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Aspectos sociais da imigração venezuelana no Acre 

Por Hellen Lirtez

A temperatura na capital acreana (Rio Branco) tem uma média de 32°C, 30°C na sombra. Já na capital venezuelana (Caracas) varia de 28°C a 21°C, o que pode ser considerado um clima agradável. O sol é o elemento que sempre esteve presente na imigração venezuelana, isso os direcionou até terras brasileiras como sendo a única luz guia nos caminhos de um povo que teve de aprender a conviver com o escuro.

A luz solar é algo tão comum na jornada dessas pessoas que seus rostos apresentam vermelhidão, rachaduras, manchas e algumas vezes queimaduras devido a alta exposição. No Brasil, o câncer de pele corresponde a 33% de todos os diagnósticos, e o Instituto Nacional do Câncer (INCA) registra, a cada ano, cerca de 185 mil novos casos. Infelizmente, a radiação solar e seus malefícios são a menor das preocupações de um venezuelano que está buscando ajuda nos semáforos.

 A avenida Ceará pode ser considerada uma das ou se não a avenida mais conhecida do estado, ela é a rota central para bairros como estação, floresta, Manoel Julião etc. Atualmente, há mais de 3 anos e meio ela se tornou uma vitrine que é assistida através da janela quadriculada de um automóvel. o sinal obriga os carros a pararem e durante um minuto e meio  no palco de asfalto e iluminação de sol pino, eles são vistos.

Cena 1 – De uma crise para outra

Todos os países latino-americanos foram colonizados, ou seguem até hoje nos meandros da colonialidade. A Venezuela e o Brasil partilham memórias muito familiares em suas histórias. Governos corruptos, autoritários, altas taxas de desemprego, brigas irracionais entre ideologias, crises políticas e sociais moldam a desordem e o caos no qual os dois países se encontram atualmente.

Para eles, tudo começou a piorar em meados de 2013, quando a Venezuela enfrentava uma crise política em razão da disputa causada pela posse interina de Nicolás Maduro, logo após o afastamento de Hugo Chávez, que mais tarde morreu. Maduro assumiu oficialmente e nos anos que se passaram a situação do país se agravou ainda mais, deixando milhares de pessoas em condições subumanas: sem comida ou renda. 

Durante o ano de 2016, por exemplo, a inflação foi de 800%. Em 2018, Nicolás Maduro se reelegeu, mesmo com altos índices de rejeição. Enquanto isso, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro era eleito. Os dois presidentes são polêmicos e por vezes abusam do poder que têm nas mãos.

Na Venezuela as carnes são consideradas produtos de luxo devido ao seu valor. Em alguns estados, o valor do frango supera os 3 milhões de bolívares, aproximadamente 155 reais. O mesmo frango é uma das carnes mais consumidas pelos brasileiros atualmente devido ao drástico aumento da carne bovina. A cesta básica no Brasil tem um valor médio de 600 reais, o número de desempregados beira 14 milhões e cerca de 40 milhões de brasileiros vivem na miséria, com renda de até R$ 89. Afinal, quantos Brasis cabem em cada brasileiro? 

Estes números contribuem ainda mais para o aumento da criminalidade e agravamento de doenças, principalmente durante a pandemia da Covid-19. Mesmo que o Brasil aparentemente não passe por uma instabilidade tão severa quanto a Venezuela, ele não é o melhor país para pessoas que estão fugindo de uma crise, já que aqui também vivemos uma crise política, econômica e de saúde.

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Cena  – Os indígenas Warao

A primeira vez que o vi foi em agosto de 2019. Neste dia, houve um acidente no centro da cidade e o trânsito estava congestionado, não ia nem para frente, nem para trás. Era exatamente 13h, horário de almoço e de pico no centro rio-branquense. Eu estava atrasada para chegar ao trabalho, quando notei um casal e duas crianças subindo uma ladeira.  O homem andava à frente, seguido por uma mulher grávida, que com uma de suas mãos segurava a barriga imensa e com a outra guiava duas crianças, que também estavam de mãos dadas.

Eles carregavam consigo bolsas feitas de panos coloridos que mais pareciam retalhos costurados um sobre o outro. Elas estavam muito bem amarradas ao redor do tórax. Essa postura de amarrar e manter tudo próximo a si me pareceu ser um reflexo de quem já perdeu muito. Dentro das bolsas notei que haviam placas de papelão e que provavelmente eles estavam vindo de outro lugar, talvez de mudança. 

Enquanto eles subiam a ladeira, o homem, que possivelmente seria o pai das crianças e marido da mulher, paralisa um pouco em frente a um restaurante. Ele observa as pessoas almoçando, as crianças alegram-se. A mulher grávida evita olhar, mas o pai os incentiva a continuar andando. Seus pés, já cansados por atravessar fronteiras, atravessavam também o caminho da fome. Mesmo assim, parecia ser preciso não parar. 

Na sequência, eles subiram a ladeira a um ponto em que eu não conseguia mais acompanhar de dentro do ônibus. Naquele instante olhei para os passageiros, para o motorista, para o trânsito em volta e parecia que apenas eu tinha visto a cena. Presenciei aquilo em plena luz do dia.  Sim, esse retrato é muito comum, mas é justamente isso que causa espanto. Desde então, observo e documento cenas como essa. 

Cena 3 – O abrigo no bairro da Base 

Em 18 de julho de 2020 já completavam cinco meses de pandemia. Acompanhei a professora Flávia Pinheiro em uma ação conjunta, a qual ela havia elaborado com outras educadoras e o Moto Club Abutres. Um caldeirão de sopa encheu mais de 200 copos de sopa, que acompanhavam alguns sacos de pão. O momento era crítico, mas havia chegado ao conhecimento da educadora a situação de um abrigo venezuelano localizado no bairro da Base. 

