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Da teoria à prática: o que muda quando o estudante vira professor

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Por Jhenyfer Souza e Gabriel Vitorino

Conciliar a vida acadêmica com a docência, lidar com baixos salários e ainda enfrentar a falta de reconhecimento são desafios comuns para quem escolhe a carreira de professor em Rio Branco. Apesar disso, a procura por profissionais cresce e abre espaço para trajetórias que começam ainda durante a graduação. É o caso de Izabele Alves, de 21 anos, que cursa o sétimo período da licenciatura em Letras Inglês na Universidade Federal do Acre (Ufac) e já ministra aulas online. 

Ela decidiu o curso por conta da afinidade com o idioma e pela admiração que tinha pelos professores. No entanto, a estudante reconhece que a visão inicial que tinha sobre o mercado de trabalho mudou ao longo da formação.

“Quando eu entrei na faculdade, eu tinha uma visão bem estereotipada do trabalho do professor. A partir do momento que comecei a procurar emprego como professora de Inglês, percebi que existe grande procura em Rio Branco”, conta Izabele Alves. Com essa experiência ela percebeu que há portas abertas na área, pois muitas pessoas querem fazer curso ou contratar um professor particular.

A estudante destaca ainda que o ensino remoto facilita a conciliação entre trabalho e graduação, mas admite que há períodos em que a carga se torna pesada. Outro ponto de atenção é a baixa remuneração, especialmente quando há vínculo com escolas particulares. Segundo ela, o acúmulo de funções é frequente. 

“O professor de inglês acaba precisando assumir outras disciplinas ou preparar materiais pedagógicos. Isso acontece muito e o salário nem sempre compensa”, explica.

O cenário apontado pela graduanda dialoga com dados do Censo Escolar, que revelam a fragilidade da carreira docente no Acre. Mais de 69% dos professores da rede básica atuam com contratos temporários, chegando a 75% na rede estadual. Além disso, mesmo com nível superior, o salário-base de um professor licenciado no estado gira em torno de R$ 2,6 mil para 40 horas semanais, segundo o levantamento.

Esses números contrastam com a alta demanda da profissão. Em 2025, por exemplo, o governo abriu um processo seletivo com mais de 18 mil vagas temporárias para professores em todo o estado, sinalizando que o mercado está aquecido, mas ainda preso à instabilidade dos contratos.

Experiência  

A realidade vivida por Izabele Alves dialoga com a de Renata da Silva, 30 anos, professora formada em Letras Inglês pela Ufac. Diferente da estudante, Renata começou a trabalhar durante o segundo período da graduação, experiência que tornou a transição para a vida profissional menos abrupta. Apesar disso, ela também reconhece as dificuldades da profissão. Para a professora, o maior choque está na diferença entre teoria e prática. 

“Na faculdade, tudo é muito didático, até utópico. A teoria diz que o aluno vai aprender conforme o período estipulado, mas sabemos que não é assim, especialmente no Acre, onde o contato com o inglês fora da sala de aula ainda é bem restrito”, explica ela.

Foto: Jhenyfer Souza

Renata Silva ressalta que a área segue desvalorizada, tanto pela baixa remuneração quanto pelas condições de trabalho. Segundo ela, o aprendizado do inglês exige mais do que livro e professor. 

“Deveriam haver ambientes mais imersivos e ferramentas adequadas, mas muitas vezes isso não é acessível. A valorização peca e não só em questão de salário”.

Outro ponto levantado pela profissional é a concorrência com pessoas que dominam o idioma, mas não possuem formação específica. Para ela, a vivência universitária traz diferenciais que vão além da gramática e da conversação.

“A formação em Letras nos prepara para lidar com alunos neurodivergentes, com diferentes contextos familiares, além de oferecer base em fonética, linguística aplicada, educação especial. Isso faz diferença no trabalho em sala de aula”, afirma.

Apesar das dificuldades, Renata segue motivada pela interação com os alunos e pela dimensão cultural que o ensino da língua possibilita. “Ensinar inglês vai além da gramática, envolve pontos de vista, debates, diferenças. Isso enriquece a gente também”, diz.

