Siga a Catraia

Cotidiano

Filhos do Sol

Publicado há

em

Aspectos sociais da imigração venezuelana no Acre 

Por Hellen Lirtez

A temperatura na capital acreana (Rio Branco) tem uma média de 32°C, 30°C na sombra. Já na capital venezuelana (Caracas) varia de 28°C a 21°C, o que pode ser considerado um clima agradável. O sol é o elemento que sempre esteve presente na imigração venezuelana, isso os direcionou até terras brasileiras como sendo a única luz guia nos caminhos de um povo que teve de aprender a conviver com o escuro.

A luz solar é algo tão comum na jornada dessas pessoas que seus rostos apresentam vermelhidão, rachaduras, manchas e algumas vezes queimaduras devido a alta exposição. No Brasil, o câncer de pele corresponde a 33% de todos os diagnósticos, e o Instituto Nacional do Câncer (INCA) registra, a cada ano, cerca de 185 mil novos casos. Infelizmente, a radiação solar e seus malefícios são a menor das preocupações de um venezuelano que está buscando ajuda nos semáforos.

 A avenida Ceará pode ser considerada uma das ou se não a avenida mais conhecida do estado, ela é a rota central para bairros como estação, floresta, Manoel Julião etc. Atualmente, há mais de 3 anos e meio ela se tornou uma vitrine que é assistida através da janela quadriculada de um automóvel. o sinal obriga os carros a pararem e durante um minuto e meio  no palco de asfalto e iluminação de sol pino, eles são vistos.

Cena 1 – De uma crise para outra

Todos os países latino-americanos foram colonizados, ou seguem até hoje nos meandros da colonialidade. A Venezuela e o Brasil partilham memórias muito familiares em suas histórias. Governos corruptos, autoritários, altas taxas de desemprego, brigas irracionais entre ideologias, crises políticas e sociais moldam a desordem e o caos no qual os dois países se encontram atualmente.

Para eles, tudo começou a piorar em meados de 2013, quando a Venezuela enfrentava uma crise política em razão da disputa causada pela posse interina de Nicolás Maduro, logo após o afastamento de Hugo Chávez, que mais tarde morreu. Maduro assumiu oficialmente e nos anos que se passaram a situação do país se agravou ainda mais, deixando milhares de pessoas em condições subumanas: sem comida ou renda. 

Durante o ano de 2016, por exemplo, a inflação foi de 800%. Em 2018, Nicolás Maduro se reelegeu, mesmo com altos índices de rejeição. Enquanto isso, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro era eleito. Os dois presidentes são polêmicos e por vezes abusam do poder que têm nas mãos.

Na Venezuela as carnes são consideradas produtos de luxo devido ao seu valor. Em alguns estados, o valor do frango supera os 3 milhões de bolívares, aproximadamente 155 reais. O mesmo frango é uma das carnes mais consumidas pelos brasileiros atualmente devido ao drástico aumento da carne bovina. A cesta básica no Brasil tem um valor médio de 600 reais, o número de desempregados beira 14 milhões e cerca de 40 milhões de brasileiros vivem na miséria, com renda de até R$ 89. Afinal, quantos Brasis cabem em cada brasileiro? 

Estes números contribuem ainda mais para o aumento da criminalidade e agravamento de doenças, principalmente durante a pandemia da Covid-19. Mesmo que o Brasil aparentemente não passe por uma instabilidade tão severa quanto a Venezuela, ele não é o melhor país para pessoas que estão fugindo de uma crise, já que aqui também vivemos uma crise política, econômica e de saúde.

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Cena  – Os indígenas Warao

A primeira vez que o vi foi em agosto de 2019. Neste dia, houve um acidente no centro da cidade e o trânsito estava congestionado, não ia nem para frente, nem para trás. Era exatamente 13h, horário de almoço e de pico no centro rio-branquense. Eu estava atrasada para chegar ao trabalho, quando notei um casal e duas crianças subindo uma ladeira.  O homem andava à frente, seguido por uma mulher grávida, que com uma de suas mãos segurava a barriga imensa e com a outra guiava duas crianças, que também estavam de mãos dadas.

Eles carregavam consigo bolsas feitas de panos coloridos que mais pareciam retalhos costurados um sobre o outro. Elas estavam muito bem amarradas ao redor do tórax. Essa postura de amarrar e manter tudo próximo a si me pareceu ser um reflexo de quem já perdeu muito. Dentro das bolsas notei que haviam placas de papelão e que provavelmente eles estavam vindo de outro lugar, talvez de mudança. 

Enquanto eles subiam a ladeira, o homem, que possivelmente seria o pai das crianças e marido da mulher, paralisa um pouco em frente a um restaurante. Ele observa as pessoas almoçando, as crianças alegram-se. A mulher grávida evita olhar, mas o pai os incentiva a continuar andando. Seus pés, já cansados por atravessar fronteiras, atravessavam também o caminho da fome. Mesmo assim, parecia ser preciso não parar. 