Professora Flávia Pinheiro, 2020, abrigo do bairro da Base.

Em comboio, Flávia foi até o local. A professora entende bem o que é estar ao relento. Na infância ela passou por situações parecidas quando ainda morava nas periferias de Cuiabá. Para ela, eles vieram para a capital tentar uma vida melhor, assim como ela fez, por isso merecem toda ajuda necessária. Assim que chegaram lá, todos os indígenas venezuelanos que estavam no abrigo se amontoaram e esperaram em grupo, como se isso fosse uma espécie de defesa grupal, estarem juntos.

Quando chegaram lá havia dias em que não comiam direito, sobreviviam pedindo nas casas e sinais, mas devido à pandemia não conseguiam o suficiente. A casa abandonada não tinha portas nem janelas, seu reboco estava desgastado pelo tempo. Entretanto, era um teto que passava uma falsa sensação de segurança para aquelas pessoas. Era impossível contar um a um e todos estavam sem máscaras. As crianças estavam bastante sujas e os pais muito tristes. Uma lona preta cobria a parte da frente, fazendo papel de telhado. 

 A casa possuía em torno de cinco cômodos, não havia colchão no chão, mas sim panos e mais panos marcando o local onde as pessoas dormiam. As crianças fizeram fila para receber o pão e a sopa. É tão violento pensar que as crianças exercem isso de uma maneira não natural. Chega a ser surpreendente como as crianças reagem em situações como essas. Crianças indígenas venezuelanas brincavam e dividiam o pão juntas. 

Crianças indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

Os Warao são conhecidos como povo navegante e possuem costumes comunitários. Percebi isso presencialmente no dia em que visitei o abrigo. Uma garrafa de refrigerante doada por um vizinho foi compartilhada por todas as crianças, de boca em boca até o último gole.

Crianças indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

A senhora de vestido verde que segura um pão é Dolores Zapata. Essa foi a primeira vez que estive próxima dela, mas, não era a primeira vez que a vi de fato. Ao chegar lá, essa senhora de pele queimada e cabelo longo caiu aos prantos e fez um sinal de agradecimento a Deus. Fazia muito tempo que ela e o grupo de indígenas Warao estavam com fome. A senhora pouco falava, quando recebeu o alimento procurou se preocupar apenas com este momento.  Expressava uma enorme felicidade pela ação da professora Flávia, mas carregava em seu olhar muitas outras coisas. 

Dolores Zapata, mulher indígena Warao, 2020.

Dentre as práticas e costumes do povo Warao estão a pesca, caça, agricultura, artesanato e carpintaria. Talvez por isso tenham se identificado tanto com a Amazônia brasileira. Os antepassados Warao eram muito prósperos, todo o tempo trabalhavam e levavam alimentos para suas casas. Porém, devido aos “avanços” capitalistas no ano de 1965, o Governo da Venezuela construiu um dique que obstruiu o Rio Manamo. Esse projeto afetou diretamente a vida dos Warao, por ter causado salinização súbita da água do rio, além de impactar os ecossistemas animais e vegetais. Desde então eles vivem como nômades passando de cidade em cidade.

A jornada dos Warao até o Acre foi longa, eles saíram da cidade de Tucupita, capital de Delta Amacuro, que está localizado no nordeste da Venezuela. Atravessaram sete cidades para chegar na fronteira com o Brasil, no município de Pacaraima, no estado de Roraima. Nesse deslocamento foram 930 km percorridos. De Pacaraima até Boa Vista, foram mais 215 km, e chegando na capital roraimense vivenciaram uma situação de aglomeração com a população venezuelana imigrante. Eles continuaram sua mobilidade para Manaus, até lá foram mais 749 km de estrada. 

Lá se depararam com a mesma situação de Boa Vista, muitos imigrantes buscando refúgio. Optaram por ir para Porto Velho, deslocaram-se pela rodovia BR 319, percorrendo mais 888 km até chegarem na capital rondoniense. Infelizmente, assim como em Manaus e Pacaraima, as condições eram as mesmas e assim preferiram vir para Rio Branco-AC, que fica há 511 km de Porto Velho. O deslocamento total, da origem até Rio Branco, foi de 3.293 km.  Tudo isso por um recomeço. Nem todas as famílias Warao tiveram a mesma oportunidade de chegar direto até a fronteira, pois algumas precisaram fazer viagens em escalas, de povoado em povoado.

Atualmente, os Warao sobrevivem de doações e apoio provenientes, em especial, da sociedade civil, não do Governo, ainda que em alguns estados já existam abrigos e as famílias recebam algum tipo de assistência. Os que não contam com assistência social pedem ajuda nas ruas para conseguir pagar os aluguéis e ter acesso a alimentos. 

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

Os venezuelanos indígenas Warao sofrem as mesmas dificuldades de diversos imigrantes quando chegam no Brasil e principalmente no estado do Acre, ao procurar atendimento na rede de saúde, no CRAS, no terminal rodoviário. Essas instituições não estão preparadas para atender esse público. Os venezuelanos alocados atualmente no Acre se dividem entre indígenas Warao, localizados em sua maioria no bairro Cidade do Povo, e não-indígenas, abrigados no bairro Tancredo Neves. 

Três mulheres, três sinais: Mulheres indígenas Warao

Heloisa, Jéssica e Dolores estão nos semáforos há dois anos. A primeira vez que as vi foi em meados de 2019. Sempre naquele 1 minuto do sinal, para mim tempo que me atrasava para chegar no trabalho ou na faculdade, mas que para elas era muito pouco. Heloisa é mãe de Jéssica e filha de Dolores, uma família de mulheres indígenas Warao. 

