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Aspectos sociais da imigração venezuelana no Acre 

Por Hellen Lirtez

A temperatura na capital acreana (Rio Branco) tem uma média de 32°C, 30°C na sombra. Já na capital venezuelana (Caracas) varia de 28°C a 21°C, o que pode ser considerado um clima agradável. O sol é o elemento que sempre esteve presente na imigração venezuelana, isso os direcionou até terras brasileiras como sendo a única luz guia nos caminhos de um povo que teve de aprender a conviver com o escuro.

A luz solar é algo tão comum na jornada dessas pessoas que seus rostos apresentam vermelhidão, rachaduras, manchas e algumas vezes queimaduras devido a alta exposição. No Brasil, o câncer de pele corresponde a 33% de todos os diagnósticos, e o Instituto Nacional do Câncer (INCA) registra, a cada ano, cerca de 185 mil novos casos. Infelizmente, a radiação solar e seus malefícios são a menor das preocupações de um venezuelano que está buscando ajuda nos semáforos.

 A avenida Ceará pode ser considerada uma das ou se não a avenida mais conhecida do estado, ela é a rota central para bairros como estação, floresta, Manoel Julião etc. Atualmente, há mais de 3 anos e meio ela se tornou uma vitrine que é assistida através da janela quadriculada de um automóvel. o sinal obriga os carros a pararem e durante um minuto e meio  no palco de asfalto e iluminação de sol pino, eles são vistos.

Cena 1 – De uma crise para outra

Todos os países latino-americanos foram colonizados, ou seguem até hoje nos meandros da colonialidade. A Venezuela e o Brasil partilham memórias muito familiares em suas histórias. Governos corruptos, autoritários, altas taxas de desemprego, brigas irracionais entre ideologias, crises políticas e sociais moldam a desordem e o caos no qual os dois países se encontram atualmente.

Para eles, tudo começou a piorar em meados de 2013, quando a Venezuela enfrentava uma crise política em razão da disputa causada pela posse interina de Nicolás Maduro, logo após o afastamento de Hugo Chávez, que mais tarde morreu. Maduro assumiu oficialmente e nos anos que se passaram a situação do país se agravou ainda mais, deixando milhares de pessoas em condições subumanas: sem comida ou renda. 

Durante o ano de 2016, por exemplo, a inflação foi de 800%. Em 2018, Nicolás Maduro se reelegeu, mesmo com altos índices de rejeição. Enquanto isso, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro era eleito. Os dois presidentes são polêmicos e por vezes abusam do poder que têm nas mãos.

Na Venezuela as carnes são consideradas produtos de luxo devido ao seu valor. Em alguns estados, o valor do frango supera os 3 milhões de bolívares, aproximadamente 155 reais. O mesmo frango é uma das carnes mais consumidas pelos brasileiros atualmente devido ao drástico aumento da carne bovina. A cesta básica no Brasil tem um valor médio de 600 reais, o número de desempregados beira 14 milhões e cerca de 40 milhões de brasileiros vivem na miséria, com renda de até R$ 89. Afinal, quantos Brasis cabem em cada brasileiro? 

Estes números contribuem ainda mais para o aumento da criminalidade e agravamento de doenças, principalmente durante a pandemia da Covid-19. Mesmo que o Brasil aparentemente não passe por uma instabilidade tão severa quanto a Venezuela, ele não é o melhor país para pessoas que estão fugindo de uma crise, já que aqui também vivemos uma crise política, econômica e de saúde.

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Cena  – Os indígenas Warao

A primeira vez que o vi foi em agosto de 2019. Neste dia, houve um acidente no centro da cidade e o trânsito estava congestionado, não ia nem para frente, nem para trás. Era exatamente 13h, horário de almoço e de pico no centro rio-branquense. Eu estava atrasada para chegar ao trabalho, quando notei um casal e duas crianças subindo uma ladeira.  O homem andava à frente, seguido por uma mulher grávida, que com uma de suas mãos segurava a barriga imensa e com a outra guiava duas crianças, que também estavam de mãos dadas.

