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Aspectos sociais da imigração venezuelana no Acre 

Por Hellen Lirtez

A temperatura na capital acreana (Rio Branco) tem uma média de 32°C, 30°C na sombra. Já na capital venezuelana (Caracas) varia de 28°C a 21°C, o que pode ser considerado um clima agradável. O sol é o elemento que sempre esteve presente na imigração venezuelana, isso os direcionou até terras brasileiras como sendo a única luz guia nos caminhos de um povo que teve de aprender a conviver com o escuro.

A luz solar é algo tão comum na jornada dessas pessoas que seus rostos apresentam vermelhidão, rachaduras, manchas e algumas vezes queimaduras devido a alta exposição. No Brasil, o câncer de pele corresponde a 33% de todos os diagnósticos, e o Instituto Nacional do Câncer (INCA) registra, a cada ano, cerca de 185 mil novos casos. Infelizmente, a radiação solar e seus malefícios são a menor das preocupações de um venezuelano que está buscando ajuda nos semáforos.

 A avenida Ceará pode ser considerada uma das ou se não a avenida mais conhecida do estado, ela é a rota central para bairros como estação, floresta, Manoel Julião etc. Atualmente, há mais de 3 anos e meio ela se tornou uma vitrine que é assistida através da janela quadriculada de um automóvel. o sinal obriga os carros a pararem e durante um minuto e meio  no palco de asfalto e iluminação de sol pino, eles são vistos.

Cena 1 – De uma crise para outra

Todos os países latino-americanos foram colonizados, ou seguem até hoje nos meandros da colonialidade. A Venezuela e o Brasil partilham memórias muito familiares em suas histórias. Governos corruptos, autoritários, altas taxas de desemprego, brigas irracionais entre ideologias, crises políticas e sociais moldam a desordem e o caos no qual os dois países se encontram atualmente.

Para eles, tudo começou a piorar em meados de 2013, quando a Venezuela enfrentava uma crise política em razão da disputa causada pela posse interina de Nicolás Maduro, logo após o afastamento de Hugo Chávez, que mais tarde morreu. Maduro assumiu oficialmente e nos anos que se passaram a situação do país se agravou ainda mais, deixando milhares de pessoas em condições subumanas: sem comida ou renda. 

Durante o ano de 2016, por exemplo, a inflação foi de 800%. Em 2018, Nicolás Maduro se reelegeu, mesmo com altos índices de rejeição. Enquanto isso, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro era eleito. Os dois presidentes são polêmicos e por vezes abusam do poder que têm nas mãos.

Na Venezuela as carnes são consideradas produtos de luxo devido ao seu valor. Em alguns estados, o valor do frango supera os 3 milhões de bolívares, aproximadamente 155 reais. O mesmo frango é uma das carnes mais consumidas pelos brasileiros atualmente devido ao drástico aumento da carne bovina. A cesta básica no Brasil tem um valor médio de 600 reais, o número de desempregados beira 14 milhões e cerca de 40 milhões de brasileiros vivem na miséria, com renda de até R$ 89. Afinal, quantos Brasis cabem em cada brasileiro? 

Estes números contribuem ainda mais para o aumento da criminalidade e agravamento de doenças, principalmente durante a pandemia da Covid-19. Mesmo que o Brasil aparentemente não passe por uma instabilidade tão severa quanto a Venezuela, ele não é o melhor país para pessoas que estão fugindo de uma crise, já que aqui também vivemos uma crise política, econômica e de saúde.

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Cena  – Os indígenas Warao

A primeira vez que o vi foi em agosto de 2019. Neste dia, houve um acidente no centro da cidade e o trânsito estava congestionado, não ia nem para frente, nem para trás. Era exatamente 13h, horário de almoço e de pico no centro rio-branquense. Eu estava atrasada para chegar ao trabalho, quando notei um casal e duas crianças subindo uma ladeira.  O homem andava à frente, seguido por uma mulher grávida, que com uma de suas mãos segurava a barriga imensa e com a outra guiava duas crianças, que também estavam de mãos dadas.

Eles carregavam consigo bolsas feitas de panos coloridos que mais pareciam retalhos costurados um sobre o outro. Elas estavam muito bem amarradas ao redor do tórax. Essa postura de amarrar e manter tudo próximo a si me pareceu ser um reflexo de quem já perdeu muito. Dentro das bolsas notei que haviam placas de papelão e que provavelmente eles estavam vindo de outro lugar, talvez de mudança. 

Enquanto eles subiam a ladeira, o homem, que possivelmente seria o pai das crianças e marido da mulher, paralisa um pouco em frente a um restaurante. Ele observa as pessoas almoçando, as crianças alegram-se. A mulher grávida evita olhar, mas o pai os incentiva a continuar andando. Seus pés, já cansados por atravessar fronteiras, atravessavam também o caminho da fome. Mesmo assim, parecia ser preciso não parar. 