As três costumam se dividir em pontos de muita movimentação. Heloisa fica entre a avenida Ceará e a rua Pernambuco, em frente a uma concessionária de veículos, Jéssica fica no mesmo local, porém um pouco mais a frente. Dolores sempre fica no cruzamento da avenida Ceará com a Floriano Peixoto que possui quatro sinais.

Jessica foi a primeira da família Zapata que abordei. Ela estava cansada, o sol das onze estava impiedosamente forte, por isso ela estava sentada. A jovem de 19 anos tem praticamente minha idade, além disso, nosso tom de pele e cor de cabelo são bem parecidos. Após sentar ao seu lado comecei a perceber que das poucas coisas que nos diferia era a nacionalidade. Visivelmente Jéssica estava ali para ajudar a mãe e a avó. Quando perguntei a ela o que ela gostaria de fazer, me respondeu de maneira seca, porém firme: “estudar”. Há dois anos ela saiu da Venezuela, um país onde a educação hoje se encontra defasada. Ao vê-la ali mendigando por centavos me perguntei: onde estaria Jéssica agora se não houvesse crise na Venezuela?

Jessica Zapata sendo entrevistada em seu local de trabalho, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

De longe Heloisa é só uma mulher tentando sobreviver, de perto ela é uma mãe, uma filha, tentando ter o mínimo para comer em um lugar desconhecido. Heloisa é uma mulher tomada pelo silêncio, e seu silêncio diz muito. Antes de abordá-la a observei de dentro do carro, queria saber como era vista do ponto em que ela ia buscando por ajuda. Depois de falar com Jéssica, fui até o meio fio em que Heloisa estava. Seu cabelo estava trançado, uma blusa vinho, saia amarela e nos pés uma havaiana azul turquesa, típica de nosso país. Começamos a conversar, no entanto, todas perguntas sobre como ela veio até aqui ficaram sem resposta. Ela procurava palavras, mas não sabia o que dizer. Seu olhar estava trêmulo e parecia que a qualquer momento lágrimas iriam lavar seu rosto. Em seu pescoço havia um colar com uma imagem colorida de Cristo ao qual ela apertava enquanto desviava seu olhar. O silêncio é algo assustador quando se tem muito a dizer e a cobrar, quando já se gritou muito a ponto de perder a própria voz. Quando estava dentro do carro a observando percebi que havia uma frase bíblica em suas costas que contrastava com aquele momento.

“Porque as estrelas dos céus e as suas constelações não darão a sua luz; o sol se escurecerá ao nascer, e a lua não resplandecerá com a sua luz.” Isaías 13:10

Heloísa Zapata, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Baseado nesta frase perguntei a ela se a fé a havia trazido para o Brasil e ela me respondeu, “estou aqui por causa da fé”. A fé, que assim como move montanhas, moveu pés venezuelanos para esta parte do continente latino-americano.

Dentre os carros desfila uma senhora de mais ou menos 65 anos. Reconheci de imediato que se tratava de Dolores Zapata. Desde a primeira vez que a vi ela usa os mesmos vestidos verdes, a cor da esperança. Ela não queria conversar, queria apenas continuar sua jornada entre os carros. Com um pote de creme cortado, a idosa passa entre as máquinas de metal estacionadas momentaneamente, alguns dão cinco centavos, outros, cinco reais. 

Dolores Zapata, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Os Warao são pessoas muito desconfiadas, mesmo que recebem ajuda não se acomodam e assim vão para os sinais. Essa prática é denominada por eles como “coleta”. Em grupos, indígenas Warao saem da Cidade do Povo até o Centro da cidade bem cedo pela manhã, para conseguir dinheiro ou alimento. Essa prática geralmente é realizada pelas mulheres enquanto os homens as vigiam de longe.

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Há uma pequena diferença da atuação de indígenas Warao e venezuelanos não-indígenas.  Geralmente os Warao são bem diretos em suas placas “ajuda para comer”, já os não-indígenas além de pedirem ajuda e comida pedem também por trabalho.

A língua é um fator importante na hora de pedir dinheiro e ajuda, pois os Warao trazem aspectos próprios de sua etnia, apesar de se comunicarem em espanhol. O Brasil é rodeado de países falantes da língua espanhola, apesar disso, o investimento linguístico sempre é voltado para o inglês. Essa preferência pela linguagem é apenas uma das evidências que ainda nos permeiam após a colonização de 1500.

No Acre, mesmo os Warao tendo grandes habilidades, desde a pesca até a confecção de artesanato, a única saída para conseguir recursos financeiros para a sua subsistência são as ruas. Diferente dos brasileiros que vendem água de coco, doces ou pão no sinal. Seu único minuto de atenção possível é o do sinal. Nesse curto espaço de tempo é preciso andar entre os carros, erguer a placa e esperar que alguém se comova. Mas nem todos são comovidos.

A esperança mora em um sorriso

11 de março de 2020, quinta-feira, mais um dia de trabalho para Milagros Antuan. A mulher de 39 anos costuma chegar cedo em um dos principais sinais da Avenida Ceará. De calça jeans, blusa rosa de manga longa, tênis branco, chapéu e uma placa de papelão na mão. A mãe de três filhos era secretária executiva de uma grande empresa na Venezuela, ela sempre buscou um bom futuro profissional. Porém, no Brasil, não conseguiu fazer os trâmites necessários para validação de seus documentos.Em contraponto a isso, foi  orientada pelo Ministério Público para conseguir sua cidadania brasileira, a qual ela tem muito orgulho.Milagros é formada em engenharia de sistemas, mas como não conseguiu um emprego no país precisa se deslocar no meio fio.