Eles carregavam consigo bolsas feitas de panos coloridos que mais pareciam retalhos costurados um sobre o outro. Elas estavam muito bem amarradas ao redor do tórax. Essa postura de amarrar e manter tudo próximo a si me pareceu ser um reflexo de quem já perdeu muito. Dentro das bolsas notei que haviam placas de papelão e que provavelmente eles estavam vindo de outro lugar, talvez de mudança. 

Enquanto eles subiam a ladeira, o homem, que possivelmente seria o pai das crianças e marido da mulher, paralisa um pouco em frente a um restaurante. Ele observa as pessoas almoçando, as crianças alegram-se. A mulher grávida evita olhar, mas o pai os incentiva a continuar andando. Seus pés, já cansados por atravessar fronteiras, atravessavam também o caminho da fome. Mesmo assim, parecia ser preciso não parar. 

Na sequência, eles subiram a ladeira a um ponto em que eu não conseguia mais acompanhar de dentro do ônibus. Naquele instante olhei para os passageiros, para o motorista, para o trânsito em volta e parecia que apenas eu tinha visto a cena. Presenciei aquilo em plena luz do dia.  Sim, esse retrato é muito comum, mas é justamente isso que causa espanto. Desde então, observo e documento cenas como essa. 

Cena 3 – O abrigo no bairro da Base 

Em 18 de julho de 2020 já completavam cinco meses de pandemia. Acompanhei a professora Flávia Pinheiro em uma ação conjunta, a qual ela havia elaborado com outras educadoras e o Moto Club Abutres. Um caldeirão de sopa encheu mais de 200 copos de sopa, que acompanhavam alguns sacos de pão. O momento era crítico, mas havia chegado ao conhecimento da educadora a situação de um abrigo venezuelano localizado no bairro da Base. 

Professora Flávia Pinheiro, 2020, abrigo do bairro da Base.

Em comboio, Flávia foi até o local. A professora entende bem o que é estar ao relento. Na infância ela passou por situações parecidas quando ainda morava nas periferias de Cuiabá. Para ela, eles vieram para a capital tentar uma vida melhor, assim como ela fez, por isso merecem toda ajuda necessária. Assim que chegaram lá, todos os indígenas venezuelanos que estavam no abrigo se amontoaram e esperaram em grupo, como se isso fosse uma espécie de defesa grupal, estarem juntos.

Quando chegaram lá havia dias em que não comiam direito, sobreviviam pedindo nas casas e sinais, mas devido à pandemia não conseguiam o suficiente. A casa abandonada não tinha portas nem janelas, seu reboco estava desgastado pelo tempo. Entretanto, era um teto que passava uma falsa sensação de segurança para aquelas pessoas. Era impossível contar um a um e todos estavam sem máscaras. As crianças estavam bastante sujas e os pais muito tristes. Uma lona preta cobria a parte da frente, fazendo papel de telhado. 

 A casa possuía em torno de cinco cômodos, não havia colchão no chão, mas sim panos e mais panos marcando o local onde as pessoas dormiam. As crianças fizeram fila para receber o pão e a sopa. É tão violento pensar que as crianças exercem isso de uma maneira não natural. Chega a ser surpreendente como as crianças reagem em situações como essas. Crianças indígenas venezuelanas brincavam e dividiam o pão juntas. 

Crianças indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

Os Warao são conhecidos como povo navegante e possuem costumes comunitários. Percebi isso presencialmente no dia em que visitei o abrigo. Uma garrafa de refrigerante doada por um vizinho foi compartilhada por todas as crianças, de boca em boca até o último gole.

Crianças indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

A senhora de vestido verde que segura um pão é Dolores Zapata. Essa foi a primeira vez que estive próxima dela, mas, não era a primeira vez que a vi de fato. Ao chegar lá, essa senhora de pele queimada e cabelo longo caiu aos prantos e fez um sinal de agradecimento a Deus. Fazia muito tempo que ela e o grupo de indígenas Warao estavam com fome. A senhora pouco falava, quando recebeu o alimento procurou se preocupar apenas com este momento.  Expressava uma enorme felicidade pela ação da professora Flávia, mas carregava em seu olhar muitas outras coisas. 

Dolores Zapata, mulher indígena Warao, 2020.