Na sequência, eles subiram a ladeira a um ponto em que eu não conseguia mais acompanhar de dentro do ônibus. Naquele instante olhei para os passageiros, para o motorista, para o trânsito em volta e parecia que apenas eu tinha visto a cena. Presenciei aquilo em plena luz do dia.  Sim, esse retrato é muito comum, mas é justamente isso que causa espanto. Desde então, observo e documento cenas como essa. 

Cena 3 – O abrigo no bairro da Base 

Em 18 de julho de 2020 já completavam cinco meses de pandemia. Acompanhei a professora Flávia Pinheiro em uma ação conjunta, a qual ela havia elaborado com outras educadoras e o Moto Club Abutres. Um caldeirão de sopa encheu mais de 200 copos de sopa, que acompanhavam alguns sacos de pão. O momento era crítico, mas havia chegado ao conhecimento da educadora a situação de um abrigo venezuelano localizado no bairro da Base. 

Professora Flávia Pinheiro, 2020, abrigo do bairro da Base.

Em comboio, Flávia foi até o local. A professora entende bem o que é estar ao relento. Na infância ela passou por situações parecidas quando ainda morava nas periferias de Cuiabá. Para ela, eles vieram para a capital tentar uma vida melhor, assim como ela fez, por isso merecem toda ajuda necessária. Assim que chegaram lá, todos os indígenas venezuelanos que estavam no abrigo se amontoaram e esperaram em grupo, como se isso fosse uma espécie de defesa grupal, estarem juntos.

Quando chegaram lá havia dias em que não comiam direito, sobreviviam pedindo nas casas e sinais, mas devido à pandemia não conseguiam o suficiente. A casa abandonada não tinha portas nem janelas, seu reboco estava desgastado pelo tempo. Entretanto, era um teto que passava uma falsa sensação de segurança para aquelas pessoas. Era impossível contar um a um e todos estavam sem máscaras. As crianças estavam bastante sujas e os pais muito tristes. Uma lona preta cobria a parte da frente, fazendo papel de telhado. 

 A casa possuía em torno de cinco cômodos, não havia colchão no chão, mas sim panos e mais panos marcando o local onde as pessoas dormiam. As crianças fizeram fila para receber o pão e a sopa. É tão violento pensar que as crianças exercem isso de uma maneira não natural. Chega a ser surpreendente como as crianças reagem em situações como essas. Crianças indígenas venezuelanas brincavam e dividiam o pão juntas. 

Crianças indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

Os Warao são conhecidos como povo navegante e possuem costumes comunitários. Percebi isso presencialmente no dia em que visitei o abrigo. Uma garrafa de refrigerante doada por um vizinho foi compartilhada por todas as crianças, de boca em boca até o último gole.

Crianças indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

A senhora de vestido verde que segura um pão é Dolores Zapata. Essa foi a primeira vez que estive próxima dela, mas, não era a primeira vez que a vi de fato. Ao chegar lá, essa senhora de pele queimada e cabelo longo caiu aos prantos e fez um sinal de agradecimento a Deus. Fazia muito tempo que ela e o grupo de indígenas Warao estavam com fome. A senhora pouco falava, quando recebeu o alimento procurou se preocupar apenas com este momento.  Expressava uma enorme felicidade pela ação da professora Flávia, mas carregava em seu olhar muitas outras coisas. 

Dolores Zapata, mulher indígena Warao, 2020.

Dentre as práticas e costumes do povo Warao estão a pesca, caça, agricultura, artesanato e carpintaria. Talvez por isso tenham se identificado tanto com a Amazônia brasileira. Os antepassados Warao eram muito prósperos, todo o tempo trabalhavam e levavam alimentos para suas casas. Porém, devido aos “avanços” capitalistas no ano de 1965, o Governo da Venezuela construiu um dique que obstruiu o Rio Manamo. Esse projeto afetou diretamente a vida dos Warao, por ter causado salinização súbita da água do rio, além de impactar os ecossistemas animais e vegetais. Desde então eles vivem como nômades passando de cidade em cidade.

A jornada dos Warao até o Acre foi longa, eles saíram da cidade de Tucupita, capital de Delta Amacuro, que está localizado no nordeste da Venezuela. Atravessaram sete cidades para chegar na fronteira com o Brasil, no município de Pacaraima, no estado de Roraima. Nesse deslocamento foram 930 km percorridos. De Pacaraima até Boa Vista, foram mais 215 km, e chegando na capital roraimense vivenciaram uma situação de aglomeração com a população venezuelana imigrante. Eles continuaram sua mobilidade para Manaus, até lá foram mais 749 km de estrada. 

Lá se depararam com a mesma situação de Boa Vista, muitos imigrantes buscando refúgio. Optaram por ir para Porto Velho, deslocaram-se pela rodovia BR 319, percorrendo mais 888 km até chegarem na capital rondoniense. Infelizmente, assim como em Manaus e Pacaraima, as condições eram as mesmas e assim preferiram vir para Rio Branco-AC, que fica há 511 km de Porto Velho. O deslocamento total, da origem até Rio Branco, foi de 3.293 km.  Tudo isso por um recomeço. Nem todas as famílias Warao tiveram a mesma oportunidade de chegar direto até a fronteira, pois algumas precisaram fazer viagens em escalas, de povoado em povoado.