O contraste entre as experiências de Izabele e Renata revela uma realidade marcada por dificuldades, mas também por reconhecimento e oportunidades. Esse debate é essencial quando o assunto é o mercado de trabalho, já que boa parte dos estudantes acabam sendo muito otimistas quanto às oportunidades que terão. Aqueles que já são profissionais e possuem anos de experiência percebem, cedo ou tarde, a fragilidade de sua posição no mercado.

A segurança e a estabilidade são muitas vezes varridas pela visão que as grandes e pequenas empresas têm de lucro, valorizando profissionais mais novos na área, com rotatividade maior, favorecendo o acúmulo de experiências à estabilidade financeira e a segurança no ambiente de trabalho. Com isso, muitos profissionais que se encontram no mercado há mais tempo acabam tendo dificuldade em se manterem neste contexto.

Ao se pensar na realidade do mercado de trabalho e em como as novas gerações criam expectativas profissionais, o debate acaba sendo mais profundo quando se envolve adaptação às novas referências e tecnologias que passam a interferir nas práticas, no cenário da sociedade da informação.

Vale refletir se o mercado de fato é receptivo e possui muitas oportunidades, ou se ele vê o estudante universitário como mão de obra barata de fácil acesso, mas com prazo de validade.

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O futuro da escrita na era digital

Entre teclados e telas, especialistas destacam que a escrita à mão ainda fortalece memória, criatividade e identidade cultural. Foto: Gabriela Queiroz

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Por Maria Niélia Magalhães, Sérgio Corrêia e Gabriela Queiroz

Das cartas que cruzaram continentes aos aplicativos de mensagens instantâneas, a transição da escrita manual para a digital reflete mais do que uma evolução tecnológica — revela uma transformação profunda em como nos comunicamos, aprendemos e até mesmo como processamos informações. Enquanto especialistas debatem os impactos cognitivos e culturais dessa mudança, neurologistas, educadores e alunos avaliam os prós e contras de cada meio.

“Quando o aluno escreve à mão, ele pensa melhor no que está registrando, organiza o que é mais importante”, afirma a professora Cyndi de Oliveira Moura, 29 anos, formada em Letras pela Universidade Federal do Acre – Ufac e docente de Língua Portuguesa no ensino fundamental. Ela observa no dia a dia os efeitos da escrita manual: “alunos que anotam no caderno conseguem relembrar mais facilmente aquilo que foi explicado em sala.”

Ela destaca que a caligrafia também está ligada à criatividade, pois exige atenção e paciência. Mas nota que os estudantes atuais enfrentam dificuldades: “Eles são impacientes e querem escrever tão rápido quanto pensam. A escrita exige paciência e reflexão, mas o uso excessivo das telas acelera demais o pensamento.”

Apesar disso, a professora não vê a tecnologia como inimiga, e sim como ferramenta que precisa ser equilibrada com a escrita manual: “Os recursos digitais ampliam possibilidades, mas sem criticidade se limitam a cópias rápidas e informações superficiais. O ideal é equilibrar os dois mundos: o papel ajuda a refletir, enquanto a tecnologia prepara para o século XXI.”

Foto: Gabriela Queiroz

O advento da tecnologia digital transformou profundamente a maneira como registramos e comunicamos ideias. Se por um lado a digitação se tornou predominante pela sua praticidade e velocidade, por outro, a escrita manual resiste como prática fundamental – não por nostalgia, mas por seu impacto comprovado na cognição e no desenvolvimento cerebral. 

A voz do estudante

Para Letícia Kelly, aluna do 2º ano do ensino médio de uma escola pública em Rio Branco, a escrita à mão continua sendo indispensável no seu processo de aprendizagem. “Eu prefiro escrever no caderno, porque fazer anotações melhora minha memória. Quando escrevo no celular, não consigo guardar tanto na mente”, afirma.