Na sequência, eles subiram a ladeira a um ponto em que eu não conseguia mais acompanhar de dentro do ônibus. Naquele instante olhei para os passageiros, para o motorista, para o trânsito em volta e parecia que apenas eu tinha visto a cena. Presenciei aquilo em plena luz do dia.  Sim, esse retrato é muito comum, mas é justamente isso que causa espanto. Desde então, observo e documento cenas como essa. 

Cena 3 – O abrigo no bairro da Base 

Em 18 de julho de 2020 já completavam cinco meses de pandemia. Acompanhei a professora Flávia Pinheiro em uma ação conjunta, a qual ela havia elaborado com outras educadoras e o Moto Club Abutres. Um caldeirão de sopa encheu mais de 200 copos de sopa, que acompanhavam alguns sacos de pão. O momento era crítico, mas havia chegado ao conhecimento da educadora a situação de um abrigo venezuelano localizado no bairro da Base. 

Professora Flávia Pinheiro, 2020, abrigo do bairro da Base.

Em comboio, Flávia foi até o local. A professora entende bem o que é estar ao relento. Na infância ela passou por situações parecidas quando ainda morava nas periferias de Cuiabá. Para ela, eles vieram para a capital tentar uma vida melhor, assim como ela fez, por isso merecem toda ajuda necessária. Assim que chegaram lá, todos os indígenas venezuelanos que estavam no abrigo se amontoaram e esperaram em grupo, como se isso fosse uma espécie de defesa grupal, estarem juntos.

Quando chegaram lá havia dias em que não comiam direito, sobreviviam pedindo nas casas e sinais, mas devido à pandemia não conseguiam o suficiente. A casa abandonada não tinha portas nem janelas, seu reboco estava desgastado pelo tempo. Entretanto, era um teto que passava uma falsa sensação de segurança para aquelas pessoas. Era impossível contar um a um e todos estavam sem máscaras. As crianças estavam bastante sujas e os pais muito tristes. Uma lona preta cobria a parte da frente, fazendo papel de telhado. 

 A casa possuía em torno de cinco cômodos, não havia colchão no chão, mas sim panos e mais panos marcando o local onde as pessoas dormiam. As crianças fizeram fila para receber o pão e a sopa. É tão violento pensar que as crianças exercem isso de uma maneira não natural. Chega a ser surpreendente como as crianças reagem em situações como essas. Crianças indígenas venezuelanas brincavam e dividiam o pão juntas. 

Crianças indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

Os Warao são conhecidos como povo navegante e possuem costumes comunitários. Percebi isso presencialmente no dia em que visitei o abrigo. Uma garrafa de refrigerante doada por um vizinho foi compartilhada por todas as crianças, de boca em boca até o último gole.

Crianças indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

A senhora de vestido verde que segura um pão é Dolores Zapata. Essa foi a primeira vez que estive próxima dela, mas, não era a primeira vez que a vi de fato. Ao chegar lá, essa senhora de pele queimada e cabelo longo caiu aos prantos e fez um sinal de agradecimento a Deus. Fazia muito tempo que ela e o grupo de indígenas Warao estavam com fome. A senhora pouco falava, quando recebeu o alimento procurou se preocupar apenas com este momento.  Expressava uma enorme felicidade pela ação da professora Flávia, mas carregava em seu olhar muitas outras coisas. 

Dolores Zapata, mulher indígena Warao, 2020.

Dentre as práticas e costumes do povo Warao estão a pesca, caça, agricultura, artesanato e carpintaria. Talvez por isso tenham se identificado tanto com a Amazônia brasileira. Os antepassados Warao eram muito prósperos, todo o tempo trabalhavam e levavam alimentos para suas casas. Porém, devido aos “avanços” capitalistas no ano de 1965, o Governo da Venezuela construiu um dique que obstruiu o Rio Manamo. Esse projeto afetou diretamente a vida dos Warao, por ter causado salinização súbita da água do rio, além de impactar os ecossistemas animais e vegetais. Desde então eles vivem como nômades passando de cidade em cidade.

A jornada dos Warao até o Acre foi longa, eles saíram da cidade de Tucupita, capital de Delta Amacuro, que está localizado no nordeste da Venezuela. Atravessaram sete cidades para chegar na fronteira com o Brasil, no município de Pacaraima, no estado de Roraima. Nesse deslocamento foram 930 km percorridos. De Pacaraima até Boa Vista, foram mais 215 km, e chegando na capital roraimense vivenciaram uma situação de aglomeração com a população venezuelana imigrante. Eles continuaram sua mobilidade para Manaus, até lá foram mais 749 km de estrada. 

Lá se depararam com a mesma situação de Boa Vista, muitos imigrantes buscando refúgio. Optaram por ir para Porto Velho, deslocaram-se pela rodovia BR 319, percorrendo mais 888 km até chegarem na capital rondoniense. Infelizmente, assim como em Manaus e Pacaraima, as condições eram as mesmas e assim preferiram vir para Rio Branco-AC, que fica há 511 km de Porto Velho. O deslocamento total, da origem até Rio Branco, foi de 3.293 km.  Tudo isso por um recomeço. Nem todas as famílias Warao tiveram a mesma oportunidade de chegar direto até a fronteira, pois algumas precisaram fazer viagens em escalas, de povoado em povoado.