Atualmente, os Warao sobrevivem de doações e apoio provenientes, em especial, da sociedade civil, não do Governo, ainda que em alguns estados já existam abrigos e as famílias recebam algum tipo de assistência. Os que não contam com assistência social pedem ajuda nas ruas para conseguir pagar os aluguéis e ter acesso a alimentos. 

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

Os venezuelanos indígenas Warao sofrem as mesmas dificuldades de diversos imigrantes quando chegam no Brasil e principalmente no estado do Acre, ao procurar atendimento na rede de saúde, no CRAS, no terminal rodoviário. Essas instituições não estão preparadas para atender esse público. Os venezuelanos alocados atualmente no Acre se dividem entre indígenas Warao, localizados em sua maioria no bairro Cidade do Povo, e não-indígenas, abrigados no bairro Tancredo Neves. 

Três mulheres, três sinais: Mulheres indígenas Warao

Heloisa, Jéssica e Dolores estão nos semáforos há dois anos. A primeira vez que as vi foi em meados de 2019. Sempre naquele 1 minuto do sinal, para mim tempo que me atrasava para chegar no trabalho ou na faculdade, mas que para elas era muito pouco. Heloisa é mãe de Jéssica e filha de Dolores, uma família de mulheres indígenas Warao. 

As três costumam se dividir em pontos de muita movimentação. Heloisa fica entre a avenida Ceará e a rua Pernambuco, em frente a uma concessionária de veículos, Jéssica fica no mesmo local, porém um pouco mais a frente. Dolores sempre fica no cruzamento da avenida Ceará com a Floriano Peixoto que possui quatro sinais.

Jessica foi a primeira da família Zapata que abordei. Ela estava cansada, o sol das onze estava impiedosamente forte, por isso ela estava sentada. A jovem de 19 anos tem praticamente minha idade, além disso, nosso tom de pele e cor de cabelo são bem parecidos. Após sentar ao seu lado comecei a perceber que das poucas coisas que nos diferia era a nacionalidade. Visivelmente Jéssica estava ali para ajudar a mãe e a avó. Quando perguntei a ela o que ela gostaria de fazer, me respondeu de maneira seca, porém firme: “estudar”. Há dois anos ela saiu da Venezuela, um país onde a educação hoje se encontra defasada. Ao vê-la ali mendigando por centavos me perguntei: onde estaria Jéssica agora se não houvesse crise na Venezuela?

Jessica Zapata sendo entrevistada em seu local de trabalho, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

De longe Heloisa é só uma mulher tentando sobreviver, de perto ela é uma mãe, uma filha, tentando ter o mínimo para comer em um lugar desconhecido. Heloisa é uma mulher tomada pelo silêncio, e seu silêncio diz muito. Antes de abordá-la a observei de dentro do carro, queria saber como era vista do ponto em que ela ia buscando por ajuda. Depois de falar com Jéssica, fui até o meio fio em que Heloisa estava. Seu cabelo estava trançado, uma blusa vinho, saia amarela e nos pés uma havaiana azul turquesa, típica de nosso país. Começamos a conversar, no entanto, todas perguntas sobre como ela veio até aqui ficaram sem resposta. Ela procurava palavras, mas não sabia o que dizer. Seu olhar estava trêmulo e parecia que a qualquer momento lágrimas iriam lavar seu rosto. Em seu pescoço havia um colar com uma imagem colorida de Cristo ao qual ela apertava enquanto desviava seu olhar. O silêncio é algo assustador quando se tem muito a dizer e a cobrar, quando já se gritou muito a ponto de perder a própria voz. Quando estava dentro do carro a observando percebi que havia uma frase bíblica em suas costas que contrastava com aquele momento.

“Porque as estrelas dos céus e as suas constelações não darão a sua luz; o sol se escurecerá ao nascer, e a lua não resplandecerá com a sua luz.” Isaías 13:10

Heloísa Zapata, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Baseado nesta frase perguntei a ela se a fé a havia trazido para o Brasil e ela me respondeu, “estou aqui por causa da fé”. A fé, que assim como move montanhas, moveu pés venezuelanos para esta parte do continente latino-americano.

Dentre os carros desfila uma senhora de mais ou menos 65 anos. Reconheci de imediato que se tratava de Dolores Zapata. Desde a primeira vez que a vi ela usa os mesmos vestidos verdes, a cor da esperança. Ela não queria conversar, queria apenas continuar sua jornada entre os carros. Com um pote de creme cortado, a idosa passa entre as máquinas de metal estacionadas momentaneamente, alguns dão cinco centavos, outros, cinco reais. 

Dolores Zapata, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Os Warao são pessoas muito desconfiadas, mesmo que recebem ajuda não se acomodam e assim vão para os sinais. Essa prática é denominada por eles como “coleta”. Em grupos, indígenas Warao saem da Cidade do Povo até o Centro da cidade bem cedo pela manhã, para conseguir dinheiro ou alimento. Essa prática geralmente é realizada pelas mulheres enquanto os homens as vigiam de longe.