Elaborar pequenos textos e mapas mentais no papel facilita a memorização de detalhes importantes, segundo Kelly. “Infelizmente, as pessoas estão abandonando a escrita à mão, e isso é muito ruim, pois terão uma memória mais curta. Eu não consigo parar de escrever à mão, porque me ajuda a memorizar as coisas”, completa a estudante.

Atividade da aluna do 2º ano do Ensino Médio, Letícia Kelly. Foto: Maria Niélia

Não se trata de idealizar o passado ou desconsiderar os avanços tecnológicos. Afinal, todos nós aproveitamos a agilidade das mensagens instantâneas para nos conectar com quem está longe. No entanto, especialistas alertam: a caligrafia ativa regiões do cérebro relacionadas à memória e à criatividade de um modo que o teclado não consegue replicar.

Cenário Internacional

Pesquisas recentes confirmam que a escrita manual continua exercendo um papel fundamental no aprendizado. Um estudo norueguês, citado pela DW Brasil na reportagem Escrever à mão ajuda no aprendizado, aponta estudo, mostrou que escrever manualmente aumenta a atividade cerebral justamente nas regiões ligadas à memória e ao processamento motor e visual, favorecendo uma compreensão mais profunda e duradoura do conteúdo. 

Já a BBC Brasil, em Como escrita à mão beneficia o cérebro e ganha nova chance em escolas, destaca a visão da neurocientista Claudia Aguirre, que afirma que escrever em cursivo, especialmente em comparação com digitar, ativa caminhos neurais específicos que otimizam o aprendizado e o desenvolvimento da linguagem.

A Finlândia, país reconhecido por seu sistema educacional inovador, retirou a caligrafia do currículo obrigatório em 2016, priorizando o ensino de digitação (The Guardian, 2015). Nos Estados Unidos, discussões semelhantes ganharam força nos últimos anos. Essas mudanças, no entanto, não ocorrem sem controvérsias.

À medida que escolas e estudantes se adaptam às demandas de um mundo digital, pesquisadores seguem investigando como equilibrar tradição e inovação. Por um lado, alguns educadores defendem a adaptação aos novos tempos, por outro, especialistas em neurociência e desenvolvimento cognitivo alertam para as perdas associadas à diminuição da escrita manual.

O melhor de ambos

Enquanto isso, a ciência segue confirmando: escrever à mão é muito mais que um gesto cultural – é uma ferramenta poderosa para moldar o cérebro e expandir as fronteiras do pensamento. A pergunta que permanece não é apenas sobre qual método de escrita é mais eficiente, mas como podemos integrar o melhor de ambos para promover uma aprendizagem mais rica e significativa. 

Não se trata, portanto, de uma disputa entre o antigo e o moderno, mas de reconhecer que ambas as formas de escrita — a manual e a digital — podem coexistir e se complementar. Como bem ilustram a professora Cyndi e a estudante Letícia, escrever à mão continua a ser um exercício de paciência, reflexão capaz de transformar informação em conhecimento.

No fim, o que importa é lembrar: escrever não é apenas registrar palavras — é processar ideias, construir sentidos e, acima de tudo, permanecer humano em um mundo em constante transformação.

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Você sabia que o e-Título foi idealizado por uma acriana?

Rosana Magalhães, hoje aposentada, trabalhou na Justiça Eleitoral desde 1994. Foto: Arquivo do TRE/AC

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Por Francisca Samiele e Amanda Silva

Talvez pouca gente saiba, mas uma das ferramentas digitais mais importantes da Justiça Eleitoral no Brasil foi criada por uma mulher acriana. O e-Título, versão digital do título de eleitor, que ajudou a modernizar a forma como milhões de brasileiros votam, foi idealizado por Rosana Magalhães, na época, secretária de tecnologia do Tribunal Regional Eleitoral do Acre (TRE-AC).

Considerando que até 1932 as mulheres sequer tinham direito ao voto no Brasil, é irônico pensar que tenha sido justamente uma mulher a idealizar essa tecnologia, considerada essencial para o exercício da democracia ter se tornado tão prático.