Atualmente, os Warao sobrevivem de doações e apoio provenientes, em especial, da sociedade civil, não do Governo, ainda que em alguns estados já existam abrigos e as famílias recebam algum tipo de assistência. Os que não contam com assistência social pedem ajuda nas ruas para conseguir pagar os aluguéis e ter acesso a alimentos. 

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

Os venezuelanos indígenas Warao sofrem as mesmas dificuldades de diversos imigrantes quando chegam no Brasil e principalmente no estado do Acre, ao procurar atendimento na rede de saúde, no CRAS, no terminal rodoviário. Essas instituições não estão preparadas para atender esse público. Os venezuelanos alocados atualmente no Acre se dividem entre indígenas Warao, localizados em sua maioria no bairro Cidade do Povo, e não-indígenas, abrigados no bairro Tancredo Neves. 

Três mulheres, três sinais: Mulheres indígenas Warao

Heloisa, Jéssica e Dolores estão nos semáforos há dois anos. A primeira vez que as vi foi em meados de 2019. Sempre naquele 1 minuto do sinal, para mim tempo que me atrasava para chegar no trabalho ou na faculdade, mas que para elas era muito pouco. Heloisa é mãe de Jéssica e filha de Dolores, uma família de mulheres indígenas Warao. 

As três costumam se dividir em pontos de muita movimentação. Heloisa fica entre a avenida Ceará e a rua Pernambuco, em frente a uma concessionária de veículos, Jéssica fica no mesmo local, porém um pouco mais a frente. Dolores sempre fica no cruzamento da avenida Ceará com a Floriano Peixoto que possui quatro sinais.

Jessica foi a primeira da família Zapata que abordei. Ela estava cansada, o sol das onze estava impiedosamente forte, por isso ela estava sentada. A jovem de 19 anos tem praticamente minha idade, além disso, nosso tom de pele e cor de cabelo são bem parecidos. Após sentar ao seu lado comecei a perceber que das poucas coisas que nos diferia era a nacionalidade. Visivelmente Jéssica estava ali para ajudar a mãe e a avó. Quando perguntei a ela o que ela gostaria de fazer, me respondeu de maneira seca, porém firme: “estudar”. Há dois anos ela saiu da Venezuela, um país onde a educação hoje se encontra defasada. Ao vê-la ali mendigando por centavos me perguntei: onde estaria Jéssica agora se não houvesse crise na Venezuela?

Jessica Zapata sendo entrevistada em seu local de trabalho, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

De longe Heloisa é só uma mulher tentando sobreviver, de perto ela é uma mãe, uma filha, tentando ter o mínimo para comer em um lugar desconhecido. Heloisa é uma mulher tomada pelo silêncio, e seu silêncio diz muito. Antes de abordá-la a observei de dentro do carro, queria saber como era vista do ponto em que ela ia buscando por ajuda. Depois de falar com Jéssica, fui até o meio fio em que Heloisa estava. Seu cabelo estava trançado, uma blusa vinho, saia amarela e nos pés uma havaiana azul turquesa, típica de nosso país. Começamos a conversar, no entanto, todas perguntas sobre como ela veio até aqui ficaram sem resposta. Ela procurava palavras, mas não sabia o que dizer. Seu olhar estava trêmulo e parecia que a qualquer momento lágrimas iriam lavar seu rosto. Em seu pescoço havia um colar com uma imagem colorida de Cristo ao qual ela apertava enquanto desviava seu olhar. O silêncio é algo assustador quando se tem muito a dizer e a cobrar, quando já se gritou muito a ponto de perder a própria voz. Quando estava dentro do carro a observando percebi que havia uma frase bíblica em suas costas que contrastava com aquele momento.

“Porque as estrelas dos céus e as suas constelações não darão a sua luz; o sol se escurecerá ao nascer, e a lua não resplandecerá com a sua luz.” Isaías 13:10

Heloísa Zapata, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Baseado nesta frase perguntei a ela se a fé a havia trazido para o Brasil e ela me respondeu, “estou aqui por causa da fé”. A fé, que assim como move montanhas, moveu pés venezuelanos para esta parte do continente latino-americano.

Dentre os carros desfila uma senhora de mais ou menos 65 anos. Reconheci de imediato que se tratava de Dolores Zapata. Desde a primeira vez que a vi ela usa os mesmos vestidos verdes, a cor da esperança. Ela não queria conversar, queria apenas continuar sua jornada entre os carros. Com um pote de creme cortado, a idosa passa entre as máquinas de metal estacionadas momentaneamente, alguns dão cinco centavos, outros, cinco reais. 