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Há uma pequena diferença da atuação de indígenas Warao e venezuelanos não-indígenas.  Geralmente os Warao são bem diretos em suas placas “ajuda para comer”, já os não-indígenas além de pedirem ajuda e comida pedem também por trabalho.

A língua é um fator importante na hora de pedir dinheiro e ajuda, pois os Warao trazem aspectos próprios de sua etnia, apesar de se comunicarem em espanhol. O Brasil é rodeado de países falantes da língua espanhola, apesar disso, o investimento linguístico sempre é voltado para o inglês. Essa preferência pela linguagem é apenas uma das evidências que ainda nos permeiam após a colonização de 1500.

No Acre, mesmo os Warao tendo grandes habilidades, desde a pesca até a confecção de artesanato, a única saída para conseguir recursos financeiros para a sua subsistência são as ruas. Diferente dos brasileiros que vendem água de coco, doces ou pão no sinal. Seu único minuto de atenção possível é o do sinal. Nesse curto espaço de tempo é preciso andar entre os carros, erguer a placa e esperar que alguém se comova. Mas nem todos são comovidos.

A esperança mora em um sorriso

11 de março de 2020, quinta-feira, mais um dia de trabalho para Milagros Antuan. A mulher de 39 anos costuma chegar cedo em um dos principais sinais da Avenida Ceará. De calça jeans, blusa rosa de manga longa, tênis branco, chapéu e uma placa de papelão na mão. A mãe de três filhos era secretária executiva de uma grande empresa na Venezuela, ela sempre buscou um bom futuro profissional. Porém, no Brasil, não conseguiu fazer os trâmites necessários para validação de seus documentos.Em contraponto a isso, foi  orientada pelo Ministério Público para conseguir sua cidadania brasileira, a qual ela tem muito orgulho.Milagros é formada em engenharia de sistemas, mas como não conseguiu um emprego no país precisa se deslocar no meio fio.

Milagros, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Carros vêm e vão, o sol aquece, a temperatura aumenta, mas ela permanece no mesmo lugar. Ela espera o sinal fechar para andar nas vielas que se formam entre os carros, alguns carros como a Hilux da foto não chegam sequer a abrir o vidro, simplesmente ignoram. Por dia ela consegue arrecadar cerca de 40 reais. Parece pouco, mas isso paga o apartamento de 250 reais em que ela mora. Milagros se sente tão grata pela ajuda que teve no país para obter sua cidadania, que em nenhum momento da entrevista cita a xenofobia e a rejeição pelas quais passa na avenida mais movimentada do estado. 

Enquanto eu anotava algumas informações sobre Milagros, um rapaz notou que eu estava com uma câmera no pescoço e em seguida começou a fazer pose. Logo, achei divertido seu jeito descontraído e fui falar com ele. John Azevedo já carrega em seu nome certa brasilidade e ele se encaixa perfeitamente no refrão da música “Apenas um rapaz latino-americano”, do cantor Belchior: “eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior.”

Jhon Azevedo, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

 Nunca passaria pela minha cabeça que aquele limpador de vidros seria um venezuelano. John estava “camuflado” no meio de outros rapazes da sua idade que trabalham no sinal. Quando o entrevistei, havia pouco tempo que chegara de Ji-paraná (Rondônia). Seu objetivo em limpar carros no Acre é conseguir uma passagem para a Bolívia e depois para o Chile. 

No dia em que nos falamos ele havia conseguido apenas 6 reais, porém estava muito feliz, aquele era o dinheiro do almoço. John não veio sozinho para o Brasil, ele tinha uma companheira, porém, ela o abandonou para ficar com sua família e agora ele vaga em busca de conhecer outra mulher que o acompanhe em suas aventuras internacionais. Apesar de jovem, o rapaz já esteve em diversos países como Guiana-francesa, Argentina e Peru.

Quando está nos sinais sua abordagem é muito nostálgica “buenos días señor, buenos días señora, ayuda a este pobre hombre”. Ele entrava com um sorriso e saia com o outro ainda maior. De um jeito muito carismático ele tentava convencer as pessoas a ajudá-lo. John relatou que sofreu preconceito em outros países, mas no Brasil sentia que tudo era “normal”. Naquele momento percebi o porquê de ele se sentir completamente aceito em um país que mata diariamente jovens como ele. John não levava índices como esse em consideração, mas sim o simples fato de saber que não há diferença física nos traços de um jovem venezuelano e um brasileiro. 

Jhon Azevedo, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

A caminho do Acre, John perdeu um amigo quando ainda estava em Ji-Paraná. Segundo ele, seu amigo não havia feito nada e trabalhava informalmente como ele, mesmo assim o mataram. Mesmo em meio a tantos problemas, o rapaz de 25 anos latino-americano vê o mundo como um lugar de exploração e oportunidade. 