Dentre as práticas e costumes do povo Warao estão a pesca, caça, agricultura, artesanato e carpintaria. Talvez por isso tenham se identificado tanto com a Amazônia brasileira. Os antepassados Warao eram muito prósperos, todo o tempo trabalhavam e levavam alimentos para suas casas. Porém, devido aos “avanços” capitalistas no ano de 1965, o Governo da Venezuela construiu um dique que obstruiu o Rio Manamo. Esse projeto afetou diretamente a vida dos Warao, por ter causado salinização súbita da água do rio, além de impactar os ecossistemas animais e vegetais. Desde então eles vivem como nômades passando de cidade em cidade.

A jornada dos Warao até o Acre foi longa, eles saíram da cidade de Tucupita, capital de Delta Amacuro, que está localizado no nordeste da Venezuela. Atravessaram sete cidades para chegar na fronteira com o Brasil, no município de Pacaraima, no estado de Roraima. Nesse deslocamento foram 930 km percorridos. De Pacaraima até Boa Vista, foram mais 215 km, e chegando na capital roraimense vivenciaram uma situação de aglomeração com a população venezuelana imigrante. Eles continuaram sua mobilidade para Manaus, até lá foram mais 749 km de estrada. 

Lá se depararam com a mesma situação de Boa Vista, muitos imigrantes buscando refúgio. Optaram por ir para Porto Velho, deslocaram-se pela rodovia BR 319, percorrendo mais 888 km até chegarem na capital rondoniense. Infelizmente, assim como em Manaus e Pacaraima, as condições eram as mesmas e assim preferiram vir para Rio Branco-AC, que fica há 511 km de Porto Velho. O deslocamento total, da origem até Rio Branco, foi de 3.293 km.  Tudo isso por um recomeço. Nem todas as famílias Warao tiveram a mesma oportunidade de chegar direto até a fronteira, pois algumas precisaram fazer viagens em escalas, de povoado em povoado.

Atualmente, os Warao sobrevivem de doações e apoio provenientes, em especial, da sociedade civil, não do Governo, ainda que em alguns estados já existam abrigos e as famílias recebam algum tipo de assistência. Os que não contam com assistência social pedem ajuda nas ruas para conseguir pagar os aluguéis e ter acesso a alimentos. 

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz.

Os venezuelanos indígenas Warao sofrem as mesmas dificuldades de diversos imigrantes quando chegam no Brasil e principalmente no estado do Acre, ao procurar atendimento na rede de saúde, no CRAS, no terminal rodoviário. Essas instituições não estão preparadas para atender esse público. Os venezuelanos alocados atualmente no Acre se dividem entre indígenas Warao, localizados em sua maioria no bairro Cidade do Povo, e não-indígenas, abrigados no bairro Tancredo Neves. 

Três mulheres, três sinais: Mulheres indígenas Warao

Heloisa, Jéssica e Dolores estão nos semáforos há dois anos. A primeira vez que as vi foi em meados de 2019. Sempre naquele 1 minuto do sinal, para mim tempo que me atrasava para chegar no trabalho ou na faculdade, mas que para elas era muito pouco. Heloisa é mãe de Jéssica e filha de Dolores, uma família de mulheres indígenas Warao. 

As três costumam se dividir em pontos de muita movimentação. Heloisa fica entre a avenida Ceará e a rua Pernambuco, em frente a uma concessionária de veículos, Jéssica fica no mesmo local, porém um pouco mais a frente. Dolores sempre fica no cruzamento da avenida Ceará com a Floriano Peixoto que possui quatro sinais.

Jessica foi a primeira da família Zapata que abordei. Ela estava cansada, o sol das onze estava impiedosamente forte, por isso ela estava sentada. A jovem de 19 anos tem praticamente minha idade, além disso, nosso tom de pele e cor de cabelo são bem parecidos. Após sentar ao seu lado comecei a perceber que das poucas coisas que nos diferia era a nacionalidade. Visivelmente Jéssica estava ali para ajudar a mãe e a avó. Quando perguntei a ela o que ela gostaria de fazer, me respondeu de maneira seca, porém firme: “estudar”. Há dois anos ela saiu da Venezuela, um país onde a educação hoje se encontra defasada. Ao vê-la ali mendigando por centavos me perguntei: onde estaria Jéssica agora se não houvesse crise na Venezuela?