Dolores Zapata, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Os Warao são pessoas muito desconfiadas, mesmo que recebem ajuda não se acomodam e assim vão para os sinais. Essa prática é denominada por eles como “coleta”. Em grupos, indígenas Warao saem da Cidade do Povo até o Centro da cidade bem cedo pela manhã, para conseguir dinheiro ou alimento. Essa prática geralmente é realizada pelas mulheres enquanto os homens as vigiam de longe.

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Há uma pequena diferença da atuação de indígenas Warao e venezuelanos não-indígenas.  Geralmente os Warao são bem diretos em suas placas “ajuda para comer”, já os não-indígenas além de pedirem ajuda e comida pedem também por trabalho.

A língua é um fator importante na hora de pedir dinheiro e ajuda, pois os Warao trazem aspectos próprios de sua etnia, apesar de se comunicarem em espanhol. O Brasil é rodeado de países falantes da língua espanhola, apesar disso, o investimento linguístico sempre é voltado para o inglês. Essa preferência pela linguagem é apenas uma das evidências que ainda nos permeiam após a colonização de 1500.

No Acre, mesmo os Warao tendo grandes habilidades, desde a pesca até a confecção de artesanato, a única saída para conseguir recursos financeiros para a sua subsistência são as ruas. Diferente dos brasileiros que vendem água de coco, doces ou pão no sinal. Seu único minuto de atenção possível é o do sinal. Nesse curto espaço de tempo é preciso andar entre os carros, erguer a placa e esperar que alguém se comova. Mas nem todos são comovidos.

A esperança mora em um sorriso

11 de março de 2020, quinta-feira, mais um dia de trabalho para Milagros Antuan. A mulher de 39 anos costuma chegar cedo em um dos principais sinais da Avenida Ceará. De calça jeans, blusa rosa de manga longa, tênis branco, chapéu e uma placa de papelão na mão. A mãe de três filhos era secretária executiva de uma grande empresa na Venezuela, ela sempre buscou um bom futuro profissional. Porém, no Brasil, não conseguiu fazer os trâmites necessários para validação de seus documentos.Em contraponto a isso, foi  orientada pelo Ministério Público para conseguir sua cidadania brasileira, a qual ela tem muito orgulho.Milagros é formada em engenharia de sistemas, mas como não conseguiu um emprego no país precisa se deslocar no meio fio.

Milagros, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Carros vêm e vão, o sol aquece, a temperatura aumenta, mas ela permanece no mesmo lugar. Ela espera o sinal fechar para andar nas vielas que se formam entre os carros, alguns carros como a Hilux da foto não chegam sequer a abrir o vidro, simplesmente ignoram. Por dia ela consegue arrecadar cerca de 40 reais. Parece pouco, mas isso paga o apartamento de 250 reais em que ela mora. Milagros se sente tão grata pela ajuda que teve no país para obter sua cidadania, que em nenhum momento da entrevista cita a xenofobia e a rejeição pelas quais passa na avenida mais movimentada do estado. 

Enquanto eu anotava algumas informações sobre Milagros, um rapaz notou que eu estava com uma câmera no pescoço e em seguida começou a fazer pose. Logo, achei divertido seu jeito descontraído e fui falar com ele. John Azevedo já carrega em seu nome certa brasilidade e ele se encaixa perfeitamente no refrão da música “Apenas um rapaz latino-americano”, do cantor Belchior: “eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior.”

Jhon Azevedo, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

 Nunca passaria pela minha cabeça que aquele limpador de vidros seria um venezuelano. John estava “camuflado” no meio de outros rapazes da sua idade que trabalham no sinal. Quando o entrevistei, havia pouco tempo que chegara de Ji-paraná (Rondônia). Seu objetivo em limpar carros no Acre é conseguir uma passagem para a Bolívia e depois para o Chile. 

No dia em que nos falamos ele havia conseguido apenas 6 reais, porém estava muito feliz, aquele era o dinheiro do almoço. John não veio sozinho para o Brasil, ele tinha uma companheira, porém, ela o abandonou para ficar com sua família e agora ele vaga em busca de conhecer outra mulher que o acompanhe em suas aventuras internacionais. Apesar de jovem, o rapaz já esteve em diversos países como Guiana-francesa, Argentina e Peru.

Quando está nos sinais sua abordagem é muito nostálgica “buenos días señor, buenos días señora, ayuda a este pobre hombre”. Ele entrava com um sorriso e saia com o outro ainda maior. De um jeito muito carismático ele tentava convencer as pessoas a ajudá-lo. John relatou que sofreu preconceito em outros países, mas no Brasil sentia que tudo era “normal”. Naquele momento percebi o porquê de ele se sentir completamente aceito em um país que mata diariamente jovens como ele. John não levava índices como esse em consideração, mas sim o simples fato de saber que não há diferença física nos traços de um jovem venezuelano e um brasileiro. 

Jhon Azevedo, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

A caminho do Acre, John perdeu um amigo quando ainda estava em Ji-Paraná. Segundo ele, seu amigo não havia feito nada e trabalhava informalmente como ele, mesmo assim o mataram. Mesmo em meio a tantos problemas, o rapaz de 25 anos latino-americano vê o mundo como um lugar de exploração e oportunidade. 

