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Olhares sobre a transgeneridade

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Reprodução/B9

Por Guadalupe de Souza Pereira

Uma das pessoas transgênero mais conhecidas do Brasil, Roberta Close – atriz, modelo e cantora – passou 15 anos tentando ter seu nome Roberta em seus documentos, mesmo após passar por uma cirurgia de redesignação genital e por dezenas de exames biológicos e laudos médicos. Roberta, à época, descobriu ser uma pessoa intersexual – que biologicamente não responde ao masculino ou ao feminino.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que pessoas trans e travestis podem alterar o nome e gênero no registro civil sem se submeterem a provas ou a uma cirurgia. Se antes era uma questão sexual em diversos níveis, atualmente se trata do direito à identidade de gênero.

A separação do sexo e do gênero, ou mesmo o questionamento ao que realmente é considerado sexo, é encontrado em diversas literaturas. No Conto Roxo: A História da Minha Transexualidade, do livro Bricolagem Travesti, a autora Maria Léo Araruna relata: “nasci com uma marca de formato cilíndrico. Era algo largo e que ficava solto no corpo. Disseram-me para me orgulhar desse objeto natural. As pessoas chamavam isso de homem, mas sempre achei que se tratava apenas de um pênis. Ele não interferia em nada. (…) O homem colocado em mim não existe”.

A observação de Maria corresponde às discussões atuais sobre os estudos de sexualidade, que colocam a transgeneridade como uma dissidência a um sistema sexual vigente que impõe sexos binários e heterossexuais. Estudiosos como Thomas Laqueur, que escreveu o livro Inventando o Sexo, consideram o sexo humano como um conceito insustentável. 

Atualmente o que se discute em termos de ativismo e de legislação vai além do que se entende biologicamente como sexo, se solidificando na identidade e na dignidade das pessoas. Entre outras mudanças de percepção sobre o tema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) oficializou em 2019 a retirada da classificação da transexualidade como transtorno mental da 11º versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID).

Conceitos e termos

Em “Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos”, Jaqueline Gomes de Jesus, ativista trans, aponta que é necessário diferenciar a identidade de gênero do que ela indica como funcionalidade de gênero. Portanto, dentro da identidade de gênero está a vivência cisgênero, de quem se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento, e a vivência transgênero, quando não há conformidade com o que lhe foi imposto. Esta última engloba a vivência transexual/transgênero e também a travesti, que é um termo popular no Brasil e se refere geralmente a uma identidade transfeminina marginalizada. Atualmente as travestis requisitam um tratamento mais respeitoso e associam esta identidade a uma história de luta e de orgulho. Pessoas não binárias ou agêneras, que não se veem nem como homens tampouco como mulheres, também estão englobadas como pessoas trans.

Quanto à funcionalidade de gênero, Jaqueline Gomes descreve que são apropriações de papéis de gênero apenas por razões práticas (trabalho, recreação, arte, etc) e não por identidade. Drag queens, drag kings e transformistas são exemplos de expressões de gênero que ocorrem sobretudo por motivos artísticos. Uma pessoa que performa uma drag queen não necessariamente é uma pessoa trans. Crossdressers são também exemplos, sendo estes, em geral, homens cis heterossexuais que usam roupas, maquiagens ou peças ditas femininas em momentos pontuais.

É importante não confundir a identidade de gênero de uma pessoa com a sua sexualidade. Esta diz respeito à orientação sexual, isto é por qual gênero a pessoa se sente atraída, como heterossexual, bissexual, homossexual, assexual, panssexual. O transfeminismo busca, inclusive, que as orientações sexuais respeitem à identidade de gênero, fazendo com que, por exemplo, um relacionamento entre duas mulheres, cis e trans, seja respeitado como lésbico, independente da genitália.

 Realidade trans no Brasil

No boletim “Assassinatos contra Travestis e Transexuais em 2021”, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) relata que “dados  parciais  de  2021  indicam  que  assassinatos  contra  pessoas  trans  estão acontecendo mais precocemente, contra vítimas cada vez mais jovens e com maior violência,  e seguem  com  números  altos  apesar  da pandemia”. 