Milagros, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Carros vêm e vão, o sol aquece, a temperatura aumenta, mas ela permanece no mesmo lugar. Ela espera o sinal fechar para andar nas vielas que se formam entre os carros, alguns carros como a Hilux da foto não chegam sequer a abrir o vidro, simplesmente ignoram. Por dia ela consegue arrecadar cerca de 40 reais. Parece pouco, mas isso paga o apartamento de 250 reais em que ela mora. Milagros se sente tão grata pela ajuda que teve no país para obter sua cidadania, que em nenhum momento da entrevista cita a xenofobia e a rejeição pelas quais passa na avenida mais movimentada do estado. 

Enquanto eu anotava algumas informações sobre Milagros, um rapaz notou que eu estava com uma câmera no pescoço e em seguida começou a fazer pose. Logo, achei divertido seu jeito descontraído e fui falar com ele. John Azevedo já carrega em seu nome certa brasilidade e ele se encaixa perfeitamente no refrão da música “Apenas um rapaz latino-americano”, do cantor Belchior: “eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior.”

Jhon Azevedo, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

 Nunca passaria pela minha cabeça que aquele limpador de vidros seria um venezuelano. John estava “camuflado” no meio de outros rapazes da sua idade que trabalham no sinal. Quando o entrevistei, havia pouco tempo que chegara de Ji-paraná (Rondônia). Seu objetivo em limpar carros no Acre é conseguir uma passagem para a Bolívia e depois para o Chile. 

No dia em que nos falamos ele havia conseguido apenas 6 reais, porém estava muito feliz, aquele era o dinheiro do almoço. John não veio sozinho para o Brasil, ele tinha uma companheira, porém, ela o abandonou para ficar com sua família e agora ele vaga em busca de conhecer outra mulher que o acompanhe em suas aventuras internacionais. Apesar de jovem, o rapaz já esteve em diversos países como Guiana-francesa, Argentina e Peru.

Quando está nos sinais sua abordagem é muito nostálgica “buenos días señor, buenos días señora, ayuda a este pobre hombre”. Ele entrava com um sorriso e saia com o outro ainda maior. De um jeito muito carismático ele tentava convencer as pessoas a ajudá-lo. John relatou que sofreu preconceito em outros países, mas no Brasil sentia que tudo era “normal”. Naquele momento percebi o porquê de ele se sentir completamente aceito em um país que mata diariamente jovens como ele. John não levava índices como esse em consideração, mas sim o simples fato de saber que não há diferença física nos traços de um jovem venezuelano e um brasileiro. 

Jhon Azevedo, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

A caminho do Acre, John perdeu um amigo quando ainda estava em Ji-Paraná. Segundo ele, seu amigo não havia feito nada e trabalhava informalmente como ele, mesmo assim o mataram. Mesmo em meio a tantos problemas, o rapaz de 25 anos latino-americano vê o mundo como um lugar de exploração e oportunidade. 

Milagros e John não se conheciam antes dos sinais acreanos, se conheceram assim, dividindo o ambiente de trabalho a céu aberto. O que há de mais comum entre os dois é a esperança de dias melhores. Sua maneira de ver nosso país chega a surpreender. Depois da entrevista, vi um vendedor de pão chamá-los para beber água. Ali percebi o porquê de eles serem tão gratos. Ser um nômade deve ser cansativo, você parte antes de criar raízes.  No caso de John talvez ele ainda desbrave muitos lugares com o seu sorriso, já Milagros permanecerá em terras acreanas sonhando com o dia em que seu currículo será traduzido e aceito.

Toda a incerteza que encontrei na caminhada em busca dos imigrantes da Venezuela me lembra quando Alice, no país das maravilhas de Lewis Carroll, encontra o gato de Cheshire. 

“ O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?
Isso depende muito de para onde você quer ir, respondeu o Gato.
Não me importo muito para onde, retrucou Alice.
Então não importa o caminho que você escolha, disse o Gato.
Contanto que dê em algum lugar, Alice completou.
Oh, você pode ter certeza que vai chegar se você caminhar bastante, disse o Gato.”

Não importa muito onde eles estavam indo ou onde desejavam ir, qualquer caminho já serviria. Assim como Alice, os venezuelanos, sejam indígenas ou não-indígenas, estão buscando alguém que lhes aponte um caminho seguro para continuar com menos medo. fato é, eles continuarão se movimentando sempre que necessário, sempre para onde o sol brilha com mais força. Seja em terras brasileiras ou não, é importante lembrarmos que somos todos filhos do mesmo sol.

Jhon Azevedo e Milagros, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

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Como as redes sociais moldam a personalidade de crianças e adolescentes

O contato constante com conteúdos virtuais pode gerar ansiedade e necessidade de aceitação

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Por Gabriela Fintelmann e Natália Lindoso

A pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024 revela que 83% dos jovens entre 9 e 17 anos usam redes sociais como WhatsApp, Instagram, TikTok e YouTube. O levantamento, feito com 2.424 crianças e adolescentes e o mesmo número de responsáveis, mostra o impacto crescente dessas plataformas no cotidiano infanto juvenil.

Uma delas é a estudante Alicia da Luz, de apenas 10 anos, que já tem uma rotina digital típica da nova geração. Seguidora assídua das trends do TikTok, ela gosta de acompanhar dancinhas, músicas e desafios. Às vezes, as canções ficam tanto tempo na cabeça que ela começa a dançar sozinha em locais públicos. “Eu acho que influencia um pouquinho, porque tem vezes que dá vontade de dançar muito”, conta.

Com conteúdos rápidos, que viralizam em questão de horas, as trends acabam moldando hábitos, linguagem e comportamentos. Mas essa exposição constante também levanta alertas, como influência na autoestima das crianças, Alicia diz que já ficou triste ao se comparar com outras meninas da Internet. “Tem vezes que isso machuca, porque às vezes, eu estou desarrumada e do nada aparece uma menina bem arrumada na minha ‘for you’”, relata.

