Brenn, que na época estava morando fora do Acre, se vê em profunda revolta, raiva e sede de justiça pela morte da amiga. É a partir disso que ela escreve e dá vida ao espetáculo Faces Distópicas, como forma de eternizar a memória de Fernanda.
“Diante desse acontecimento eu sinto a necessidade de escrever e dar vida a esse espetáculo, estando nele como atriz, dramaturga e co-diretora, para justamente manter viva a memória de Fernanda, para que as pessoas lembrem-se de quem foi Fernanda, através de uma narrativa que brinca com a realidade e ficção, retratando especificamente as faces da distopia social para com os corpos trans/travestis. A sociedade que sempre nos aponta, nos coloca como margem, como pessoas que merecem ser mortas na guilhotina ou até linchadas em praça pública”, declara a atriz.
Um futuro de respeito e uma vida após os 35 anos
Segundo a Antra, a expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é de apenas 35 anos. A esperança é que essa realidade mude e que a sociedade caminhe rumo ao respeito e à dignidade.
“Que possamos ter dignidade de vida, cuidado, atenção, afeto e segurança. Nossas histórias não precisam ser marcadas puramente por violências. Que possamos relatar conquistas, e não apenas sangue em nosso caminhar. Espero ver travestis, mulheres trans e pessoas trans ocupando os espaços que desejarem, sem que suas vidas sejam marcadas pela baixa expectativa”, enfatiza Dahlia.
O futuro depende da construção de uma sociedade que respeite a existência e garanta direitos básicos como segurança, trabalho e dignidade. “Queremos viver, não apenas sobreviver. Queremos contar nossas histórias sem que elas sejam marcadas por sangue e dor. Que possamos ocupar todos os espaços sem medo”, conclui Brenn.
Cotidiano
Aquífero do Segundo Distrito de Rio Branco: riqueza invisível sob ameaça urbana
Estudos recentes apontam que o aquífero ocupa uma área de 122,46 km². Foto: cedida
Publicado há
2 semanas atrásem
13 de outubro de 2025por
Redação
Por Júlio Queiroz e Karina Paiva
No subsolo do Segundo Distrito de Rio Branco está uma das maiores reservas estratégicas de água da capital acreana: o Aquífero Rio Branco. Pesquisadores da Universidade Federal do Acre (Ufac), como Evandro José Linhares Ferreira, Alexsande de Oliveira Franco, Frank Arcos e Jessiane Pereira, têm alertado sobre a importância desse manancial subterrâneo, e destacando que ele possui alta vulnerabilidade à contaminação em razão da ocupação urbana desordenada e da falta de saneamento básico.

Estudos recentes apontam que o aquífero ocupa uma área de 122,46 km², abrangendo os seguintes bairros: Loteamento Praia do Amapá, Taquari, Comara, 6 de Agosto, Santa Inês, Loteamento Santa Helena, Loteamento Santo Afonso, Belo Jardim 1 e 2, Cidade Nova, Santa Terezinha, Residencial Rosa Linda, Vila da Amizade, Vila Acre, Mauri Sergio, Areal, Vila do Dner e Quinze, e possui capacidade de abastecer mais de 3,2 milhões de pessoas com 200 litros de água por dia.
Ainda assim, apenas cerca de 7% de sua descarga natural é utilizada atualmente para o consumo humano. Para os pesquisadores da Ufac, a ausência de políticas públicas efetivas coloca em risco a qualidade da água, já que análises laboratoriais têm identificado contaminação por nitratos, coliformes e metais como ferro e manganês.
O poder público municipal, por sua vez, tem divulgado avanços em projetos de captação subterrânea, mas sem execução plena. Em 2012, a imprensa local noticiou a realização de estudos preliminares, e em 2019 a Prefeitura anunciou que avançava em planos para aproveitar o potencial hídrico do aquífero. Já em 2014, o Governo do Estado divulgou que a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) continuaria o plano de exploração, mas até hoje a utilização em larga escala não saiu do papel.
Esse contraste entre a urgência apontada pelos pesquisadores e a morosidade administrativa revela o desafio de transformar ciência em política pública.
Potencial e desafios
De acordo com o modelo de gestão elaborado pela CPRM em 2010, a recarga anual do Aquífero Rio Branco é de aproximadamente 587 mm/ano, com rápida recuperação dos poços (em até uma hora). Isso torna o manancial um recurso estratégico, capaz de complementar o abastecimento em períodos de estiagem do Rio Acre.
Pesquisadores x Poder Público
Enquanto pesquisadores da Ufac defendem o monitoramento constante e o uso controlado do aquífero, a Prefeitura de Rio Branco e o governo do Acre têm enfatizado a continuidade dos estudos, mas sem definir prazos concretos para exploração sustentável.
Essa divergência evidencia a necessidade de integração entre ciência e gestão pública, de forma a garantir segurança hídrica para as futuras gerações.

Foto: cedida
A CPRM é uma empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, responsável por produzir e divulgar informações geológicas, hidrológicas e ambientais do território brasileiro.
No caso do Aquífero Rio Branco, a CPRM foi a instituição que realizou estudos técnicos de mapeamento, testes de bombeamento e modelagem hidrogeológica, servindo de base para o Plano de Manejo do Aquífero citado.
Em resumo: a CPRM é quem faz a “radiografia do subsolo” e fornece dados científicos para que estados e municípios consigam planejar a exploração sustentável da água subterrânea.
Outro entendimento
O diretor-presidente do Saerb, Enoque Pereira de Lima, explicou que não há comprovação da existência de um aquífero em Rio Branco, mas sim um lençol freático raso capaz de atender demandas residenciais e comerciais em pequena escala.
Segundo ele, estudos realizados até 400 metros de profundidade não identificaram aquífero, apenas pontos de água confinada de difícil recarga, com capacidade de renovação anual de cerca de 20%. Para verificar a viabilidade, o Saerb pretende perfurar três poços profundos — dois no Segundo Distrito e um no Panorama — avaliando volume, qualidade da água e resistência do solo, podendo expandir as perfurações caso os resultados sejam positivos.
Sobre o abastecimento, Enoque destacou que a cidade depende integralmente do Rio Acre, cuja turbidez e sazonalidade dificultam o tratamento, sobrecarregando o sistema no período seco.
A produção atual das duas ETAs é de até 1.600 litros por segundo, mas falhas em bombas, motores e adutoras causam intermitência em determinados bairros, especialmente no Segundo Distrito, totalmente dependente da ETA 2.
O dirigente ressaltou ainda o alto desperdício doméstico e a falta de conscientização dos moradores como fatores que agravam a escassez, reforçando que, em situações críticas, a prioridade é garantir água para hospitais e unidades de saúde.
Invisível aos olhos dos moradores, o Aquífero Rio Branco pode ser a chave para garantir segurança hídrica à capital acreana. Mas, se por um lado representa abundância, por outro traz o alerta: sem gestão integrada e responsável, esse tesouro subterrâneo pode se transformar em mais uma vítima da urbanização desordenada.
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