O texto, assinado por Bruna Benevides e Sayonara Nogueira, avança descrevendo os casos mapeados pela Antra no Brasil: “Em  2020, a  ANTRA  encontrou um  número  recorde  de assassinatos contra travestis  e  mulheres  trans. Um  total  de 175 casos foram mapeados contra  44  nos Estados Unidos. Já em 2021, nos quatro primeiros meses, enquanto nos EUA foram 19 pessoas trans assassinadas, no Brasil chegamos à triste marca de 56 assassinatos – sendo 54 mulheres trans ou travestis e 2 homens trans ou transmasculinos. São inúmeros os casos  que  apresentaram  requintes  de  crueldade  e  uso excessivo  de  força,  e espancamentos – indicativos de se tratarem de crimes de ódio. Tendo sido encontrados ainda  5  casos  de  suicídio,  17  tentativas  de  assassinatos  e  18  violações  de  direitos humanos contra pessoas trans, no mesmo período”.

O boletim também alerta para a dificuldade em catalogar tais casos, pois boa parte são subnotificados ou as pessoas trans não têm sua identidade respeitada pelos registros policiais. Mesmo assim, o mapeamento da Antra já é alarmante. O ano de 2020 superou a média anual de 122,5. Os números, porém, também retratam o racismo no Brasil, visto que 80% das pessoas trans e travestis assassinadas em 2020 eram pretas.

Essa violenta realidade dá ao Brasil o título de país onde mais matam transexuais no mundo, de acordo com dados do Trans Murder Monitoring (Observatório de Assassinatos Trans). O topo desse infeliz ranking é ocupado pelo Brasil há 12 anos consecutivos.

A ditadura militar e a transgeneridade

Muitos apontam a Ditadura Militar que tomou o Brasil por 25 anos (1964-1985) como um regime que aumentou o estigma sobre a população trans e travesti. Além da influência conservadora sobre os meios de comunicação da época, o período também intensificou as políticas de repressão contra pessoas trans. “Foi durante o Regime Militar que a polícia iniciou uma pesquisa criminológica para justificar a prisão de pessoas LGBT por ‘vadiagem’. A partir disso o delegado Guido Fonseca definiu então o ‘alto grau de periculosidade travesti”, denuncia a comunicadora e historiadora Giovanna Heliodoro, conhecida na internet como Trans Preta.

Ela diz que a “ameaça travesti” contou com apoio da sociedade civil e foi a justificativa legal para a perseguição de pessoas trans e travestis. Giovanna ressalta: “precisamos lembrar da Ditadura para não esquecer da nossa história e a de muitas travestis que foram assassinadas e presas para que estejamos aqui hoje”.

O acervo LGBT do projeto Memórias da Ditadura, realizado pelo Instituto Vladimir Herzog, registra diversas operações policiais em São Paulo, que se iniciaram em 1968, coincidindo com a instauração do AI-5, e que se estenderam de maneira sistematizada a partir de 1975. 

O delegado Wilson Richetti é citado também no Dossiê da Ditadura, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. O Dossiê relata que “a ideologia dominante continha claramente uma perspectiva homofóbica, que relacionava a homossexualidade às esquerdas e à subversão”. À época, as transexuais eram costumeiramente tratadas no masculino e confundidas com homossexuais.

Além de confirmar as denúncias de Giovanna Heliodoro e o acervo do Instituto Vladimir Herzog, a Comissão da Verdade relacionou a efetividade das ações policiais aos governantes da época. 

“Famosos nessa época, o delegado José Wilson Richetti e seus policiais promoviam verdadeiros arrastões pelas ruas centrais. Estes resultavam em detenções violentas, justificadas por abaixo-assinados de comerciantes e trabalhadores da região, em prol da moralidade defendida pelo regime, muitas vezes incentivados pelo próprio delegado. Estima-se que durante os finais de semana, entre 300 e 500 pessoas eram detidas, arbitrariamente, por noite em São Paulo. Dentre estas, muitas eram extorquidas e algumas foram torturadas.”

(acervo LGBT do projeto Memórias da Ditadura, Instituto Vladimir Herzog)”

A mídia da época repercutia todas essas ações perpetuando a discriminação e o estigma sobre as pessoas trans e travestis, como também aos negros, aos homossexuais e às lésbicas. 

Houve também a icônica manifestação em 14 de junho de 1980, na escadaria do Theatro Municipal de São Paulo, tida como o primeiro ato público do movimento LGBTI+ no Brasil, que exigia esclarecimentos de Richetti e do secretário de Segurança Pública da época, Octavio Junior, em razão das perseguições.

