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Ciclismo no Acre e a epidemia das bicicletas

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Acreanos viram no ciclismo a oportunidade de desenvolver um hobby e de, posteriormente, participar de competições | Foto: Reprodução/Ana Paula Jansen

Com o crescente aumento no número de bikes em decorrência das circunstâncias pandêmicas, ciclistas amadores e profissionais explicam, neste dia do ciclista, como surgiu o amor pela pedalada que conquista simpatizantes a cada dia

Por Ana Luíza Bessa e Renato Menezes

Seja por necessidade, prática esportiva ou hobby, o ciclismo está conquistando novos adeptos a cada dia que passa. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um a cada três brasileiros possui uma bicicleta, e isto ficou ainda mais evidente com a pandemia de Covid-19, quando as pessoas começaram a notar, de forma mais assídua, a quantidade de ciclistas que vêm dominando ruas e ciclovias do Acre.

A prova de que a aquisição de bikes vem crescendo de forma avassaladora pode ser confirmada a partir de um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O estudo concluiu que, atualmente, são 50 milhões de bicicletas contra 41 milhões de carros. Além disso, a pesquisa Perfil do Ciclista 2018, realizada pela Transporte Ativo, constatou que os locais onde as pessoas mais seguem em deslocamento são para o trabalho, lazer e compras.

No entanto, um dos motivos pelos quais o ciclismo vem ganhando cada vez mais adeptos é a prática desportiva. Segundo a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), a venda de bikes cresceu em 118% no Brasil no ano de 2020 em comparação com 2019. E um dos motivos pelos quais este número cresceu de forma tão surpreendente tem a ver com a atividade física.

Número de ciclistas cresceu de forma disparada durante a pandemia | Foto: Reprodução/Freitas Fotografias

DIVAS DO PEDAL

A ciclista Silvana Maia, que criou o grupo “Divas do Pedal” com mais duas amigas no dia 28 de junho de 2020, foi uma dessas pessoas que aderiram à prática durante a pandemia de Covid-19. A ideia, que surgiu em decorrência do fechamento das academias e da necessidade de driblar o sedentarismo, ganhou a adesão de cada vez mais mulheres que enfrentavam crises de ansiedade, depressão e medo. “Pensamos nesse grupo para que pudesse inspirar mais meninas a cuidar do corpo, da mente e da saúde. Nosso objetivo não é a competição, mas levamos em conta a superação individual de cada uma”, complementou.

Segundo Maia, o grupo, que foca em empoderar mulheres na luta diária contra o machismo, conta com 94 ciclistas de vários municípios do estado, tais como Brasiléia, Rio Branco e Plácido de Castro. “Muitas vencem diariamente o machismo, pois o marido não compreende (o esporte), mas elas não desistem, acabam convencendo, traz pra pedalar também. Temos outro grupo com ambos, mas o ‘Divas do Pedal’ é só para mulheres”, explicou.

Para a atleta, que costuma pedalar quase todos os dias, o ciclismo traz benefícios indiscutíveis que englobam melhorias na qualidade de vida física e mental. Silvana, por exemplo, perdeu 11kg, conseguiu regular os níveis de colesterol, combateu a ansiedade e diz que muitas parceiras também tiveram resultados bastante animadores. “O ciclismo te dá alegria, te dá prazer, você pedala ao ar livre. Pena que não tem muito apoio aqui no Acre, não tem ciclovia, as ruas são escuras. Esse é o ponto negativo, você convive um pouco com o perigo. Mas é um esporte lindo que só promove bem estar”, contou.

Divas do Pedal contam com quase cem mulheres de vários municípios do AC | Foto: Reprodução/Divas do Pedal

ACOLHIMENTO

De fato, nem tudo são flores, e isto quem afirma é a própria pesquisa da Transporte Ativo, citada no início desta matéria. De acordo com a amostra, 47,6% dos entrevistados afirmaram que ciclovias e ruas mais adequadas seriam os grandes diferenciais para que os ciclistas melhorassem a prática de pedalar. No Acre, mais precisamente no município de Tarauacá, onde a pesquisa deu enfoque, 25,2% dos entrevistados contaram que a maior reivindicação é a segurança/educação no trânsito.