Milagros e John não se conheciam antes dos sinais acreanos, se conheceram assim, dividindo o ambiente de trabalho a céu aberto. O que há de mais comum entre os dois é a esperança de dias melhores. Sua maneira de ver nosso país chega a surpreender. Depois da entrevista, vi um vendedor de pão chamá-los para beber água. Ali percebi o porquê de eles serem tão gratos. Ser um nômade deve ser cansativo, você parte antes de criar raízes.  No caso de John talvez ele ainda desbrave muitos lugares com o seu sorriso, já Milagros permanecerá em terras acreanas sonhando com o dia em que seu currículo será traduzido e aceito.

Toda a incerteza que encontrei na caminhada em busca dos imigrantes da Venezuela me lembra quando Alice, no país das maravilhas de Lewis Carroll, encontra o gato de Cheshire. 

“ O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?
Isso depende muito de para onde você quer ir, respondeu o Gato.
Não me importo muito para onde, retrucou Alice.
Então não importa o caminho que você escolha, disse o Gato.
Contanto que dê em algum lugar, Alice completou.
Oh, você pode ter certeza que vai chegar se você caminhar bastante, disse o Gato.”

Não importa muito onde eles estavam indo ou onde desejavam ir, qualquer caminho já serviria. Assim como Alice, os venezuelanos, sejam indígenas ou não-indígenas, estão buscando alguém que lhes aponte um caminho seguro para continuar com menos medo. fato é, eles continuarão se movimentando sempre que necessário, sempre para onde o sol brilha com mais força. Seja em terras brasileiras ou não, é importante lembrarmos que somos todos filhos do mesmo sol.

Jhon Azevedo e Milagros, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

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Aquífero do Segundo Distrito de Rio Branco: riqueza invisível sob ameaça urbana

Estudos recentes apontam que o aquífero ocupa uma área de 122,46 km². Foto: cedida

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Por Júlio Queiroz e Karina Paiva

No subsolo do Segundo Distrito de Rio Branco está uma das maiores reservas estratégicas de água da capital acreana: o Aquífero Rio Branco. Pesquisadores da Universidade Federal do Acre (Ufac), como Evandro José Linhares Ferreira, Alexsande de Oliveira Franco, Frank Arcos e Jessiane Pereira, têm alertado sobre a importância desse manancial subterrâneo, e destacando que ele possui alta vulnerabilidade à contaminação em razão da ocupação urbana desordenada e da falta de saneamento básico.

Estudos recentes apontam que o aquífero ocupa uma área de 122,46 km², abrangendo os seguintes bairros: Loteamento Praia do Amapá, Taquari, Comara, 6 de Agosto, Santa Inês, Loteamento Santa Helena, Loteamento Santo Afonso, Belo Jardim 1 e 2, Cidade Nova, Santa Terezinha, Residencial Rosa Linda, Vila da Amizade, Vila Acre, Mauri Sergio, Areal, Vila do Dner e Quinze, e possui capacidade de abastecer mais de 3,2 milhões de pessoas com 200 litros de água por dia. 

Ainda assim, apenas cerca de 7% de sua descarga natural é utilizada atualmente para o consumo humano. Para os pesquisadores da Ufac, a ausência de políticas públicas efetivas coloca em risco a qualidade da água, já que análises laboratoriais têm identificado contaminação por nitratos, coliformes e metais como ferro e manganês. 

O poder público municipal, por sua vez, tem divulgado avanços em projetos de captação subterrânea, mas sem execução plena. Em 2012, a imprensa local noticiou a realização de estudos preliminares, e em 2019 a Prefeitura anunciou que avançava em planos para aproveitar o potencial hídrico do aquífero. Já em 2014, o Governo do Estado divulgou que a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) continuaria o plano de exploração, mas até hoje a utilização em larga escala não saiu do papel. 

Esse contraste entre a urgência apontada pelos pesquisadores e a morosidade administrativa revela o desafio de transformar ciência em política pública.

Potencial e desafios

 De acordo com o modelo de gestão elaborado pela CPRM em 2010, a recarga anual do Aquífero Rio Branco é de aproximadamente 587 mm/ano, com rápida recuperação dos poços (em até uma hora). Isso torna o manancial um recurso estratégico, capaz de complementar o abastecimento em períodos de estiagem do Rio Acre.

Pesquisadores x Poder Público 

Enquanto pesquisadores da Ufac defendem o monitoramento constante e o uso controlado do aquífero, a Prefeitura de Rio Branco e o governo do Acre têm enfatizado a continuidade dos estudos, mas sem definir prazos concretos para exploração sustentável. 

Essa divergência evidencia a necessidade de integração entre ciência e gestão pública, de forma a garantir segurança hídrica para as futuras gerações.

Foto: cedida

A CPRM é uma empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, responsável por produzir e divulgar informações geológicas, hidrológicas e ambientais do território brasileiro.

No caso do Aquífero Rio Branco, a CPRM foi a instituição que realizou estudos técnicos de mapeamento, testes de bombeamento e modelagem hidrogeológica, servindo de base para o Plano de Manejo do Aquífero citado.

Em resumo: a CPRM é quem faz a “radiografia do subsolo” e fornece dados científicos para que estados e municípios consigam planejar a exploração sustentável da água subterrânea.