Como figura central na imagem, de terno, o delegado José Wilson Richetti, durante ação contra travestis, prostitutas e homossexuais. À direita, uma transexual algemada pelos policiais. (Juca Martins / Olhar Imagens)

O jornal Lampião era um folheto alternativo feito pela comunidade LGBTI+ da época que se esforçou em denunciar as perseguições. (Imagem com fonte desconhecida)

O Estado de São Paulo repercute a imagem de travestis associadas ao crime (Imagem: Disponibilizada por Giovanna Heliodoro)
Passeata contra a repressão policial do delegado José Wilson Richetti, evento lembrado como a primeira mobilização pública do movimento LGBT no Brasil, em 14 de junho de 1980. (Imagem: Comissão da Verdade do Estado de São Paulo)

Onde estão as pessoas trans hoje?

A política brasileira é um espaço que tem sido ocupado pelas pessoas trans. Só em 2020, nas eleições municipais, foram eleitas, segundo a Antra, 2 homens trans e 28 travestis e mulheres trans em todo o Brasil, sendo 7 delas com a candidatura mais votada em suas cidades.

Erika Hilton (Psol-SP), eleita na capital paulista, é a primeira mulher negra e transexual eleita vereadora na capital paulista – e com 50.508 votos, o que a faz a mulher mais votada do Brasil nas eleições de 2020. “Estamos sedentas de direitos humanos e equidade. Nós criaremos muitas fissuras nessas estruturas de poder e dominação”, disse ela, recém-eleita, ao jornal G1.

Duda Salabert (PDT-MG) em Belo Horizonte, Benny Brioli (PSOL-RJ) em Niterói, Carolina Iara (PSOL-SP) em São Paulo, Linda Brasil (PSOL-SE) em Aracaju, Erika Hilton (PSOL-SP) em São Paulo e Thammy Miranda (PL-SP) em São Paulo. Foto: Reprodução/Instagram/Arquivo de Socialismo Criativo.

No entanto, apesar dos dados imprecisos, a Antra estima que 90% da população trans e travesti no Brasil se prostituem, principalmente pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e por saírem muito cedo de casa – geralmente são expulsas. É evidente a dificuldade em inserir esta população no mercado de trabalho ou mesmo de terem seu nome e gênero reconhecidos legalmente. Um estudo da Prefeitura Municipal de São Paulo, organizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), indica que 75% das pessoas entrevistadas deixaram de morar com a família precocemente. Quase a metade (46%) das travestis, segundo o estudo, são profissionais do sexo, enquanto 34% das que se identificam enquanto mulheres trans atuam profissionalmente da mesma forma. Pelo menos 18% dos homens trans são atendentes de telemarketing ou vendedores de lojas e lanchonetes.

Representatividade nas artes

Mesmo com uma realidade adversa, as pessoas trans e travestis têm se destacado no mundo artístico. Ao lado de pessoas trans como a cantora Liniker Barros, a artista Verónica Valenttino, as cantoras Urias e Danna Lisboa, a rapper Ceci Dellacroix e a maquiadora Magô Tonhon participam da produção da música e do vídeo-clipe de Oração, na qual Linn da Quebrada levanta uma discussão sobre a ausência de afeto com a população trans e travesti, mas também indica uma unida cena brasileira de artistas e personalidades transgêneros.

Linn da Quebrada e coral de mulheres trans na canção Oração. A letra diz: “Não queimem as bruxas, mas que amem as bixas, mas que amem. Que amem, clamem. Que amém. Que amem as travas também!”. https://www.youtube.com/watch?v=y5rY2N1XuLI

A artista Liniker, cantora de soul e black music, também é a estrela da recente série da Amazon Prime Music chamada Manhãs de Setembro. A série conta a história de Cassandra, uma mulher trans, que descobre ter um filho de 10 anos.

Uma outra série que tem enriquecido o universo LGBTI+ é a americana Pose (FX), com o maior elenco trans da história da televisão. O roteiro apresenta a cultura ballroom entre as décadas 80 e 90 em New York. Mj Rodriguez, Dominique Jackson e Indya Moore são atrizes trans que dão vida a personagens marcantes da série de televisão. Fora do contexto americano, a vida de Cristina Ortiz Rodrigues, uma mulher trans conhecida na Espanha, ganhou uma série biográfica chamada La Veneno (HBO Max), seu famoso apelido. 