Mesmo diante de tantos empecilhos em torno da infraestrutura oferecida aos ciclistas, isto não desmotivou nem a ciclista e nem as outras divas, que já fizeram percursos de mais de 200km e agora têm como meta ir até a ponte sobre o rio Madeira, na BR 364. Sobre isto, Silvana deixa claro que todas as mulheres que quiserem entrar no grupo serão muito bem vindas, mas que é preciso começar aos poucos, para que cada uma entenda e respeite seus próprios limites.

“Incentivamos, mostramos que temos que começar aos poucos, pedalando 6km, depois 12, 20, e com a prática, vai aumentando. A maioria pedala, atualmente, 24km todo dia. Procuramos nos reunir sempre, e recentemente nos reunimos para comemorar um ano do grupo. Fizemos uma pedalada com mais de 300 pessoas e um arraial. Todo dia recebemos mulheres querendo entrar no grupo, e a gente acolhe muito bem”, destacou.

“Nós lutamos muito pelo empoderamento feminino”, disse Silvana Maia | Foto: Reprodução/Divas do Pedal

ACRE RACE

Com relação a limites e desafios, a prática competitiva em torno do ciclismo vem atraindo cada vez mais atletas. Segundo o organizador do evento Acre Race, Istanrley Rocha, a competição está inserida no calendário estadual desde 2016 e ganhando adeptos a cada edição.

Em 2017, no chamado Desafio 120km, foram 60 ciclistas. Em 2018, 80 pessoas participaram da edição. No ano seguinte, que ocorreu a edição reformatada e oficial do Acre Race, quase 200 atletas participaram. Devido à pandemia, o evento que era para acontecer em 2020 foi postergado e devidamente reformulado para este ano, e contou com mais de 400 ciclistas, com inscritos de Rondônia, Mato Grosso, Minas Gerais e até de países vizinhos, como da Bolívia.

“Tivemos ao todo 11 categorias, todas premiadas, além de diversos outros brindes de patrocinadores e apoiadores do evento, totalizando mais de R$ 25 mil somente em premiação total, tudo convertido para os atletas inscritos”, frisou.

Ciclistas do AC e de outros estados competiram na segunda edição oficial do “Acre Race” | Foto: Reprodução/Ana Paula Jansen

AMADORES E PROFISSIONAIS

A ideia do Acre Race é trazer as novas tendências do esporte aos atletas locais, colocando-os em percursos que sejam condizentes com a modalidade de Mountain Bike (MTB), e que não os limitem apenas às malhas asfálticas.

“A Federação Acreana de Ciclismo, com a entrada de gestores da história mais recente, tem visto o MTB de maneira mais atualizada. Antigamente as provas no Estado eram feitas integralmente em circuitos asfaltados, com MTB totalmente descaracterizadas e com muitas peças de bicicletas de estrada. Nos anos de 2014 em diante, as etapas começaram a ter um foco mais em trilhas, voltando às características do MTB”, falou.

Tais incentivos, segundo Rocha, podem funcionar como um chamamento a novos ciclistas, mas destaca a importância de planejar estratégias que forneçam ao esporte ferramentas e insumos necessários para que o ciclismo continue se desenvolvendo. “Acreditamos que com os órgãos públicos, uma vez estando envolvidos com o esporte, resultados positivos conjuntos podem ser alcançados, com o desenvolvimento de políticas públicas que possam favorecer o crescimento do ciclismo de maneira geral no Estado”, pontuou.