Jessica Zapata sendo entrevistada em seu local de trabalho, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

De longe Heloisa é só uma mulher tentando sobreviver, de perto ela é uma mãe, uma filha, tentando ter o mínimo para comer em um lugar desconhecido. Heloisa é uma mulher tomada pelo silêncio, e seu silêncio diz muito. Antes de abordá-la a observei de dentro do carro, queria saber como era vista do ponto em que ela ia buscando por ajuda. Depois de falar com Jéssica, fui até o meio fio em que Heloisa estava. Seu cabelo estava trançado, uma blusa vinho, saia amarela e nos pés uma havaiana azul turquesa, típica de nosso país. Começamos a conversar, no entanto, todas perguntas sobre como ela veio até aqui ficaram sem resposta. Ela procurava palavras, mas não sabia o que dizer. Seu olhar estava trêmulo e parecia que a qualquer momento lágrimas iriam lavar seu rosto. Em seu pescoço havia um colar com uma imagem colorida de Cristo ao qual ela apertava enquanto desviava seu olhar. O silêncio é algo assustador quando se tem muito a dizer e a cobrar, quando já se gritou muito a ponto de perder a própria voz. Quando estava dentro do carro a observando percebi que havia uma frase bíblica em suas costas que contrastava com aquele momento.

“Porque as estrelas dos céus e as suas constelações não darão a sua luz; o sol se escurecerá ao nascer, e a lua não resplandecerá com a sua luz.” Isaías 13:10

Heloísa Zapata, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Baseado nesta frase perguntei a ela se a fé a havia trazido para o Brasil e ela me respondeu, “estou aqui por causa da fé”. A fé, que assim como move montanhas, moveu pés venezuelanos para esta parte do continente latino-americano.

Dentre os carros desfila uma senhora de mais ou menos 65 anos. Reconheci de imediato que se tratava de Dolores Zapata. Desde a primeira vez que a vi ela usa os mesmos vestidos verdes, a cor da esperança. Ela não queria conversar, queria apenas continuar sua jornada entre os carros. Com um pote de creme cortado, a idosa passa entre as máquinas de metal estacionadas momentaneamente, alguns dão cinco centavos, outros, cinco reais. 

Dolores Zapata, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Os Warao são pessoas muito desconfiadas, mesmo que recebem ajuda não se acomodam e assim vão para os sinais. Essa prática é denominada por eles como “coleta”. Em grupos, indígenas Warao saem da Cidade do Povo até o Centro da cidade bem cedo pela manhã, para conseguir dinheiro ou alimento. Essa prática geralmente é realizada pelas mulheres enquanto os homens as vigiam de longe.

Criança indígena, Warao, abrigo da base, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Há uma pequena diferença da atuação de indígenas Warao e venezuelanos não-indígenas.  Geralmente os Warao são bem diretos em suas placas “ajuda para comer”, já os não-indígenas além de pedirem ajuda e comida pedem também por trabalho.

A língua é um fator importante na hora de pedir dinheiro e ajuda, pois os Warao trazem aspectos próprios de sua etnia, apesar de se comunicarem em espanhol. O Brasil é rodeado de países falantes da língua espanhola, apesar disso, o investimento linguístico sempre é voltado para o inglês. Essa preferência pela linguagem é apenas uma das evidências que ainda nos permeiam após a colonização de 1500.

No Acre, mesmo os Warao tendo grandes habilidades, desde a pesca até a confecção de artesanato, a única saída para conseguir recursos financeiros para a sua subsistência são as ruas. Diferente dos brasileiros que vendem água de coco, doces ou pão no sinal. Seu único minuto de atenção possível é o do sinal. Nesse curto espaço de tempo é preciso andar entre os carros, erguer a placa e esperar que alguém se comova. Mas nem todos são comovidos.

A esperança mora em um sorriso

11 de março de 2020, quinta-feira, mais um dia de trabalho para Milagros Antuan. A mulher de 39 anos costuma chegar cedo em um dos principais sinais da Avenida Ceará. De calça jeans, blusa rosa de manga longa, tênis branco, chapéu e uma placa de papelão na mão. A mãe de três filhos era secretária executiva de uma grande empresa na Venezuela, ela sempre buscou um bom futuro profissional. Porém, no Brasil, não conseguiu fazer os trâmites necessários para validação de seus documentos.Em contraponto a isso, foi  orientada pelo Ministério Público para conseguir sua cidadania brasileira, a qual ela tem muito orgulho.Milagros é formada em engenharia de sistemas, mas como não conseguiu um emprego no país precisa se deslocar no meio fio.