Cada vez mais, surgem também produções audiovisuais que apresentam vivências trans fora de estereótipos de agressividade ou de humor. Por exemplo, Euphoria (HBO) e Sense8 (Netflix, dirigida pelas irmãs Wachowski, duas mulheres transgênero), entre outras que documentam histórias e lutas da comunidade, como A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson (Netflix) e Revelação (Netflix). Revelação (em inglês Trans Lives on Screen) analisa, com análises  cineastas e estudiosos transgêneros, o amplo aumento de obras audiovisuais com narrativas trans e o seus impactos sobre a população trans e travesti.

A representatividade nas mídias e em demais espaços de poder são fontes de inspiração para as novas gerações e também de esperança para esta comunidade tão estigmatizada e violentada no Brasil. 

Os efeitos da ocupação desses espaços são incalculáveis e imprevisíveis, mas com certeza formam exemplos que despertam orgulho e uma luta cada vez mais forte em defesa dos direitos das pessoas transgênero.

“Existe um provérbio africano que eu gosto muito que fala: enquanto os leões não contarem a sua própria história, os caçadores continuarão sendo os heróis. É sobre isso que estamos falando: enquanto nós não contarmos as nossas próprias histórias e não construirmos essa história, o fascismo, o ódio, a ‘cis-hetero-norma’ continuará a ser heroica”, arremata Erika Hilton, a vereadora mais votada do Brasil, surpreendentemente uma mulher trans, negra e periférica.

Avaliação

Cerca de 17 mil animais são vítimas de abandono no Acre e número aumenta a cada ano

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Por Arielly Casas, Lucas Sousa e Gabriela Queiroz

O município de Rio Branco registra um número de quase 17 mil animais abandonados, segundo o Centro de Zoonoses da Prefeitura de Rio Branco. Esse dado também reflete uma realidade nacional, na qual 25% dos cães e 26% dos gatos estão em situação de abandono, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Um exemplo é o caso de Mimoso, mascote adotado pela clínica veterinária Cães & Cia. Um dos médicos veterinários da clínica, Denis Costa, conta que o gato foi levado há mais de um ano pelo cuidador que o abandonou. O animal estava com uma miíase (infestação da pele por larvas de moscas que se alimentam do tecido do hospedeiro) na cabeça.

Costa também relata que foi um caso difícil de tratar e que ninguém acreditava na recuperação. Agora, após 18 meses, Mimoso está totalmente recuperado.

“O mascote que nós temos aqui, ninguém acreditava que estaria vivo. Era um caso em que ninguém confiava, e agora ele está esbanjando saúde”, disse o veterinário.

Na imagem, o veterinário Denis e o mascote Mimoso. Foto: Lucas Sousa

Esse não é o único registro de casos assim. Trata-se de uma questão alarmante, que cresce cada vez mais e configura um crime previsto na legislação brasileira. Segundo o artigo 32 da Lei Federal nº 9.605/1998, o abandono e os maus-tratos contra animais são crimes, com pena de três meses a um ano de detenção, além de multa. Em 2020, houve uma modificação, aumentando a pena para dois a cinco anos de reclusão, conforme a Lei Federal nº 14.064/2020.

ONGs

Um dos maiores desafios enfrentados pelos ativistas de Organizações Não Governamentais (ONGs) é o alto custo dos tratamentos para os animais resgatados. Vanessa Facundes, presidente da ONG Patinha Carente, explica que a organização não consegue realizar o resgate de todos os animais devido as dívidas acumuladas com as clínicas veterinárias.

“Gostaríamos de poder resgatar todos, mas temos dívidas muito altas nas clínicas veterinárias particulares”, argumentou a presidente da ONG.

Projeto de Lei

No Acre, dos 24 deputados estaduais, Emerson Jarude (NOVO) defende a causa animal e já possui um projeto de ação em parceria com a Universidade Federal do Acre (Ufac): o Projeto Cuidar, que tem como objetivo atender aos animais de rua. Instituições e ONGs que realizam trabalhos com esse foco também serão beneficiadas pelo projeto.

Jarude também anunciou o lançamento de um novo projeto: o Pet Farm (Farmácia de Pet), que será uma extensão do Projeto Cuidar.

“O Pet Farm é uma forma de conseguirmos disponibilizar medicamentos para os animais e auxiliarmos após o tratamento feito dentro desse projeto”, afirmou.

Poder público

A equipe de reportagem tentou contato com o Centro de Zoonoses da Prefeitura de Rio Branco para comentar a situação, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto para qualquer posicionamento ou esclarecimento por parte do poder público.