O aplicativo e-Título foi lançado em dezembro de 2017. Foto: Internet

A idealizadora do e-Título

Rosana Magalhães, hoje aposentada, trabalhou na Justiça Eleitoral desde 1994 e acompanhou a evolução do sistema de votação, do papel à urna eletrônica. Como analista de sistemas, ela percebeu que o título de papel era um documento que dificultava o acesso a alguns serviços da Justiça Eleitoral e a atualização de dados para muitas pessoas.

“Ele (título) não tinha foto e não tinha dados atualizados como estado civil, grau de escolaridade, nome em caso de mudança após casamento. Era um documento estático. […] Era um papel que molhava e não tinha muita durabilidade”, explicou Rosana Magalhães. A servidora comenta que foi observando essas limitações que surgiu a ideia do e-Título, um documento digital que pudesse atualizar automaticamente informações do eleitor e simplificar processos como emissão de certidão de quitação eleitoral.

Rosana Magalhães em divulgação de campanha no Acre para o e-Título. Foto: Arquivo do TRE/AC

“E outra coisa que observei durante toda essa minha experiência de vida na Justiça Eleitoral é a dificuldade que as pessoas tinham em atualizar seus dados e, quando perdiam o título de eleitor, ficavam numa fila enorme perto da eleição”, relembra.

O e-Título foi lançado em dezembro de 2017 e o projeto foi desenvolvido junto ao TRE-AC após aprovação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A primeira versão, desenvolvida em cerca de 40 dias, foi disponibilizada nas lojas de aplicativos e preparada para uso nacional, sendo adotado pelos estados de forma gradual. 

O e-Título é acessível para pessoas com deficiência visual, baixa visibilidade ou daltônicas e também é permite acessar vários serviços, tais como:

• Apresentação de justificativa eleitoral no dia das Eleições e após o pleito;
• Consulta ao histórico de justificativas eleitorais;
• Consulta ao local de votação;
• Emissão de certidão de quitação e de crimes eleitorais;
• Geração do Título Eleitoral em formato PDF para impressão;
• Cadastrar mesária ou mesário voluntários;
• Emissão de declaração de trabalhos eleitorais;
• Geração de código de autenticação para sistemas parceiros;
• Consulta a débitos eleitorais;
• Pagamento de eventuais débitos eleitorais por Pix ou por meio da emissão de boleto.

Veja como o título de eleitor evoluiu ao longo dos anos:

Reações às mudanças

O e-Título trouxe mudanças significativas para os eleitores. Alguns se adaptaram muito bem, mas também tem quem ainda prefere o documento à moda antiga.

Para a  assistente administrativa Janara Cristina Dutra Nogueira, 37 anos, a mudança é bem-vinda. “Para mim, a maior vantagem é a praticidade. Não preciso mais andar com o título de papel, ele fica no celular. Também dá para ver meu local de votação, regularizar situação eleitoral e até justificar voto se eu estiver fora”, explica.

A pedagoga Katiane Lima, também considera a mudança um bom progresso. “O aplicativo trouxe praticidade, oferecendo acesso rápido e fácil às informações, sem necessidade de buscar documentos físicos. A transição de papel para digital trouxe mudanças de mentalidade e aprendizado necessário para usar novas tecnologias”.

Mas nem todos os usuários que passaram pela transição do papel ao digital se adaptaram completamente, como é o caso da funcionária pública Iêda Fernandes, de 69 anos. “Tenho algumas dificuldades com a tecnologia… Já utilizei em alguns momentos, mas não me senti tão segura. Para utilizar como ferramenta principal, devo aprender mais sobre as funcionalidades. Preciso me tornar mais tecnológica”.

A  aposentada Junisseia Souza de Lima enfatiza sua preferência pelo título em papel: “sabe por que eu não gosto de botar no telefone as coisas? Porque às vezes a gente é roubada, basta puxar o telefone para olhar e o ‘cabra’ vem e toma. A gente não fica tranquila andando com telefone, eu não fico. Então, com a cédula de votação, é melhor papel, eu gosto. Eu não gosto de sair preocupada com o telefone, então, para evitar isso, prefiro o de papel.”