Milagros, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Carros vêm e vão, o sol aquece, a temperatura aumenta, mas ela permanece no mesmo lugar. Ela espera o sinal fechar para andar nas vielas que se formam entre os carros, alguns carros como a Hilux da foto não chegam sequer a abrir o vidro, simplesmente ignoram. Por dia ela consegue arrecadar cerca de 40 reais. Parece pouco, mas isso paga o apartamento de 250 reais em que ela mora. Milagros se sente tão grata pela ajuda que teve no país para obter sua cidadania, que em nenhum momento da entrevista cita a xenofobia e a rejeição pelas quais passa na avenida mais movimentada do estado. 

Enquanto eu anotava algumas informações sobre Milagros, um rapaz notou que eu estava com uma câmera no pescoço e em seguida começou a fazer pose. Logo, achei divertido seu jeito descontraído e fui falar com ele. John Azevedo já carrega em seu nome certa brasilidade e ele se encaixa perfeitamente no refrão da música “Apenas um rapaz latino-americano”, do cantor Belchior: “eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior.”

Jhon Azevedo, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

 Nunca passaria pela minha cabeça que aquele limpador de vidros seria um venezuelano. John estava “camuflado” no meio de outros rapazes da sua idade que trabalham no sinal. Quando o entrevistei, havia pouco tempo que chegara de Ji-paraná (Rondônia). Seu objetivo em limpar carros no Acre é conseguir uma passagem para a Bolívia e depois para o Chile. 

No dia em que nos falamos ele havia conseguido apenas 6 reais, porém estava muito feliz, aquele era o dinheiro do almoço. John não veio sozinho para o Brasil, ele tinha uma companheira, porém, ela o abandonou para ficar com sua família e agora ele vaga em busca de conhecer outra mulher que o acompanhe em suas aventuras internacionais. Apesar de jovem, o rapaz já esteve em diversos países como Guiana-francesa, Argentina e Peru.

Quando está nos sinais sua abordagem é muito nostálgica “buenos días señor, buenos días señora, ayuda a este pobre hombre”. Ele entrava com um sorriso e saia com o outro ainda maior. De um jeito muito carismático ele tentava convencer as pessoas a ajudá-lo. John relatou que sofreu preconceito em outros países, mas no Brasil sentia que tudo era “normal”. Naquele momento percebi o porquê de ele se sentir completamente aceito em um país que mata diariamente jovens como ele. John não levava índices como esse em consideração, mas sim o simples fato de saber que não há diferença física nos traços de um jovem venezuelano e um brasileiro. 

Jhon Azevedo, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

A caminho do Acre, John perdeu um amigo quando ainda estava em Ji-Paraná. Segundo ele, seu amigo não havia feito nada e trabalhava informalmente como ele, mesmo assim o mataram. Mesmo em meio a tantos problemas, o rapaz de 25 anos latino-americano vê o mundo como um lugar de exploração e oportunidade. 

Milagros e John não se conheciam antes dos sinais acreanos, se conheceram assim, dividindo o ambiente de trabalho a céu aberto. O que há de mais comum entre os dois é a esperança de dias melhores. Sua maneira de ver nosso país chega a surpreender. Depois da entrevista, vi um vendedor de pão chamá-los para beber água. Ali percebi o porquê de eles serem tão gratos. Ser um nômade deve ser cansativo, você parte antes de criar raízes.  No caso de John talvez ele ainda desbrave muitos lugares com o seu sorriso, já Milagros permanecerá em terras acreanas sonhando com o dia em que seu currículo será traduzido e aceito.

Toda a incerteza que encontrei na caminhada em busca dos imigrantes da Venezuela me lembra quando Alice, no país das maravilhas de Lewis Carroll, encontra o gato de Cheshire. 

“ O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?
Isso depende muito de para onde você quer ir, respondeu o Gato.
Não me importo muito para onde, retrucou Alice.
Então não importa o caminho que você escolha, disse o Gato.
Contanto que dê em algum lugar, Alice completou.
Oh, você pode ter certeza que vai chegar se você caminhar bastante, disse o Gato.”