Outro entendimento

O diretor-presidente do Saerb, Enoque Pereira de Lima, explicou que não há comprovação da existência de um aquífero em Rio Branco, mas sim um lençol freático raso capaz de atender demandas residenciais e comerciais em pequena escala. 

Segundo ele, estudos realizados até 400 metros de profundidade não identificaram aquífero, apenas pontos de água confinada de difícil recarga, com capacidade de renovação anual de cerca de 20%. Para verificar a viabilidade, o Saerb pretende perfurar três poços profundos — dois no Segundo Distrito e um no Panorama — avaliando volume, qualidade da água e resistência do solo, podendo expandir as perfurações caso os resultados sejam positivos.

Sobre o abastecimento, Enoque destacou que a cidade depende integralmente do Rio Acre, cuja turbidez e sazonalidade dificultam o tratamento, sobrecarregando o sistema no período seco. 

A produção atual das duas ETAs é de até 1.600 litros por segundo, mas falhas em bombas, motores e adutoras causam intermitência em determinados bairros, especialmente no Segundo Distrito, totalmente dependente da ETA 2. 

O dirigente ressaltou ainda o alto desperdício doméstico e a falta de conscientização dos moradores como fatores que agravam a escassez, reforçando que, em situações críticas, a prioridade é garantir água para hospitais e unidades de saúde.

Invisível aos olhos dos moradores, o Aquífero Rio Branco pode ser a chave para garantir segurança hídrica à capital acreana. Mas, se por um lado representa abundância, por outro traz o alerta: sem gestão integrada e responsável, esse tesouro subterrâneo pode se transformar em mais uma vítima da urbanização desordenada.

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Curativo 100% biodegradável leva estudantes do Ifac à COP30

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Por Fernanda Maia, Gabriel Vitorino e Jhenyfer Souza

No Instituto Federal do Acre (Ifac) em Sena Madureira, estudantes desenvolveram um curativo biodegradável feito a partir da taboca, espécie de bambu abundante na região amazônica. 

O projeto será apresentado na prévia da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que acontece este ano em Belém (PA), em novembro, e pretende mostrar ao mundo uma alternativa sustentável para a proteção das feridas. 

A ideia surgiu a partir de estudos feitos durante o doutorado do professor Marcelo Ramon, graduado em Química pela Universidade Federal de Alagoas – Ufal. Doutor em Biodiversidade e Biotecnologia com ênfase em Nanobiotecnologia pela Rede de Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia Legal. Ele percebeu que a substância extraída da taboca, carboximetilcelulose (CMC), podia formar uma película semelhante ao plástico. O material, que parecia inviável por ser solúvel em água, se tornou a chave para um curativo capaz de se dissolver em contato com sangue ou secreções.

Além disso, apesar de ser considerada uma praga por produtores rurais devido aos espinhos, a taboca foi escolhida por apresentar vantagens ecológicas. O professor destaca que o Acre detém a maior concentração ‘tabocal’.

‘’A taboca cresce muito rápido, até 20 centímetros por dia. Em cinco anos, você já tem uma floresta recomposta. Tem taboca na África e Ásia, mas nada se compara ao que temos na Amazônia. E dentro da Amazônia, o Acre é o estado que mais concentra essa espécie”, explicou.

Curativo

O curativo foi reforçado com nanogotículas extraídas de óleos de copaíba e andiroba, que são conhecidos por suas propriedades antibacterianas e anti-inflamatórias. 

Segundo Ramon, essa combinação ajuda na cicatrização e cria um produto sustentável, diferente dos curativos tradicionais, feitos à base de petróleo e nocivos ao meio ambiente. “Enquanto o band-aid serve apenas como barreira, o nosso curativo atua diretamente na regeneração do tecido exposto”, explica.

Veja abaixo o passo a passo de produção do curativo:

  1. Coleta da taboca na floresta amazônica;
  2. Transformação da fibra vegetal em carboximetilcelulose (CMC), um pó fino que forma um gel em contato com a água;
  3. Adição de nanopartículas de prata (com ação bactericida) e nanoemulsões de óleos essenciais de copaíba e andiroba, que têm propriedades anti-inflamatórias e cicatrizantes;
  4. Desidratação do gel em estufas, que forma uma película sólida e transparente;
  5. Aplicação na pele, e nesta etapa o curativo se transforma novamente em gel e é absorvido pela ferida.

Expectativas

A criação do produto também contou com a ajuda de estudantes do Ifac de Sena Madureira e, para eles, o projeto vai além da pesquisa em laboratório.

João Augusto Nascimento, que entrou no IfacC ainda no ensino médio, afirma que a experiência mudou sua forma de ver a ciência. “Mostra que a pesquisa pode nascer dentro da escola pública e gerar soluções reais a partir da Amazônia”, afirma. 

Já a aluna Jordana Batista, outra integrante do grupo de pesquisa, destaca o orgulho em representar o projeto na conferência. “Ver nosso trabalho chegar à COP30 mostra que a região tem potencial para inspirar outros estudantes que se interessam por ciência’’. 

Apesar do avanço, a produção em larga escala ainda depende de investimentos e de equipamentos industriais. Hoje, o grupo trabalha em nível laboratorial, mas vê na COP30 a chance de atrair investidores e parcerias. 