Já a professora de português Gleiciany Florêncio de Araújo, de 34 anos, sugere algumas atualizações: “Para mim, uma grande melhoria no aplicativo seria se ele também pudesse ser usado offline, porque algumas vezes o sinal da internet é fraco e não dá para entrar no aplicativo”.

Progresso

A idealizadora do projeto ressalta que o e-Título continua evoluindo e pode, futuramente, incluir funcionalidades como coleta de biometria pelo próprio aplicativo.

Lançamento do e-Título, em Brasília, 2017. Foto: Arquivo do TSE

O e-Título trouxe benefícios para os eleitores e para a Justiça Eleitoral. Agora, muitas situações podem ser resolvidas diretamente pelo aplicativo, o que diminui filas e tempo de espera. O uso digital reduz custos com impressão de títulos e certidões, e o aplicativo pode ser usado por eleitores em qualquer lugar do Brasil ou no exterior.

“O principal impacto para a sociedade, para a justiça eleitoral e para a sociedade também é a economia que teve de muitos milhões para emissão de título eleitoral, já que não há mais necessidade de imprimir”, afirma Rosana Magalhães. E ela repete uma frase que Caetano Veloso disse no dia do lançamento do e-Título: “É incrível a força que as coisas parecem ter quando elas precisam acontecer.”

Conheça um pouco da trajetória das mulheres na luta por seus direitos políticos AQUI.

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Tradição ou conservadorismo: quem paga a conta no primeiro encontro?

O debate “milenar” revela mais sobre as estruturas da sociedade do que você imagina

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Por Gabriela Fintelman e Natália Lindoso

Se você é um usuário de redes sociais como o Instagram e o X (Twitter), certamente já viu ou participou de debates acalorados sobre quem paga as despesas do primeiro encontro. A discussão volta e meia reaparece e assombra os corredores da internet, revelando como ainda estamos presos a certos papéis de gênero, com expectativas e tradições que insistem em resistir ao tempo.

Para muitas pessoas heterossexuais (que se atraem sexualmente pelo sexo oposto), sejam elas solteiras ou não, muitas vezes é algo natural que o homem tome a iniciativa. “É o mínimo que o homem pode fazer”, diz o diretor de audiovisual Laércio Oliveira, de 35 anos. Esse pensamento divide opiniões e resulta, muitas vezes, em debate nas redes. 

O editor de vídeo Ilgner Fernandes acha que depende da intenção de quem está fazendo o convite. “Se ele quiser um relacionamento no futuro, eu acho que ele vai pensar em pagar a conta. Mas hoje em dia, com o empoderamento das mulheres e o movimento feminista, a situação está meio querendo se equilibrar, cada um está pagando a sua conta”, relata.

Foto: cedida

Henrique Damasceno, de 22 anos, bissexual e solteiro, afirma que a sua forma de lidar com a questão fianceira no primeiro encontro muda de acordo com o gênero da pessoa com quem ele está saindo. “Na questão de sair com um homem, quem convida paga o jantar, já com uma mulher muda muito. É sempre bom ser cavalheiro com a moça que está afim. Então, convidar e pagar a conta no primeiro encontro é muito importante”, disse. 

A jornalista Camila Holsbach, casada há 18 anos com o também jornalista Márcio Bleiner, relata diferenças entre primeiros encontros e relacionamento sério. “Ele que pagava todas as contas no início do nosso namoro. Hoje já é uma coisa mais fluída. Por exemplo, na maioria das contas, tanto em casa quanto nas saídas, é ele quem banca. Mas se um dia do mês eu estiver afim de comer e a grana para ele está curta ou tem outras coisas que ele tem que pagar, eu pago sem problema”, diz. 

Foto: cedida

A operadora de áudio Lília Moreira, de 26 anos, não vê problema em dividir a conta: “eu não me importo em dividir a conta, mas eu acho que é um cavalheirismo. Se ele convidou, então, acho que o correto seria ele pagar a conta”, avalia.