Psicóloga Samara Pinheiro. Foto: Arquivo Pessoal

Influências e riscos 

Nem todos os jovens se sentem pressionados. Para o irmão de Alicia, Adam da Luz, de 13 anos, diz não se importar em seguir trends: “Gosto de assistir vídeos de jovens que participam da igreja. Mas não sinto pressão. Prefiro sair pra jogar bola”, afirma. Mesmo assim, reconhece os dois lados da moeda: “O lado bom do TikTok é que dá pra ganhar dinheiro. Mas o lado ruim são os golpes e vídeos falsos”.

Para a pedagoga Maria do Carmo, mãe dos dois jovens, os filhos possuem uma boa relação quanto ao uso de telas. Ela monitora e alerta quando o conteúdo pode ser negativo para eles. Ainda assim, a pedagoga reconhece que o consumo pode afetar a autoestima deles: “os conteúdos mostram uma forma de viver luxuosa, sem problemas, onde tudo dá certo, então com isso eles criam sonhos, pois acreditam que tudo pode ser como a vida dos influenciadores”.

O professor de língua portuguesa Marcos Freire é pai do Gabriel, de 11 anos. Para ele, as redes sociais podem, sim, contribuir para o amadurecimento. “Como somos sujeitos constituídos pelos discursos que nos rodeiam, meu filho foi naturalmente interpelado por uma rede muito grande de ideias e informações. Isso fez com que ele tivesse rapidamente posicionamentos diversos, o que é uma espécie de amadurecimento cognitivo precoce”, reflete. 

Adam e Alícia. Foto: Arquivo Pessoal

Por outro lado, ele também vê riscos. “No que se refere ao amadurecimento sociointeracional, pode haver prejuízos. Por isso, acredito que o equilíbrio seja a melhor decisão: observar o tempo de tela, a idade de início e oferecer orientações constantes”, diz. 

Impactos psicológicos 

A relação dos jovens com as redes sociais acendem um sinal de alerta para pais, escolas e profissionais da saúde. O contato constante com conteúdos virais, números de curtidas e seguidores pode afetar diretamente a autoestima e o desenvolvimento emocional dos adolescentes.

A psicóloga Samara Pinheiro reforça que o contato com ideais inatingíveis pode provocar sentimentos de insuficiência. “Isso ativa comparações entre o self real [a forma como a criança se percebe no mundo real] e o idealizado, gerando angústia. O adolescente está em construção e, ao tentar corresponder a padrões irreais, pode desenvolver insegurança, ansiedade e até problemas com a imagem corporal”, explica.

Nesse cenário, o papel da família e da escola é fundamental. A orientação deve vir antes do controle. “O adolescente é espelho. Se os pais não dão o exemplo de um uso equilibrado, as regras perdem o sentido”, reforça a psicóloga. Estabelecer horários para o uso das redes, conversar sobre o que é consumido e incentivar outras atividades fora do ambiente virtual são caminhos possíveis.

Maria do Carmo. Foto: Arquivo Pessoal

Marcos Freire concorda com a psicóloga, para ele, a construção da identidade é um processo delicado, especialmente em um ambiente tão multicultural e acessível como as redes. “A plasticidade exacerbada de quem o sujeito pode se tornar pode gerar conflitos. Por isso, a família deve ser apoio, referência e promotora de ideais. Isso fortalece o caminho dos nossos jovens”, diz. 

Outros caminhos

As redes sociais oferecem oportunidades de aprendizado, conexão e diversão. Alicia cita os filtros, quizzes e vídeos educativos como pontos positivos. “Tem vídeo de pergunta e de quiz que eu gosto. Mas tem também os vídeos ruins, de maus-tratos com animais, vídeos adultos. Isso me deixa muito triste”, conta. 

Mesmo entre crianças, já há percepção crítica sobre o conteúdo. “No Instagram, aparecem mais coisas feias do que no TikTok. Quando vou seguir alguma amiga, vejo umas coisas que fico horrorizada”, relata Alicia.

As falas das crianças, adolescentes e seus responsáveis apontam que a influência digital não é apenas uma questão de tempo de tela. O apoio familiar é importante, sem o uso do controle, mas da orientação: “Se a família tiver possibilidade, ofereça outras alternativas ao mundo virtual, seja um hobby, dança, leitura ou exercício. É importante também observar os sinais de alerta, o comportamento daquele adolescente”, finaliza.

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Adoção LGBTQIAPN+ no Acre

Pedidos por casais homoafetivos desafia estigmas e amplia debate sobre inclusão

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Por Ana Paula Melo e Pedro Amorim

No Acre, 104 crianças e adolescentes vivem atualmente em situação de acolhimento institucional ou familiar. Desses, 21 estão aptos para adoção, enquanto 18 estão em processo. Entre 2019 e 2025, 145 adoções foram efetivadas no estado. Em contrapartida, 626 crianças e adolescentes foram reintegrados às suas famílias desde 2019,  uma prioridade prevista na legislação. Hoje, há 65 pretendentes habilitados à adoção no estado, sendo a maioria residente em Rio Branco.

Os dados mais recentes também revelam um cenário ainda marcado por lacunas e pouca visibilidade: apenas dois casais homossexuais constam oficialmente como pretendentes à adoção no estado. O número pode não refletir a realidade, já que 57 dos cadastros não informam orientação sexual, um dado que ainda enfrenta subnotificação e o silêncio motivado por receios sociais ou institucionais.