A expectativa é de que o curativo ganhe visibilidade internacional e mostre que ciência, sustentabilidade e saúde podem caminhar juntas a partir do Acre.

Redação

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Mulheres tatuadoras no Acre e as histórias eternizadas na pele

Em Rio Branco, no Acre, esse processo já marca a cena local, com cada vez mais mulheres assumindo as máquinas, os estúdios e o protagonismo.

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Por Luanna Lins e Inayme Lobo

Desde muito antes de se tornar moda, a tatuagem já carregava significado em diferentes culturas. Entre povos indígenas, marcar a pele é rito de passagem, pertencimento. Em alguns países da Ásia, até hoje, ela ainda é envolta em restrições. E, quando a tatuagem moderna se espalhou, foi quase sempre dominada por homens.

Esse cenário começou a mudar quando algumas mulheres decidiram romper essa barreira. Entre as maiores inspirações estão Maud Wagner, artista circense considerada a primeira tatuadora dos Estados Unidos, no início do século XX, e Jessie Knight, que se destacou na Inglaterra a partir de 1921.

No Brasil, o mercado da tatuagem veio ganhar visibilidade a partir da segunda metade do século XX, também marcado pela predominância masculina. Nomes como Re Martelli – reconhecida como uma das primeiras tatuadoras do país – abriram caminho, tornando-se referência para outras que vieram a conquistar esse espaço.

Em Rio Branco, no Acre, esse processo já marca a cena local, com cada vez mais mulheres assumindo as máquinas, os estúdios e o protagonismo. Três delas, em especial, fazem parte dessa nova geração de tatuadoras: Ana Beatriz Tavares (20 anos), Gabriella Leão (21 anos), e Thayla Isla (26 anos). Cada uma com sua trajetória, mas unidas pela certeza de que a tatuagem é mais do que um desenho na pele, é identidade.

Experimentar, arriscar, confiar

Ana Tavares ainda era adolescente quando decidiu que a tatuagem seria sua profissão. No terceiro ano do ensino médio, ganhou um kit de tatuagem do pai e começou a improvisar peles artificiais para treinar em casa. “Eu chamei alguns colegas da minha turma pra poder fazer os primeiros treinos. Aí teve uma pessoa que aceitou e a partir disso eu comecei a tatuar”, lembra.

Aos 20 anos, Ana já possui um extenso portfólio e vem conquistando cada vez mais clientes. Foto: Inayme Lobo/A Catraia

NoO começo foi autodidata. Sem cursos presenciais disponíveis em Rio Branco, recorreu à internet. “Pesquisei cursos na internet, comecei a fazer, estudava por lá. Até o ano passado, quando participei de um workshop aqui na cidade, com um profissional da área. Então, a maior parte eu aprendi sozinha”.

Hoje, ela trabalha principalmente com o fine line e o blackwork, mas também defende as tatuagens coloridas, mesmo com pouca procura. “Muitas pessoas pensam que a cor não vai ficar tão legal depois que cicatrizar, talvez por conta do tom da pele. Mas isso é mito. As tatuagens coloridas têm contraste diferente, mas não deixam de ter a mesma qualidade”.

O que diferencia seu trabalho, segundo ela, é o incentivo ao autoral. “Normalmente, quem vem comigo, traz tatuagens já prontas, com referências da internet. Mas eu sempre indico fazer uma coisa diferente, que vai ser só pra pessoa, que ninguém vai poder copiar”.

Tavares trabalha principalmente com os estilos fine line e o blackwork. Foto: cedida

Ainda este ano, Ana abriu seu primeiro estúdio próprio, após um período tatuando em casa e em um estúdio colaborativo. Para ela, o maior desafio não vem necessariamente do fato de ser mulher, mas da competitividade no meio. “Acredito que haja ainda uma rivalidade entre os tatuadores daqui. A ideia é que é um lugar pequeno, então o público é pouco e se divide.” Ao mesmo tempo, ela reconhece que ser mulher influencia nas clientes que conquistou. “Eu confio muito no meu trabalho. Sei que dá certo porque também recebo muitas outras mulheres que querem tatuar comigo”.

No coletivo, ninguém tatua sozinha

A trajetória de Gabriella Leão (Gab Tattoo) tem um tom quase profético. “Na escola, eu falava, de forma muito despretensiosa: “ah, eu vou virar tatuadora mesmo”. Eu não sabia de nada, não tinha ido atrás de nada. E eu sempre falava isso, sabe? De uma forma espontânea. Manifestei literalmente tudo”, conta, rindo.

Gabriella encontrou na coletividade dos estúdios um espaço para crescer. Foto: cedida

Foram os amigos que abriram a porta definitiva. Ela já desenhava desde criança, influenciada pela irmã mais velha, mas foi ao conhecer Gabriel (Amaterasu), hoje colega de estúdio, que ganhou o empurrão inicial. “Ele me deu dicas de máquina, de material, de onde comprar tudo isso. Foi o pontapé que eu tava precisando”.