Não importa muito onde eles estavam indo ou onde desejavam ir, qualquer caminho já serviria. Assim como Alice, os venezuelanos, sejam indígenas ou não-indígenas, estão buscando alguém que lhes aponte um caminho seguro para continuar com menos medo. fato é, eles continuarão se movimentando sempre que necessário, sempre para onde o sol brilha com mais força. Seja em terras brasileiras ou não, é importante lembrarmos que somos todos filhos do mesmo sol.

Jhon Azevedo e Milagros, Avenida Ceará, 2020. Foto: Hellen Lirtêz

Avaliação

Cerca de 17 mil animais são vítimas de abandono no Acre e número aumenta a cada ano

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Por Arielly Casas, Lucas Sousa e Gabriela Queiroz

O município de Rio Branco registra um número de quase 17 mil animais abandonados, segundo o Centro de Zoonoses da Prefeitura de Rio Branco. Esse dado também reflete uma realidade nacional, na qual 25% dos cães e 26% dos gatos estão em situação de abandono, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Um exemplo é o caso de Mimoso, mascote adotado pela clínica veterinária Cães & Cia. Um dos médicos veterinários da clínica, Denis Costa, conta que o gato foi levado há mais de um ano pelo cuidador que o abandonou. O animal estava com uma miíase (infestação da pele por larvas de moscas que se alimentam do tecido do hospedeiro) na cabeça.

Costa também relata que foi um caso difícil de tratar e que ninguém acreditava na recuperação. Agora, após 18 meses, Mimoso está totalmente recuperado.

“O mascote que nós temos aqui, ninguém acreditava que estaria vivo. Era um caso em que ninguém confiava, e agora ele está esbanjando saúde”, disse o veterinário.

Na imagem, o veterinário Denis e o mascote Mimoso. Foto: Lucas Sousa

Esse não é o único registro de casos assim. Trata-se de uma questão alarmante, que cresce cada vez mais e configura um crime previsto na legislação brasileira. Segundo o artigo 32 da Lei Federal nº 9.605/1998, o abandono e os maus-tratos contra animais são crimes, com pena de três meses a um ano de detenção, além de multa. Em 2020, houve uma modificação, aumentando a pena para dois a cinco anos de reclusão, conforme a Lei Federal nº 14.064/2020.

ONGs

Um dos maiores desafios enfrentados pelos ativistas de Organizações Não Governamentais (ONGs) é o alto custo dos tratamentos para os animais resgatados. Vanessa Facundes, presidente da ONG Patinha Carente, explica que a organização não consegue realizar o resgate de todos os animais devido as dívidas acumuladas com as clínicas veterinárias.

“Gostaríamos de poder resgatar todos, mas temos dívidas muito altas nas clínicas veterinárias particulares”, argumentou a presidente da ONG.

Projeto de Lei

No Acre, dos 24 deputados estaduais, Emerson Jarude (NOVO) defende a causa animal e já possui um projeto de ação em parceria com a Universidade Federal do Acre (Ufac): o Projeto Cuidar, que tem como objetivo atender aos animais de rua. Instituições e ONGs que realizam trabalhos com esse foco também serão beneficiadas pelo projeto.

Jarude também anunciou o lançamento de um novo projeto: o Pet Farm (Farmácia de Pet), que será uma extensão do Projeto Cuidar.

“O Pet Farm é uma forma de conseguirmos disponibilizar medicamentos para os animais e auxiliarmos após o tratamento feito dentro desse projeto”, afirmou.

Poder público

A equipe de reportagem tentou contato com o Centro de Zoonoses da Prefeitura de Rio Branco para comentar a situação, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto para qualquer posicionamento ou esclarecimento por parte do poder público.

A crescente população de animais abandonados em Rio Branco evidencia a urgência de políticas públicas efetivas, parcerias institucionais e o engajamento da sociedade civil. Proteger os animais é também um dever social e legal, que exige mais do que boa vontade, é preciso ação.

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Cotidiano

Do papel às telas: a transição do jornal impresso acreano para o digital

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Por Ana Luiza Pedroza, Ádrya Miranda, Daniel de Paula e Wellington Vidal

 

O jornal impresso, símbolo histórico e cultural no Acre, começa a se despedir lentamente do cotidiano da população. A era digital assume o protagonismo, apostando em novos formatos de levar acesso à informação, no entanto, sem apagar o legado construído pelo impresso na história acreana.