A crescente população de animais abandonados em Rio Branco evidencia a urgência de políticas públicas efetivas, parcerias institucionais e o engajamento da sociedade civil. Proteger os animais é também um dever social e legal, que exige mais do que boa vontade, é preciso ação.

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Cotidiano

Do papel às telas: a transição do jornal impresso acreano para o digital

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Por Ana Luiza Pedroza, Ádrya Miranda, Daniel de Paula e Wellington Vidal

 

O jornal impresso, símbolo histórico e cultural no Acre, começa a se despedir lentamente do cotidiano da população. A era digital assume o protagonismo, apostando em novos formatos de levar acesso à informação, no entanto, sem apagar o legado construído pelo impresso na história acreana.

Apesar dos esforços para reinventar o jornalismo local, a transição do impresso para o digital trouxe grandes desafios. No Acre, essa movimentação ocorreu de forma tardia, mas com a contribuição de jornalistas que se desdobram diariamente para acompanhar as mudanças no modo de noticiar, mantendo o compromisso social com a população.

Entre os obstáculos, a pandemia de Covid-19 foi um dos que aceleraram o declínio dos jornais impressos em todo o país, e no Acre não foi diferente. O A Gazeta, um dos veículos mais populares do estado, foi diretamente impactado.

Rotativa, máquina utilizada na impressão dos jornais A Gazeta. Foto: Ádrya Miranda

Fundado em 1985, sob direção de Silvio Martinello e Elson Martins, o jornal se destacou pelo jornalismo investigativo e de cunho social, sendo pioneiro em projetos editoriais gráficos com diagramação no impresso acreano. Foi por meio de suas páginas que os acreanos acompanharam coberturas históricas, como o assassinato do sindicalista Chico Mendes.

Em 1998, tornou-se o primeiro jornal a circular em cores no estado, com até 3.500 exemplares vendidos em dias movimentados, segundo Silvio. Apesar das inovações com o jornal impresso, o veículo enfrentou as adaptações tecnológicas do século 21. O portal online, criado ainda nessa fase, tinha estrutura simples, servindo apenas para replicar, de forma reduzida, as notícias do jornal físico.

À esquerda, Maíra Martinello; ao fundo, Paula Martinello; e à direita, Silvio Martinello. Foto: Arquivo pessoal

A edição impressa teve o seu fim em 2021, após uma expressiva queda nas vendas. Paula Martinello, jornalista do A Gazeta do Acre, relata que a migração definitiva para o digital foi desafiadora e impulsionada pela pandemia. “Foi um processo muito gradativo, porque o trabalho online não é fácil. É muita concorrência, é um outro tipo de público e perfil de consumo da notícia”, comenta.

Para os jornalistas do A Gazeta, hoje, A Gazeta do Acre, o desafio não foi apenas adaptar-se ao ambiente online, mas reinventar a rotina de produção jornalística sem abrir mão da credibilidade construída. Segundo Maíra Martinello, foram necessárias estratégias para garantir a sobrevivência e a relevância no meio digital, que exige mais agilidade, versatilidade e presença em todas as plataformas.

“A gente foi entrando nesse mundo online, digital. Claro que tem pontos positivos, como o custo mais baixo, a praticidade e a democratização do acesso à informação. Mas a era digital exige muito mais do jornalista, que hoje precisa escrever, gravar vídeo, áudio, editar, usar várias ferramentas ao mesmo tempo”, explica.

A transição da notícia do impresso para o ambiente digital, embora tenha sido impactante para todo o campo jornalístico, foi recebida de maneira diferente por cada veículo, conforme suas particularidades. Outro nome importante da imprensa acreana, como o jornal O Rio Branco, também enfrentou esses momentos de transformação.

Portal de notícias oriobranco.net. Foto: Ádrya Miranda

Mendes também reforça a necessidade dos jornalistas manterem seu compromisso social, mesmo diante das mudanças impostas pela era digital. “Se vocês forem jornalistas e pretenderem ser responsáveis, não esperem que a notícia chegue até vocês. Vocês têm que ir atrás da notícia”, conclui.

Essa transformação também é percebida por leitores que acompanharam de perto o auge das edições impressas no Acre. “Porque o jornal é um documento, então ele vai ficar ali para sempre”, comenta o jornalista e leitor assíduo Gleilson Miranda, de 55 anos, ao destacar que o jornal impresso carrega um valor que vai além da notícia do dia, mas também a documentação de histórias.

Segundo ele, com o jornal impresso era possível encontrar experiências afetivas, que marcavam seu momento de leitura.