Embora não se sinta pressionado e ache que a mulher pode pagar ou dividir a conta, o repórter João Cardoso assume que até gosta de pagar em um primeiro encontro. “Eu acho que isso depende muito da iniciativa da pessoa, afinal de contas quando eu saí com a pessoa que eu estou, fui eu que chamei. Então, se eu estava chamando, eu tinha que pagar”, explica.

Foto: cedida

Padrões impostos

Nos dias atuais, com a complexidade das relações contemporâneas, que se estende para fora de um padrão tradicional, é necessário que haja espaço para novas maneiras de pensar. A pesquisadora Lisânia Ghisi, Mestre em Letras, estuda e desenvolve pesquisas sobre questões de gênero e afirma que essa binariedade que define os papéis de homens e mulheres é quase que uma lógica universalizante.

“A nossa sociedade foi constituída de discursos que carregam dualismos. Ou seja, um mundo dividido em dois: entre certo e errado, bonito e feio, homem e mulher, quem paga e quem não paga. O binarismo heteronormativo que está impregnado no nosso cotidiano”, explica Ghisi. 

A pesquisadora ainda ressalta que esse padrão imposto socialmente também atinge os outros modelos de relacionamento que divergem da heteronormatividade. Ou seja, a partir da lógica histórica e cultural, relacionamentos homossexuais também podem ser afetados por essa perspectiva do “quem deve pagar a conta”. “Afinal, dentro de uma sociedade heteronormativa, quaisquer relações vão sempre partir do binarismo masculino e feminino. Consequentemente, cada pessoa terá ali, um papel ou dever a ser seguido dentro desse encontro”, acrescentou.

Foto: cedida

Conservadorismo virou tendência 

A discussão sobre pagar a conta em primeiros encontros ganhou força em 2022 na Internet, quando o ator global Caio Castro viralizou ao dizer em um podcast que se sente incomodado de ter a obrigação de pagar a conta no primeiro encontro. Essa declaração gerou discussão nas redes e o artista foi duramente criticado por muitos internautas. Os desdobramentos mostraram que o conservadorismo está vivíssimo entre os jovens.  

O pensamento conservador ganha força nas redes sociais através de jovens e adolescentes que reforçam padrões comportamentais tradicionais. Termos como “esposa troféu” e “macho alfa” circulam junto com uma lista de comportamentos a serem seguidos.

Lisânia Ghisi destaca que as supostas obrigações existem tanto para homens como para mulheres e o debate da “dinâmica de encontros”, no entanto, é bem mais antigo. “Há séculos, papéis de gênero são definidos, disseminados e ordenados dentro da sociedade. Assim, quando a gente diz que o homem ‘deve’ pagar a conta, seria semelhante quando alguém diz que é obrigação da mulher lavar a louça, por exemplo”. 

Ghisi explica que por trás dessa ideia do “dever”, existem questões socioculturais que acompanham e influenciam diretamente a compreensão sobre o mundo das pessoas. Esse contexto histórico, social e cultural traz a ideia de que o homem fica destinado aos custos financeiros, pois trabalha e detém os recursos, enquanto a mulher espera o convite. 

“Essa noção sobre papéis de gênero não abarca só encontros, as diversas dinâmicas que compõem nosso cotidiano estão entranhadas de divisões socioculturais binárias. Ou você acha que é ‘normal’, numa festinha de escola, por exemplo, os meninos ficarem responsáveis por pagar os refrigerantes, enquanto para as meninas a obrigação é de providenciar a comida, quando não a ornamentação do espaço”, diz. 

Quem tá liso não namora 

O pensamento conservador traz com ele a capitalização do romance. A ideia de que o homem deve sempre pagar a conta, ou que apenas uma das partes deva arcar com isso, levanta a hipótese de que quem não têm abundância de recursos financeiros não deva viver uma relação amorosa.

Bordões como “tá liso dorme” ou “se não tem dinheiro para levar a namorada para sair, não tem que namorar, tem que procurar emprego” denunciam que, além de gênero, a classe social também define quem é você no campo das relações. O amor vale muito, mas não precisa custar caro. 