Apesar disso, o Acre possui um dos processos mais ágeis do país: o tempo médio entre o pedido e a sentença de adoção é de 5 meses, inferior à maioria dos estados brasileiros. Isso é possível graças à integração do estado ao Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), criado em 2019 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de unificar informações sobre crianças acolhidas e pretendentes à adoção. A ferramenta digital também permite maior controle de prazos e mais transparência em cada etapa do processo.

Em meio a esse cenário, casais homoafetivos como Breno Geovane Azevedo Caetano e Rosicley Souza da Silva representam um movimento crescente e necessário: o de famílias diversas que buscam oferecer afeto, segurança e estrutura a crianças em situação de vulnerabilidade e que, por vezes, precisam também enfrentar estigmas e barreiras sociais.

As etapas da adoção

Breno e Rosicley estão há quase oito meses na fila de adoção e contam como têm vivido esse processo.A decisão de adotar veio antes do início dos trâmites legais. “Então, fomos buscar o Juizado da Infância e Juventude para saber quais eram os procedimentos e a documentação necessária”,  conta Breno. O casal, ambos com formação de mestrado, relata que desde o início foi bem orientado e acolhido pelas instituições envolvidas.

O processo de habilitação seguiu com certa rapidez: em apenas dois meses, Breno e Rosicley concluíram todas as etapas exigidas para entrar no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Fizeram um curso online obrigatório, entrevistas com psicóloga e pedagoga do Juizado e uma visita técnica ao lar do casal. “Achamos que foi bastante célere. Esperávamos de três a quatro meses para todo esse trâmite”, comentam.

No entanto, mesmo após a habilitação, o casal ainda aguarda na fila de adoção, sem previsão definida para a chegada da criança. “Estamos no SNA desde o início de dezembro e já se passaram quase oito meses. A fila anda, mas de forma muito irregular. Às vezes avança, às vezes quase não se movimenta”, explica Rosicley.

Eles optaram por adotar um menino de até 4 anos e meio, considerando crianças de cinco estados brasileiros onde possuem rede de apoio familiar. Ainda assim, avaliam ampliar o cadastro para todo o território nacional, embora isso exija planejamento financeiro, já que os custos são arcados integralmente pelos adotantes.

Sobre a experiência enquanto casal homoafetivo, o relato é positivo: não houve preconceito institucional. “Na verdade, foram bastante acolhedores”, afirmam. “O que mais nos animou foi o acolhimento das nossas famílias e amigos com o fato de querermos adotar.”

A principal preocupação agora é com o futuro. “Nos inquieta pensar em como nosso filho será tratado por uma sociedade ainda machista e paternalista”, reflete Breno. Ainda assim, eles seguem esperançosos: “O processo até aqui tem sido justo, dentro do que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente.”

Visão de quem venceu a burocracia 

Maria Silva e Lucia Souza são um casal homoafetivo que, em meio ao início da pandemia de Covid-19, em 2020, realizou um sonho: adotaram uma criança após três anos de um processo marcado por burocracias e desafios. Apesar das dificuldades enfrentadas, elas destacam que a experiência foi marcada por respeito e acolhimento, especialmente no Acre.

“Sempre fomos tratadas com respeito e igualdade. A demora em si é no sistema de adoção. Por isso, muitas crianças crescem e só vão pra adoção de fato já grandes, porque é um processo lento, burocrático”, afirmou Maria Silva.

Para o casal, os maiores desafios não vieram do Judiciário ou das instituições, mas de estigmas sociais profundamente enraizados na sociedade brasileira sobre o que significa adotar. 

“Na sociedade, em geral, predomina um preconceito em relação à adoção. Ouvimos diversas vezes: Vocês não podem ter filhos biológicos, por isso adotaram? Então, acham que adoção significa caridade ou impossibilidade de gerar filhos biológicos, e não é, eu sempre quis adotar, mesmo podendo gerar”, explica Maria.

Embora reconheçam a existência de preconceitos em relação à adoção e à parentalidade homoafetiva, Maria e Lúcia se dizem positivamente surpresas com a recepção no estado. “No Acre nos surpreendemos o quanto fomos abraçadas quando adotamos. Porém, o que sempre nos incomodou foi enxergarem como se estivéssemos fazendo uma caridade com nosso filho. Talvez aí esteja o ponto, trazer que adoção não é ajuda, é uma outra escolha e opção de exercer a maternidade”, destacou.

Por outro lado, Maria Silva alertou para a importância de discutir o assunto na sociedade, trazer pautas na imprensa e desmistificar os estereótipos sobre o assunto. Adoção principalmente no Acre é comunicado como algo triste, traumático, e não é, é amor puro. Nosso filho trouxe vida para as nossas vidas, e escolheria adotá-lo novamente, nunca passou pela nossa cabeça substituir a adoção por fertilização”, pontuou.

O que diz a Lei 

A adoção por casais homoafetivos no Brasil é um direito plenamente garantido por lei, segundo explica a advogada Mariana Castro de Souza, especialista em Direito de Família e Sucessões. De acordo com a jurista, a legislação e a jurisprudência não fazem distinção entre casais homoafetivos e heterossexuais nos processos de adoção.

“Com base no princípio da igualdade todos são iguais perante a lei, sem distinção. Portanto, a legislação brasileira e a jurisprudência consolidada tratam casais homoafetivos da mesma forma que casais heterossexuais nos processos de adoção. Não existe qualquer distinção em lei que impossibilite ou limite a adoção por casais homoafetivos”, afirma.

Mariana Castro- Foto: cedida

Para iniciar o processo de adoção, os requisitos são os mesmos para todos os adotantes, independentemente de sua orientação sexual. Segundo a advogada, “os adotantes precisam ter, no mínimo, 18 anos completos, e deve haver a diferença mínima de 16 anos entre os adotantes e o adotado; os adotantes precisam ter capacidade civil plena e idoneidade moral; se a adoção for conjunta, os adotantes devem ser casados ou conviventes em união estável.”