Depois de um mês treinando sozinha em peles artificiais, Gabriella conseguiu uma vaga de aprendiz. E ali entendeu que a vivência valia mais do que qualquer curso. “Apesar de eu estar consumindo muito conteúdo, vendo cursos gratuitos na internet, o que de fato me fez aprender foi estar ali cercada de profissionais, sempre ter o tatuador ao lado para auxiliar. Isso realmente me ajudou”.

Hoje, com um ano e sete meses de carreira, já passou por três estúdios, todos colaborativos. “Eu sempre gostei muito, porque dá pra ter uma troca de conhecimento e experiência constante. A gente tá sempre aprendendo e, consequentemente, evoluindo juntos. Eu gosto muito dessa ideia de trabalhar em equipe”.

Conhecida por Gab Tattoo, a tatuadora se destaca pelo estilo irreverente. Foto: cedida

Em relação a estilos, Gabriella não se limita, mas tem dois favoritos: o old school e o black work. “Pra mim são tatuagens que não têm erro. Tanto no quesito resultado quanto na aplicação, é muito satisfatório fazer”.

Ser mulher, para ela, também faz diferença na clientela. “Recebo muita tatuagem mais delicada, mesmo meu nicho não sendo focado nisso. Principalmente vindo de outras mulheres, em regiões mais íntimas. Acredito que, por eu ser mulher, elas se sentem mais confortáveis”.

Nesse meio, Gabriella conta que já passou por situações em que sua capacidade foi colocada em dúvida apenas por ser mulher. “Eu já passei por situações desagradáveis, como não ter voz dentro de um estúdio, duvidarem da minha capacidade sem conhecerem meu trabalho… Mas nunca deixei isso me abalar. Felizmente, o cenário da tatuagem tá mudando. Cada dia que passa vãoai surgindo mais mulheres tatuando por aqui. Eu fico feliz demais!”, resume a tatuadora.

Entre a tradição e a reinvenção

Thayla Isla (La Isla Tattoo) tinha 22 anos quando tatuou a própria pele pela primeira vez. Foi em 2021, experiência que abriu um caminho inesperado. “Desde sempre eu tive gosto por desenhar e pintar. Era um momento pessoal, no qual eu me ocupava e me encontrava. Em 2021, fiz minha primeira tatuagem e, a partir dali, passei a conhecer mais profundamente essa arte e a desenvolver uma paixão por esse universo”.

Isla atua em estúdio próprio, com clientela diversificada. Foto: cedida

O empurrão veio do colega Lean Costa, artista plástico e tatuador, que se tornou também mentor. “Ele me inspirou, me orientou e me deu todo o suporte necessário para seguir nessa caminhada que hoje é a minha vida”.

Autodidata, Isla se consolidou no old school e no tradicional americano, além de se destacar com flash tattoos em eventos. “Meu público hoje é bastante variado: atendo desde jovens até pessoas mais velhas, tanto homens quanto mulheres. Muitos clientes já chegam com o desenho pronto, mas sempre ofereço minha opinião profissional para sugerir ajustes ou melhorias desde que o cliente esteja de acordo”.

A tatuadora é especialista em old school e tradicional americano. Foto: cedida

Assim como Ana e Gabriella, também começou de forma improvisada. “As primeiras tatuagens foram feitas na casa de amigos, onde eu adaptava o espaço para trabalhar. Aos poucos, fui reunindo recursos para comprar os móveis e montar meu próprio estúdio”.

No mercado local, Isla afirma ter encontrado acolhimento. “No ramo da tatuagem no Acre, acredito que o espaço é aberto para todos. Eu, particularmente, nunca enfrentei rejeição ou cancelamento por ser mulher, pelo contrário, sempre recebi incentivo dos colegas e também muita procura de outras mulheres”, explica.

Um espaço que não para de crescer

Apesar das diferenças de trajetórias, as três tatuadoras compartilham pontos em comum. Todas vieram do desenho, todas aprenderam de forma autodidata e todas enfrentaram o desafio de conquistar credibilidade em um mercado majoritariamente masculino. Entre elas, há uma certeza: o número de mulheres tatuando está crescendo. No Acre, os estúdios de tatuagem não são mais apenas território masculino. 

Na experiência delas, muitas clientes relatam que se sentem mais à vontade ao tatuar com mulheres, sobretudo em sessões que exigem expor partes do corpo. Mas o crescimento dessa procura não se explica apenas pelo conforto e acolhimento: ele também reflete a qualidade do trabalho de Ana, Gabriella, Isla, e tantas outras tatuadoras que consolidaram estilos próprios e conquistaram reconhecimento por meio de técnica e experiência.

No fim, quem procura uma tatuagem possui diferentes motivações. Há quem busque a estética, um desenho que harmonize com o corpo. Outros enxergam mais significado: homenagens, lembranças, momentos especiais. E há também quem veja na tatuagem uma forma de expressão, identidade ou simplesmente de eternizar na pele aquilo que lhe representa. Seja qual for a razão, cada tatuagem é única – assim como as histórias de quem as faz e de quem as recebe.

Redação

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