A discussão sobre “quem paga a conta?”, é um reflexo de desigualdades maiores presentes nas relações afetivas e sociais. A estrutura social e capitalista, com a qual a sociedade se organiza, reflete nas relações amorosas. Para a socióloga Marisol Brandt, isso também é um legado do patriarcado, que coloca o homem na posição de provedor, e a mulher na posição de quem cuida. 

Para Brandt, a cultura que se constituiu sobre quem paga espelha a base da sociedade brasileira. “Essa discussão também reflete a desigualdade econômica e social. A gente não pode desvincular desse ponto. Eu penso que existe um fator histórico, que é a forma como a sociedade brasileira se organizou ao longo do tempo, profundamente desigual”, explica. 

Foto: cedida

A estudante de Letras Português, Brenda Feitosa, de 22 anos, é pansexual (pessoas que não determinam com quem se relacionam por gênero) e acredita que mesmo em relações sem um homem, podem existir preconceitos, “se na teoria o homem tem que pagar a conta, sem o homem fica complicado. Mas tem outros preconceitos, digamos assim, outros estereótipos, como a pessoa mais velha, a pessoa que tem mais dinheiro, por exemplo”, diz. 

Isso revela que a discussão vai além da escolha individual e está diretamente conectada a construções sociais mais amplas. Para a socióloga, essas expectativas são reflexo de uma desigualdade histórica e estrutural, marcada por um legado patriarcal e patrimonial que ainda influencia as relações afetivas atuais. 

“As desigualdades econômicas e socioeconômicas podem influenciar sobre quem tem maior poder aquisitivo e também, nesse sentido, sobre quem paga. Por outro lado, também a expectativa da sociedade, a expectativa cultural pode variar de acordo com a classe social e com a raça. A expectativa sobre quem paga é sociocultural”, resume. 

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As definições de “primeiro encontro” foram atualizadas 

Não se assuste com o barulho, esse é o som do tabu sendo quebrado. E se, ao invés de vivermos como nossos pais, vivêssemos como nossos irmãos? Aquele irmão “ovelha negra” que tem coragem de questionar, e não tem medo de remar contra a maré. 

O médico Lucas Lins, de 25 anos, é homossexual e se encontra em um relaciomento sério com outro homem. Para ele, a definição de “quem paga a conta?” deve ser natural, e não é algo tão complexo quanto muitas pessoas acabam interpretando. 

“Pessoalmente, não me sinto pressionado em relação a esse tema. Por exemplo, se eu convido meu namorado para sairmos, não espero que ele arque com os custos; eu pago com tranquilidade, sem qualquer problema”, relata. 

Para a psicóloga Madge Porto, existe uma ideia de que não se deve discutir sobre dinheiro nas relações afetivas, o que causa um certo constrangimento. Esse ideal impregnado na sociedade é encarado como uma “quebra” do romantismo, entretanto, é necessário que cada um se posicione acerca do que espera em uma relação.

“Estamos em um momento em que há a colocação de duas referências de modelos de relacionamento, modelos conservadores e tradicionais e modelos igualitários. Cada pessoa precisa ter noção de que tipo de relacionamento pretende e que é mais positivo e saudável para apresentar o seu desejo”. 

Foto: cedida

A psicóloga ressalta que, nos primeiros encontros, muitas pessoas acabam tentando adotar estratégias para agradar o outro, mesmo que isso signifique se submeter a situações desconfortáveis. No entanto, ela explica que esse esforço é temporário, já que, com o tempo, a forma como cada indivíduo realmente vive e se posiciona na vida inevitavelmente aparece.

“Que pagar ou não pagar não seja o mais importante, mas sim o que cada um está disponível para construir junto com o outro”, finaliza.

Dividir as despesas não é mesquinho, é esforço mútuo. Aceitar que paguem a sua parte não é vergonha, é saber aceitar um gesto de generosidade. Se prender a uma só “fórmula” não é só atraso, mas também limitante.

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