Milagros e John não se conheciam antes dos sinais acreanos, se conheceram assim, dividindo o ambiente de trabalho a céu aberto. O que há de mais comum entre os dois é a esperança de dias melhores. Sua maneira de ver nosso país chega a surpreender. Depois da entrevista, vi um vendedor de pão chamá-los para beber água. Ali percebi o porquê de eles serem tão gratos. Ser um nômade deve ser cansativo, você parte antes de criar raízes.  No caso de John talvez ele ainda desbrave muitos lugares com o seu sorriso, já Milagros permanecerá em terras acreanas sonhando com o dia em que seu currículo será traduzido e aceito.

Toda a incerteza que encontrei na caminhada em busca dos imigrantes da Venezuela me lembra quando Alice, no país das maravilhas de Lewis Carroll, encontra o gato de Cheshire. 

“ O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?
Isso depende muito de para onde você quer ir, respondeu o Gato.
Não me importo muito para onde, retrucou Alice.
Então não importa o caminho que você escolha, disse o Gato.
Contanto que dê em algum lugar, Alice completou.
Oh, você pode ter certeza que vai chegar se você caminhar bastante, disse o Gato.”

Não importa muito onde eles estavam indo ou onde desejavam ir, qualquer caminho já serviria. Assim como Alice, os venezuelanos, sejam indígenas ou não-indígenas, estão buscando alguém que lhes aponte um caminho seguro para continuar com menos medo. fato é, eles continuarão se movimentando sempre que necessário, sempre para onde o sol brilha com mais força. Seja em terras brasileiras ou não, é importante lembrarmos que somos todos filhos do mesmo sol.

Jhon Azevedo e Milagros, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Cotidiano

Mulheres jornalistas superam dificuldades e levantam questões importantes para a sociedade

Publicado há

em

por

Um estudo realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostrou que em 2021 49% das mulheres jornalistas sofreram ataques de gênero sendo desqualificadas com ofensas e xingamentos. No meio digital, o número sobe para 56,76%. Em uma área historicamente dominada por vozes masculinas, apesar das dificuldades as mulheres estão se destacando cada vez em maior número e trazendo à luz temáticas importantes para a sociedade.

Juliana Lofêgo, professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre, diz que a presença das mulheres está influenciando na cobertura de questões sociais, culturais e políticas. Para Lofêgo, elas têm desempenhado um papel significativo em destacar questões de violência contra mulheres e assédio, garantindo que essas problemáticas não sejam esquecidas ou minimizadas pela mídia. “Com o avanço do movimento feminista e as mudanças sociais, as mulheres jornalistas têm sido influenciadas a trazer à tona essas questões, mesmo que isso não tenha sido comum no início de suas carreiras”, complementa.

Consuela Araújo é jornalista formada pela Ufac e atua na área de assessoria de imprensa, ela relata que como jornalista mulher enfrentou estereótipos de gênero e discriminação ao longo da carreira, principalmente fora do jornalismo. Já no telejornalismo, outro campo onde atuou,  diz ter sido bem acolhida por colegas e pela comunidade, entretanto considera que a busca pela igualdade de oportunidades continua sendo uma luta constante. Araújo aconselha as futuras profissionais a buscarem aprimoramento, construir uma rede de contatos sólida e manter a paixão pela verdade e pela narrativa honesta. “Acreditar na importância do jornalismo local é essencial para contribuir significativamente para a sociedade acreana”, afirma. 

Servidora concursada do Estado, a jornalista Andreia Nobre relata que um grande desafio que enfrentou na carreira profissional foi quando se tornou mãe, pois teve que conciliar a maternidade e o trabalho. Ela acredita que esse seja um desafio para as mulheres em qualquer carreira e também para as que trabalham no setor privado.

Apesar das contribuições significativas das mulheres para abordar agendas importantes a serem discutidas na sociedade, a desconfiança em relação a sua capacidade profissional ainda é uma realidade. Ana Paula Melo, estudante do terceiro período do curso de Jornalismo, trabalha como estagiária no jornal Cidade Alerta, ela diz que percebeu que há um preconceito dentro da universidade pelo fato de ser uma mulher estudante de Jornalismo.

“Já vi algumas pessoas torcerem a cara num tom de desconfiança quando falo que faço Jornalismo. Alguns já dizem que somos compradas, e, às vezes, por ser mulher, dizem que ao invés de buscar informações, buscamos fofoca. Em rodinha de amigos, embora ainda seja estagiária, já fui questionada se algum político me paga para fazer matéria sobre ele. Será se eu não tenho capacidade para escrever sobre política? São reflexões que sempre me questiono, afinal, ser mulher é ter a sua capacidade sempre questionada”. Ela acredita que o maior desafio é alcançar credibilidade equivalente a dos homens e enfatiza a importância de inserir mais mulheres em posições de liderança nos veículos de comunicação. 