Mariana Castro. Foto: Cedida

O reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar foi consolidado pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, o que abriu caminho para uma série de direitos, incluindo o da adoção.  Embora não trate especificamente de adoção, o julgamento é considerado um marco, pois garante os mesmos direitos e deveres das uniões heterossexuais. “A partir disso, todos os direitos familiares, inclusive a adoção por casais homoafetivos, passaram a ser assegurados”, detalha.

O procedimento judicial é o mesmo para todos. “O casal homoafetivo deve se habilitar junto à Vara da Infância e Juventude, após isso é realizada uma avaliação interdisciplinar com psicólogos e assistentes sociais, para verificar se o casal possui capacidade de exercer a parentalidade, e o casal também deve participar de cursos preparatórios”, explica a advogada.

Se aprovado, o casal entra no Cadastro Nacional de Adoção. A seguir, começa a etapa de aproximação com a criança ou adolescente, seguida da fase de convivência. Somente após esse processo é que a ação de adoção é formalizada.

Mariana Castro esclarece que o casamento ou união estável é obrigatório para adoção conjunta. “Independentemente de serem heterossexuais ou homoafetivos, se o intuito for a adoção conjunta é necessário que os adotantes sejam casados ou mantenham união estável, para comprovar a estabilidade da família.”

Em situações de separação, a guarda segue os mesmos parâmetros aplicáveis aos casais heterossexuais. “No Brasil, a regra é a guarda compartilhada, que significa que, mesmo após a separação, ambos os pais continuam responsáveis pela tomada de decisões importantes para a vida dos filhos e dividem responsabilidades parentais, ainda que o filho resida com apenas um deles”, afirma. A guarda unilateral só é aplicada em casos de risco ou acordo entre os genitores.

Quanto ao registro da criança, também não há qualquer obstáculo legal. Quando o casal homoafetivo adota conjuntamente, a certidão de nascimento é emitida com o nome dos dois pais ou das duas mães “Uma curiosidade é que atualmente nos documentos de identificação no Brasil a expressão utilizada é ‘filiação’, em substituição aos termos ‘pai’ e ‘mãe’, justamente para evitar qualquer tipo de discriminação, e para garantir a inclusão das diversas formações familiares, especialmente das famílias homoafetivas”, detalhou a advogada.

Barreiras enfrentadas 

O país deu passos importantes nessa pauta, segundo Germano Marino, chefe do Departamento de Promoção dos Direitos Humanos e da Divisão de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTI+ da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Acre (SEASDH). “O Brasil avançou. Nos últimos anos, aumentou o número de adoções e o CNJ publicou a Resolução 532/2023 para coibir discriminação nos tribunais”, explica.

Germano Marino. Foto: Cedida

No entanto, mesmo com esse respaldo jurídico, o preconceito institucional ainda se impõe como uma barreira significativa. “Apesar do respaldo legal, casais LGBTQIA+ ainda enfrentam preconceito de profissionais do Judiciário, burocracia excessiva, interpretações diferentes entre comarcas e resistência em cartórios para registro de dupla parentalidade”, afirma Marino.

Ele ressalta que o preconceito muitas vezes se manifesta de forma sutil, mas prejudicial ao andamento do processo, através de decisões enviesadas, atrasos injustificados no processo, julgamentos morais por parte de assistentes sociais e juízes oufalta de capacitação de servidores. “Muitas instituições ainda operam com base em modelos heteronormativos de família”, pontuou o ativista.

Redação

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Cotidiano

Onde estão os políticos negros no Acre?

Análise dos políticos autodeclarados negros em Rio Branco nas eleições desta década

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Por Beatriz Mendonça e Victor Manoel

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil vive um regime democrático representativo. Isso significa que o povo escolhe seus representantes por meio do voto, e estes, por sua vez, são responsáveis por tomar decisões em nome da população. Partindo desse princípio, seria esperado que os políticos eleitos refletissem, em alguma medida, a composição social do país, incluindo fatores como raça e cor. 

No entanto, ao observarmos o cenário político do Acre, especialmente em sua capital, Rio Branco, percebemos que essa representatividade ainda está longe de se concretizar. A pergunta que se impõe é: onde estão os políticos negros do Acre? Essa promessa da democracia ainda está distante da vivência de grande parte da população negra. A ex-secretária municipal de Igualdade Racial de Rio Branco, Lúcia Ribeiro, comenta:

“Infelizmente, mesmo com a existência de uma lei eleitoral que estabelece cotas, ainda enfrentamos muitos obstáculos. A chamada política de cotas determina que nenhum sexo pode compor mais de 70% ou menos de 30% das candidaturas. Essa regra ficou conhecida como “cota feminina”, mas, na verdade, ela se refere à proporcionalidade de gênero nas candidaturas — não necessariamente à garantia de eleitas […] Esse é um dos pontos que considero fundamentais para entendermos por que não temos uma representatividade que reflita a composição da sociedade”, cita.

Coronel Ulysses do União Brasil. Foto: Reprodução

Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 73,5% da população acreana se declara parda e 6,8% se declara preta. Juntos, pretos e pardos — a população negra, conforme classificação do IBGE — somam 80,3% dos habitantes do estado. No entanto, essa maioria demográfica não se reflete nas urnas nem nas composições das casas legislativas da capital.

Segundo Lucia Ribeiro, o Tribunal Superior Eleitoral começou a registrar a autodeclaração de candidatos e candidatas a partir de 2014. Naquele ano, foram identificadas 281 pessoas autodeclaradas negras. Em 2018, esse número subiu para 305. Já em 2022, tivemos 376 candidatos e candidatas que se autodeclararam pardos, e 315 que se autodeclararam pretos. Destes, 61 foram eleitos.