“O jornal é impresso, tem esse charme, tem essa coisa de você sentar, tomar um café e folhear as páginas, lendo as principais notícias. Isso era muito bom para a época. Hoje você tem essa notícia mais rápida. Notícia que chega muito rápido”, afirmou Gleilson, ao relembrar as sensações que os impressos lhe proporcionaram.

A transição dos jornais impressos para os portais digitais no Acre marca uma mudança profunda no modo de fazer e consumir jornalismo. Conhecer a história da imprensa local, com a contribuição das edições do A Gazeta e O Rio Branco, é essencial para entender o papel que esses veículos tiveram na formação da identidade e da memória do estado.

Edição impressa O Rio Branco. Foto: Arquivo Espaço Cultural Palhukas

Para Narciso Mendes, atual proprietário da TV Rio Branco, o impresso no Acre carrega o legado de muitas figuras marcantes da história local. No entanto, a migração do jornal impresso O Rio Branco para o meio online não teve o mesmo peso como teve para os demais veículos.

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Cotidiano

Mulheres jornalistas superam dificuldades e levantam questões importantes para a sociedade

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Um estudo realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostrou que em 2021 49% das mulheres jornalistas sofreram ataques de gênero sendo desqualificadas com ofensas e xingamentos. No meio digital, o número sobe para 56,76%. Em uma área historicamente dominada por vozes masculinas, apesar das dificuldades as mulheres estão se destacando cada vez em maior número e trazendo à luz temáticas importantes para a sociedade.

Juliana Lofêgo, professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre, diz que a presença das mulheres está influenciando na cobertura de questões sociais, culturais e políticas. Para Lofêgo, elas têm desempenhado um papel significativo em destacar questões de violência contra mulheres e assédio, garantindo que essas problemáticas não sejam esquecidas ou minimizadas pela mídia. “Com o avanço do movimento feminista e as mudanças sociais, as mulheres jornalistas têm sido influenciadas a trazer à tona essas questões, mesmo que isso não tenha sido comum no início de suas carreiras”, complementa.

Consuela Araújo é jornalista formada pela Ufac e atua na área de assessoria de imprensa, ela relata que como jornalista mulher enfrentou estereótipos de gênero e discriminação ao longo da carreira, principalmente fora do jornalismo. Já no telejornalismo, outro campo onde atuou,  diz ter sido bem acolhida por colegas e pela comunidade, entretanto considera que a busca pela igualdade de oportunidades continua sendo uma luta constante. Araújo aconselha as futuras profissionais a buscarem aprimoramento, construir uma rede de contatos sólida e manter a paixão pela verdade e pela narrativa honesta. “Acreditar na importância do jornalismo local é essencial para contribuir significativamente para a sociedade acreana”, afirma. 

Servidora concursada do Estado, a jornalista Andreia Nobre relata que um grande desafio que enfrentou na carreira profissional foi quando se tornou mãe, pois teve que conciliar a maternidade e o trabalho. Ela acredita que esse seja um desafio para as mulheres em qualquer carreira e também para as que trabalham no setor privado.

Apesar das contribuições significativas das mulheres para abordar agendas importantes a serem discutidas na sociedade, a desconfiança em relação a sua capacidade profissional ainda é uma realidade. Ana Paula Melo, estudante do terceiro período do curso de Jornalismo, trabalha como estagiária no jornal Cidade Alerta, ela diz que percebeu que há um preconceito dentro da universidade pelo fato de ser uma mulher estudante de Jornalismo.

“Já vi algumas pessoas torcerem a cara num tom de desconfiança quando falo que faço Jornalismo. Alguns já dizem que somos compradas, e, às vezes, por ser mulher, dizem que ao invés de buscar informações, buscamos fofoca. Em rodinha de amigos, embora ainda seja estagiária, já fui questionada se algum político me paga para fazer matéria sobre ele. Será se eu não tenho capacidade para escrever sobre política? São reflexões que sempre me questiono, afinal, ser mulher é ter a sua capacidade sempre questionada”. Ela acredita que o maior desafio é alcançar credibilidade equivalente a dos homens e enfatiza a importância de inserir mais mulheres em posições de liderança nos veículos de comunicação. 

Texto produzido pelos acadêmicos Ana Caroline Santiago, Adriely Gurgel, Maria Eduarda Melo, Rian Pablo de Oliveira e Júlia Andrade. A produção faz parte da disciplina Fundamentos do Jornalismo.

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