Texto produzido pelos acadêmicos Ana Caroline Santiago, Adriely Gurgel, Maria Eduarda Melo, Rian Pablo de Oliveira e Júlia Andrade. A produção faz parte da disciplina Fundamentos do Jornalismo.

Continue lendo

Cotidiano

Integração dos povos originários na mídia é instrumento de luta e resistência

Publicado há

em

por

Formação para juventude dos povos originários acreanos em projeto da Ufac alia luta por direitos com visibilidade na mídia 

Por Sarah Helena e Tácila Matos

A maior parte das narrativas que circulam hoje sobre a história dos povos originários é contada ainda através do ponto de vista colonizador, ou seja, não partem do olhar indígena. Desta forma, estereótipos e violências são passadas à frente, sem que uma reflexão seja feita.

Em contraponto, a comunicação indígena vem se fortalecendo cada vez mais nos últimos anos, dentro de mídias como a rádio, cinema, internet, redes sociais e imprensa, a fim de transformar essa realidade. 

O acreano Tarisson Nawa, pertencente ao povo Nawa, do Vale do Juruá, jornalista da Defensoria Pública da União e doutorando em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que apenas com a Constituição Federal de 1988 o estado passa a reconhecer as formas de governo indígena e, a partir daí, surgem várias organizações representando seus povos.

Com o nascimento e estruturação dessas organizações, bem como o maior acesso a tecnologias digitais a partir dos anos 2000, o jornalista diz que a comunicação se tornou uma área chave de atuação dos povos para reconhecimento de direitos.“E aí você vai ter alguns setores de comunicação sendo formados dentro dessas organizações indígenas para fortalecer e amplificar as vozes dos povos indígenas pelos próprios povos indígenas” acrescenta.

Ele também afirma que a inclusão no sistema de cotas foi fundamental para a entrada dos povos originários no ensino superior e a comunicação se beneficiou com isso. Mas ainda é pouco, visto que existem, segundo ele, apenas cerca de 30 indígenas jornalistas formados no Brasil inteiro. 

Como indígena jornalista, Nawa expressa seu desejo de que os povos originários deixem de ser apenas personagens das notícias e passem a ser os autores e fontes especializadas nas mais diversas áreas de profissão e que a partir dessa presença, as representações negativas na mídia se transformem em positivas. “O que a gente vê hoje, é uma atuação muito forte dos comunicadores indígenas para tentar superar essa deficiência na comunicação enfrentada pelos povos indígenas do ponto de vista profissional técnico”, diz.

“A comunicação indígena ganhou o mundo”

Rasu Inu Bake Huni Kui, professor e doutorando no Programa de Pós-graduação em Linguagem Identidade (PPGLI), acrescenta que “começou lá com os jesuítas, depois veio os antropólogos, missionários, sociólogos e várias outros pesquisadores, e entraram nas comunidades e começaram a escrever sobre os povos indígenas. Nessa época poucos indígenas falavam o português (…) E o pesquisador acabava entendendo do jeito dele”.

Apesar do contexto histórico de invisibilidade e estereotipação dos povos nativos nas mídias tradicionais, os comunicadores já reconhecem os avanços por eles alcançados e o início de uma mudança maior neste cenário.

Os alunos do projeto de extensão da Ufac, Comunicadores Indígenas, mantêm uma visão otimista da trajetória dos direitos e integração na mídia. Morador da Terra indígena Nukini, no município de Mâncio Lima, Unhepa Nukini afirma que “é necessário reconhecer que a comunicação indígena ganhou o mundo. Se você reparar, o Instagram, Facebook, tudo tem indígena trabalhando na comunicação”. Samsara Nukini concorda: “hoje o que eu vejo é que nós somos uma potência mesmo, nós todos, não só os povos indígenas, mas quem protege a Floresta Amazônica, quem é em prol desse grande verde do nosso Brasil”. 

A coordenadora do projeto, professora Juliana Lofego, do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (Ufac), pontua a centralidade do projeto: “Os indígenas são pouco representados na mídia tradicional, então, é um fortalecimento para a visibilidade fazerem comunicação a partir das vozes deles. Para terem essa consciência de que a voz deles é importante e que eles podem fazer a própria mídia”.   

O projeto propõe uma série de atividades formativas no âmbito da comunicação digital, a fim de fortalecer a juventude indígena, mais inclinada e ligada às tecnologias, para que possam usar diferentes plataformas como apoio nas lutas por direitos. 

Formação de Comunicadores Indígenas no Acre

Nos últimos anos a Comissão Pró-Indígena do Acre (CPI-Acre) tomou a iniciativa de fortalecer o cenário da comunicação indígena no estado. O projeto Curso Comunicadores Indígenas teve início em 2021, com idealização de Vera Olinda e Leilane Marinho, respectivamente, coordenadora e assessora de imprensa da CPI-Acre, e da professora Juliana Lofego, que oficializou o projeto de extensão na Ufac em 2022. 