Apesar dos esforços para reinventar o jornalismo local, a transição do impresso para o digital trouxe grandes desafios. No Acre, essa movimentação ocorreu de forma tardia, mas com a contribuição de jornalistas que se desdobram diariamente para acompanhar as mudanças no modo de noticiar, mantendo o compromisso social com a população.

Entre os obstáculos, a pandemia de Covid-19 foi um dos que aceleraram o declínio dos jornais impressos em todo o país, e no Acre não foi diferente. O A Gazeta, um dos veículos mais populares do estado, foi diretamente impactado.

Rotativa, máquina utilizada na impressão dos jornais A Gazeta. Foto: Ádrya Miranda

Fundado em 1985, sob direção de Silvio Martinello e Elson Martins, o jornal se destacou pelo jornalismo investigativo e de cunho social, sendo pioneiro em projetos editoriais gráficos com diagramação no impresso acreano. Foi por meio de suas páginas que os acreanos acompanharam coberturas históricas, como o assassinato do sindicalista Chico Mendes.

Em 1998, tornou-se o primeiro jornal a circular em cores no estado, com até 3.500 exemplares vendidos em dias movimentados, segundo Silvio. Apesar das inovações com o jornal impresso, o veículo enfrentou as adaptações tecnológicas do século 21. O portal online, criado ainda nessa fase, tinha estrutura simples, servindo apenas para replicar, de forma reduzida, as notícias do jornal físico.

À esquerda, Maíra Martinello; ao fundo, Paula Martinello; e à direita, Silvio Martinello. Foto: Arquivo pessoal

A edição impressa teve o seu fim em 2021, após uma expressiva queda nas vendas. Paula Martinello, jornalista do A Gazeta do Acre, relata que a migração definitiva para o digital foi desafiadora e impulsionada pela pandemia. “Foi um processo muito gradativo, porque o trabalho online não é fácil. É muita concorrência, é um outro tipo de público e perfil de consumo da notícia”, comenta.

Para os jornalistas do A Gazeta, hoje, A Gazeta do Acre, o desafio não foi apenas adaptar-se ao ambiente online, mas reinventar a rotina de produção jornalística sem abrir mão da credibilidade construída. Segundo Maíra Martinello, foram necessárias estratégias para garantir a sobrevivência e a relevância no meio digital, que exige mais agilidade, versatilidade e presença em todas as plataformas.

“A gente foi entrando nesse mundo online, digital. Claro que tem pontos positivos, como o custo mais baixo, a praticidade e a democratização do acesso à informação. Mas a era digital exige muito mais do jornalista, que hoje precisa escrever, gravar vídeo, áudio, editar, usar várias ferramentas ao mesmo tempo”, explica.

A transição da notícia do impresso para o ambiente digital, embora tenha sido impactante para todo o campo jornalístico, foi recebida de maneira diferente por cada veículo, conforme suas particularidades. Outro nome importante da imprensa acreana, como o jornal O Rio Branco, também enfrentou esses momentos de transformação.

Portal de notícias oriobranco.net. Foto: Ádrya Miranda

Mendes também reforça a necessidade dos jornalistas manterem seu compromisso social, mesmo diante das mudanças impostas pela era digital. “Se vocês forem jornalistas e pretenderem ser responsáveis, não esperem que a notícia chegue até vocês. Vocês têm que ir atrás da notícia”, conclui.

Essa transformação também é percebida por leitores que acompanharam de perto o auge das edições impressas no Acre. “Porque o jornal é um documento, então ele vai ficar ali para sempre”, comenta o jornalista e leitor assíduo Gleilson Miranda, de 55 anos, ao destacar que o jornal impresso carrega um valor que vai além da notícia do dia, mas também a documentação de histórias.

Segundo ele, com o jornal impresso era possível encontrar experiências afetivas, que marcavam seu momento de leitura.

“O jornal é impresso, tem esse charme, tem essa coisa de você sentar, tomar um café e folhear as páginas, lendo as principais notícias. Isso era muito bom para a época. Hoje você tem essa notícia mais rápida. Notícia que chega muito rápido”, afirmou Gleilson, ao relembrar as sensações que os impressos lhe proporcionaram.