“Outro fator importante é que muitas dessas pessoas não fazem parte de famílias tradicionais da política. Um exemplo é a deputada Jéssica Sales, que vem de uma família política: a mãe é deputada estadual, o pai já foi deputado e prefeito de Cruzeiro do Sul. Essa trajetória familiar contribui para a inserção dela na política. E, por fim, há a questão da identificação social entre o candidato e o eleitor. Quando não há essa conexão, a campanha perde força e visibilidade”, questiona a especialista.

Caminho sem volta 

Nas eleições para a Câmara de Vereadores de Rio Branco, apenas um vereador autodeclarado preto foi eleito nas duas últimas disputas: João Paulo Silva (PODE), em 2024. Já no cenário estadual e federal, a presença de pretos também é mínima. Em 2022, apenas um deputado federal preto foi eleito (Coronel Ulysses, do União Brasil) e apenas um deputado estadual (Edvaldo Magalhães, do PCdoB), pegando como base, os dados dos votos apenas da capital acreana. Isso demonstra uma sub-representação evidente, especialmente dos pretos, mesmo entre os grupos que se autodeclaram negros.

João Paulo Silva do PODE. Foto: Reprodução

Ribeiro reforça a gravidade da invisibilidade política da população preta, especialmente das mulheres:

“Infelizmente, as pessoas ainda não fazem a associação direta do voto com a identidade do candidato. Raramente alguém diz: ‘Vou votar nesse candidato porque ele é preto, pardo ou negro e vai defender essa causa no parlamento’, ou ‘Vou votar nessa mulher porque, como mulher, ela vai representar os interesses das mulheres na sociedade”, reflete.

Outro ponto importante quando falamos em barreiras é a violência política e a violência de gênero. Essa violência ocorre tanto durante a campanha, no momento em que a candidatura é colocada, quanto durante a gestão de um mandato ou em cargos públicos.

Segundo pesquisas, na última eleição houve 542 casos de violência política e eleitoral, com 497 vítimas, incluindo tentativas de assassinato. Tivemos, por exemplo, o caso de uma vereadora no município de Bujari, que enfrentou intimidações e constrangimentos, uma situação bastante comum que desestimula muitas mulheres e pessoas negras a se colocarem como candidatas, reflete Ribeiro.

Quanto aos candidatos pardos, houve um crescimento nas eleições municipais. Em 2020, dos 17 vereadores eleitos, 9 eram pardos (52,94%); já em 2024, dos 21 eleitos, 14 se declararam pardos (66,67%). Ainda assim, esse percentual está abaixo da presença dos pardos na população geral. Para os cargos de deputado estadual em 2022, 58,33% dos eleitos foram pardos. Já para deputado federal, os pardos representam apenas 37,5% dos eleitos.

Edvaldo Magalhães, do PCdoB. Foto: Reprodução

“As pessoas eleitas que se autodeclararam negras não foram eleitas por serem negras. Primeiro, porque acredito que essas pessoas não se autodeclararam pretas ou pardas apenas para preencher cotas. Mas o ponto principal é que essas pessoas não se elegeram com base em uma consciência racial, em um letramento racial ou em um projeto de mandato voltado à promoção da igualdade racial e ao enfrentamento do racismo. Por que eu digo isso? Porque essas pessoas, em sua maioria, não exercem seus mandatos com foco nessa pauta”, descreve Ribeiro.

Necessidade de mudanças

Considerando todos os cargos legislativos citados (vereadores, deputados estaduais e federais) eleitos entre 2020 e 2024 em Rio Branco, a representação negra chega a cerca de 61,43% — número ainda inferior aos 80,3% da população. Além disso, dentro desse grupo, os pretos seguem sendo drasticamente minoria, evidenciando que a desigualdade é ainda mais acentuada dentro da própria população negra.

A proporção de votos válidos para candidatos pretos quase dobrou, de 4,8% em 2020 para 8,1% em 2024. Embora João Paulo Silva tenha sido eleito, o número é pouco comparado ao tamanho da demanda política. Para Lúcia Ribeiro, mudar esse cenário exige mais do que ajustes partidários. É preciso reconhecer a política como território histórico de exclusão e agir de forma estratégica e coletiva para inverter essa lógica.

A maioria das pessoas eleitas não têm uma preocupação maior com o empobrecimento da população negra, com essa situação de exclusão em que o racismo estrutural coloca a população negra: no subemprego, no desemprego, na economia informal. A maioria das mães negras está em programas de transferência de renda, cita a entrevistada.

Assembleia Legislativa do Acre (Aleac). Foto: Juan Diaz/ContilNet

A questão ambiental também. Quando há as alagações, a população negra mora próximo aos igarapés, às fontes d’água, aos cursos d’água e são as primeiras a serem alcançadas. São levadas para o Parque de Exposição. Durante esse momento de secura que estamos vivendo agora, a população negra é a que fica sem água, que não tem infraestrutura, que sofre os agravos das consequências dessas questões ambientais.

“Além disso, é necessário garantir a aplicação real do fundo partidário e dos tempos de televisão e rádio para as candidaturas negras. É fundamental que os partidos, sejam de direita, de esquerda ou de centro, comecem a se organizar e a tratar essa pauta com mais seriedade. Que não continuem descumprindo a lei e depois indo ao Congresso pedir anistia, como vimos acontecer agora, em 2025. Vários partidos, federações e coligações não cumpriram a cota estabelecida, e eles mesmos criaram uma lei para se anistiar do descumprimento de uma norma que eles próprios aprovaram”, finaliza.

Confira mais detalhes das estatísticas levantadas aqui.

Redação

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