As atividades começaram em dezembro de 2021, em meio a pandemia, com aulas básicas de noções da comunicação. A cada ano, o projeto adicionava novas oficinas, para desenvolver habilidades de redes sociais, fotografia, edição de vídeos, etc

A 4ª Oficina de Comunicadores Indígenas (2023) contou com a participação de 13 indígenas dos povos Manchineri, Huni Kuĩ, Yawanawá, Nukini e Puyanawa, das Terras Indígenas: Rio Gregório, Mamoadate, Kaxinawá do Alto Rio Jordão, Poyanawa, Nukini e Kaxinawá da Praia do Carapanã e contou com a colaboração da produtora paraense Na Cuia na assessoria às redes sociais.

A última edição, realizada em setembro de 2023, teve como objetivo a montagem de dois produtos: o Podcast Vozes da Floresta e a criação da Rede de Comunicadores Indígenas do Acre. O primeiro, com narração e trilha sonora feitas pelos próprios alunos, está disponível no Spotify e a Rede teve definição de diretrizes e confecção de perfil nas redes sociais disponibilizado na plataforma Instagram (links ao final). Além disso, também promoveu a mostra de audiovisuais indígenas do Acre, o “Cinedebate: vozes da floresta”, no bloco de Jornalismo da Ufac. 

Uhnepa Nukini foi um dos primeiros a participar do projeto, desde o ano de 2021, hoje ele já auxilia os mais novos, enquanto continua no desenvolvimento das ferramentas de comunicação. Ele fala que alguns, no início, eram tímidos, mas ao longo do tempo isso mudou. “A gente foi trabalhando isso (a timidez) aos poucos e os meninos tão se soltando, a gente vê isso, cada dia evoluindo mais dentro deles. E eles tão querendo trabalhar com comunicação, isso é bonito (…). A gente vê isso nas apresentações, no andamento dos trabalhos, no esforço de sair de territórios, que gasta quase dois dias pra chegar num município e depois pegar carro, avião, pra chegar em Rio Branco, deixando famílias lá”. 

Alunos participando da Oficina na Comissão Pró-Indígena do Acre. Foto: Sarah Helena

CPI- Acre também tem papel de estimular jovens indígenas nas lutas políticas

A jovem comunicadora, Samsara Nukini, da Aldeia Panã, Terra Indígena Nukini, chegou à CPI-Acre em maio de 2023. Além dos ensinamentos sobre comunicação e tecnologia, ela relata que somente após ingressar é que tomou conhecimento de questões políticas importantes como a tese do Marco Temporal, ação que tramitou no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF) e que diz respeito às condições para demarcação de territórios indígenas. A partir disso, Samsara Nukini viu a importância das manifestações também pelas redes sociais, já que nem todos poderiam reivindicar os direitos presencialmente em Brasília. 

O projeto está se expandindo para além do planejado. “A gente volta pro território, leva as informações, e vai lá e trabalha. Hoje tem a possibilidade de criar coletivos, hoje já tem o coletivo da aldeia da Messiany, que é Huni Kuin, ela tem o coletivo das mulheres e partiu desse projeto da comunicação. Hoje, dentro do território Nukini, a gente tá dando andamento na criação do projeto de comunicação da Saga Produção Território. É um grupo que a gente tá fazendo de juventude, são 16 participantes. Hoje é metade homem, metade mulher […]”, conta o aluno Uhnepa Nikini. 

Projeto proporciona troca de conhecimentos entre indígenas e não indígenas, “É um momento de sair da nossa bolha”, diz colaboradora do projeto

A estudante do curso de Jornalismo da Ufac e colaboradora do projeto, Ludymila Maia, afirma que sua experiência com os comunicadores indígenas lhe proporcionou esclarecimento, possibilitando que enxergasse outras realidades: “é um momento de sair da nossa bolha”. 

Ela reforça o quanto a rotina de trabalho e estudos na cidade nos prende a nossa própria narrativa e impede de olhar além, de enxergar as dores e causas daqueles que vivem uma realidade diferente. Além disso, ainda critica a sociedade, que tende a “olhar com maus olhos uma coisa que eles nem entendem”. 

Sobre isso, a professora Lofego afirma  sempre ter cuidado com a escuta, de tentar entender quais são as demandas e as experiências dos diferentes povos, para enfim, trazer um conteúdo para ser aplicado nas atividades do projeto. 

Nesta questão, ela tem como inspiração a CPI-Acre, já com 40 anos de experiência na educação indígena, com formação de professores e agentes agroflorestais, bem como no trabalho chamado de “experiência de autoria”, incentiva publicações didáticas, pesquisas, relatórios e audiovisuais indígenas, com valorização da línguas maternas.  

Cine-debate com o antropólogo Terri Aquino e a turma dos comunicadores indígenas. Foto: Ila Verus

O conjunto das oficinas de comunicação apresentou aos jovens indígenas participantes outras formas de resistir, de lutar e fazer incidência política, mostrando ao mundo sua cultura, suas causas e o cotidiano de seus territórios, através da internet, redes sociais e mídias digitais. 