A transição dos jornais impressos para os portais digitais no Acre marca uma mudança profunda no modo de fazer e consumir jornalismo. Conhecer a história da imprensa local, com a contribuição das edições do A Gazeta e O Rio Branco, é essencial para entender o papel que esses veículos tiveram na formação da identidade e da memória do estado.

Edição impressa O Rio Branco. Foto: Arquivo Espaço Cultural Palhukas

Para Narciso Mendes, atual proprietário da TV Rio Branco, o impresso no Acre carrega o legado de muitas figuras marcantes da história local. No entanto, a migração do jornal impresso O Rio Branco para o meio online não teve o mesmo peso como teve para os demais veículos.

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Cotidiano

Mulheres jornalistas superam dificuldades e levantam questões importantes para a sociedade

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Um estudo realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostrou que em 2021 49% das mulheres jornalistas sofreram ataques de gênero sendo desqualificadas com ofensas e xingamentos. No meio digital, o número sobe para 56,76%. Em uma área historicamente dominada por vozes masculinas, apesar das dificuldades as mulheres estão se destacando cada vez em maior número e trazendo à luz temáticas importantes para a sociedade.

Juliana Lofêgo, professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre, diz que a presença das mulheres está influenciando na cobertura de questões sociais, culturais e políticas. Para Lofêgo, elas têm desempenhado um papel significativo em destacar questões de violência contra mulheres e assédio, garantindo que essas problemáticas não sejam esquecidas ou minimizadas pela mídia. “Com o avanço do movimento feminista e as mudanças sociais, as mulheres jornalistas têm sido influenciadas a trazer à tona essas questões, mesmo que isso não tenha sido comum no início de suas carreiras”, complementa.

Consuela Araújo é jornalista formada pela Ufac e atua na área de assessoria de imprensa, ela relata que como jornalista mulher enfrentou estereótipos de gênero e discriminação ao longo da carreira, principalmente fora do jornalismo. Já no telejornalismo, outro campo onde atuou,  diz ter sido bem acolhida por colegas e pela comunidade, entretanto considera que a busca pela igualdade de oportunidades continua sendo uma luta constante. Araújo aconselha as futuras profissionais a buscarem aprimoramento, construir uma rede de contatos sólida e manter a paixão pela verdade e pela narrativa honesta. “Acreditar na importância do jornalismo local é essencial para contribuir significativamente para a sociedade acreana”, afirma. 

Servidora concursada do Estado, a jornalista Andreia Nobre relata que um grande desafio que enfrentou na carreira profissional foi quando se tornou mãe, pois teve que conciliar a maternidade e o trabalho. Ela acredita que esse seja um desafio para as mulheres em qualquer carreira e também para as que trabalham no setor privado.

Apesar das contribuições significativas das mulheres para abordar agendas importantes a serem discutidas na sociedade, a desconfiança em relação a sua capacidade profissional ainda é uma realidade. Ana Paula Melo, estudante do terceiro período do curso de Jornalismo, trabalha como estagiária no jornal Cidade Alerta, ela diz que percebeu que há um preconceito dentro da universidade pelo fato de ser uma mulher estudante de Jornalismo.

“Já vi algumas pessoas torcerem a cara num tom de desconfiança quando falo que faço Jornalismo. Alguns já dizem que somos compradas, e, às vezes, por ser mulher, dizem que ao invés de buscar informações, buscamos fofoca. Em rodinha de amigos, embora ainda seja estagiária, já fui questionada se algum político me paga para fazer matéria sobre ele. Será se eu não tenho capacidade para escrever sobre política? São reflexões que sempre me questiono, afinal, ser mulher é ter a sua capacidade sempre questionada”. Ela acredita que o maior desafio é alcançar credibilidade equivalente a dos homens e enfatiza a importância de inserir mais mulheres em posições de liderança nos veículos de comunicação. 

Texto produzido pelos acadêmicos Ana Caroline Santiago, Adriely Gurgel, Maria Eduarda Melo, Rian Pablo de Oliveira e Júlia Andrade. A produção faz parte da disciplina Fundamentos do Jornalismo.

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