Além disso, também apresentou aos bolsistas, colaboradores e professores, novas perspectivas e oportunidades de expandir seus horizontes e também aprender com seus alunos. Como disse a professora Juliana Lofego: “ é um aprendizado pra gente também, de entender que eles vêem uma comunicação muito mais conectada com a natureza, e que a gente, enquanto cidadão urbano, se descolou disso”. 

A jovem comunicadora Samsara Nukini reflete sobre a importância do projeto, “pra mim foi ajudar a proteger o meu território, ajudar como liderança, como usar a tecnologia, como usar um aparelho celular, como usar redes sociais em prol do meu território, em prol da ajuda dos povos indígenas.” 

Foto: Ila Verus

Redes Sociais indígenas

Rede de Comunicadores Indígenas do Acre- @comunicadoresindigenasdoac Comissão Pró-Indígenas do Acre- @proindigenasacre 

Coletivo dos Estudantes Indígenas da Ufac- @ceiufac 

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira- @coiabamazonia

Continue lendo

Cotidiano

“Pacto Brutal” e o efeito da mídia em casos de intolerância religiosa

Publicado há

em

por

Documentário relembra crime dos anos 90 pautado em preconceito ao considerar a religião dos acusados fator motivador

Por Gabrielly Martins

No cenário midiático, é possível observar como a forma de veicular notícias pode impulsionar pautas imprudentes e agravar crimes de intolerância religiosa. Uma análise crítica dessas ocorrências podem ser visualizadas no documentário “Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez”, lançado em 2022, que além de evidenciar uma tragédia pessoal, expõe o papel da mídia na reprodução deste problema.

A cobertura em cima do caso, sensacionalista, distorce os fatos ao apontar a religião de matriz africana do casal de assassinos como fator motivador. Ao destacar estereótipos e simplificar discursos, a mídia contribui para a criação de um ambiente agressivo à comunidade praticante de religiões afrodescendentes. 

O documentário é assertivo ao convidar para as entrevistas a estudiosa em religiões Rose Rodrigues, para falar sobre essas crenças, ritualísticas e a não ligação das religiões de matriz africana com o crime cometido. Ela reitera que estimular esse olhar de preconceito para o crime é, acima de tudo, tirar a responsabilidade dos autores e depositá-las na fé do outro. 

Rose Rodrigues, estudiosa em religiões, foi convidada ao documentário “Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez”. /Imagem: HBO MAX

 Preconceito e desrespeito

As manchetes do  mês dedicado à luta contra o crime de racismo e à valorização da história do povo negro, em novembro de 2023, foram marcadas por uma significativa incidência de casos de intolerância religiosa. Pedrinho, jogador do Atlético-MG e adepto do Candomblé, foi alvo de desrespeito e preconceito em comentários nas redes sociais, após uma derrota do time. A insatisfação com o resultado da partida pareceu motivar o comportamento criminoso. 

Para Laiela Santos, escritora e militante do Movimento Feminista Negro, em matéria para o site Cult, a demonização e a criminalização religiosa vem do que foi implantado na sociedade desde o período de escravização e exploração dos negros, o que gerou marginalização da cultura e fé do povo africano. O meio encontrado para sustentar esse manifesto sociocultural foi a anexação ao catolicismo, o que originou a Umbanda.

Segundo o IBGE, menos de 1% dos brasileiros praticam religiões como a Umbanda e o Candomblé, o que justifica o baixo conhecimento da população sobre essas crenças. Isso leva a um fato, o de que a população não busca informações sobre essas religiões, impedindo que a grande massa entenda os valores e costumes desses grupos, e que atos tão violentos quanto o que vitimou a atriz brasileira não condizem com a realidade.

O processo de catequização e evangelização estabelecido no Brasil pelos missionários europeus não destruiu as manifestações de resistência do povo afro-brasileiro, como os que levam a fé no Candomblé adiante desde a época da invasão dos portugueses. Isso mostra que o combate à intolerância não é uma característica particular do momento atual e reforça que a resistência deve se manter de forma primordial.

Para Cassia Iasmin Marinho, professora de História pela Universidade Federal do Acre (Ufac), pós-graduanda em Criminologia na Faculdade Venda Nova do Imigrante (Faveni) e integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi/Ufac),  mesmo neste espaço de resistência e diversidade, o preconceito velado ainda é recorrente no imaginário religioso de grande parte da população. “Para algumas pessoas, é mais crível se apresentados elementos obscuros para explicar uma ação que apesar de hedionda, é humana”, explica a pesquisadora. 

A pesquisadora ainda complementa que a sociedade dos anos 90 não se diferencia tanto da atual quando se fala do preconceito contra religiões de matriz africana, e salienta que há uma absurda discriminação por serem consideradas “do demônio” por outros grupos religiósos, somente pela crença de que realizam sacrifícios e demais  inverdades. “Tudo isso está ancorado em um racismo estrutural, que crê não haver problemas em demonizar manifestações religiosas de matriz africana. Pelo contrário, acham ser o certo”, finaliza.

Continue lendo

Mais Lidas