Mountain Bike (MTB) coloca o atleta em diversas condições com obstáculos durante o percurso | Foto: Reprodução/Ana Paula Jansen

AMOR PELA BIKE

O atleta Samuel Lira, que se considera amador, foi um dos mais de 400 ciclistas que participou do Acre Race 2021. Ele se encontrou no ciclismo em meados de 2013, quando seu pai resolveu abrir uma loja de vendas de peças e outros artefatos para bicicletas, chamada Mountain Bike Show. O rapaz, que estava acima do peso, viu reacender em si o desejo de voltar a ser ciclista, assim como fora na adolescência.

Acreano começou na adolescência e criou paixão pelo esporte após decisão em perder peso | Foto: Arquivo pessoal

“Logo que nós abrimos a loja eu comecei a voltar a praticar como hobby e para conciliar esporte e saúde no ciclismo. Daí me apaixonei de vez. Como eu já tinha um pouco de afinidade, comecei a adquirir novamente o amor pela bike. E com um ano de prática, subi um degrau para me tornar um atleta amador e, em 2015, comecei a competir”, disse.

Lira já participou de equipes como a do Corpo de Bombeiros, por exemplo. No primeiro ano de competição estadual, a dedicação ao esporte fez o atleta ser campeão em 2015 na categoria “iniciante” e ser vice-campeão em 2016 em Rondônia, na mesma categoria.

Samuel Lira já foi campeão e vice na categoria “amador”, em competições da Federação Acreana de Ciclismo | Foto: Arquivo pessoal

MUITA DEDICAÇÃO

Atualmente, o atleta treina três vezes por semana, com percursos que atingem em média 50km, e que, segundo ele, duram cerca de 1h30 para serem realizados por completo. Aos sábados, ele e mais um grupo de quarenta atletas amadores e profissionais costumam ir até o município de Senador Guiomard e voltar em até três horas. 

Questionado sobre como vê tantas conquistas neste esporte, Samuel, que participa de pelo menos seis grupos de pedal da cidade, diz que o empenho e a vontade de sempre querer se superar foram os combustíveis que o fizeram continuar no ciclismo. “Não foi fácil, teve muito treino, muita dedicação e muito amadurecimento para que eu pudesse me tornar um atleta cada vez melhor. Eu jamais imaginei me aprofundar e gostar tanto do ciclismo”, complementou.

Grupo costuma fazer percursos intermunicipais em poucas horas | Foto: Arquivo pessoal

DIA DO CICLISTA

A Lei de nº 13.508, de 22 de novembro de 2017, instituiu o dia 19 de agosto como o “Dia do Ciclista”. A data foi estabelecida para que, além de comemorar, as pessoas e as autoridades reflitam e tracem estratégias que visem a proteção que os ciclistas precisam para pedalar com mais tranquilidade nas ruas e ciclovias brasileiras.

A luta para o estabelecimento desta data no Legislativo é embasada a partir de um crime que ocorreu em 2006, nesta mesma data, que vitimou o biólogo Pedro Davison em Brasília, com 25 anos. O jovem não resistiu ao impacto do carro em alta velocidade no Eixo Sul da cidade e morreu na hora. O responsável, Leonardo Luiz da Costa, estava embriagado, com a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) vencida e fugiu sem prestar socorro. O rapaz foi condenado a 6 anos de prisão pelo crime, em regime semiaberto, e até hoje paga pensão à filha da vítima, que terá este direito resguardado até completar 25 anos. Na ocasião, a menina tinha 8 anos de idade.

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Como as redes sociais moldam a personalidade de crianças e adolescentes

O contato constante com conteúdos virtuais pode gerar ansiedade e necessidade de aceitação

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Por Gabriela Fintelmann e Natália Lindoso

A pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024 revela que 83% dos jovens entre 9 e 17 anos usam redes sociais como WhatsApp, Instagram, TikTok e YouTube. O levantamento, feito com 2.424 crianças e adolescentes e o mesmo número de responsáveis, mostra o impacto crescente dessas plataformas no cotidiano infanto juvenil.

Uma delas é a estudante Alicia da Luz, de apenas 10 anos, que já tem uma rotina digital típica da nova geração. Seguidora assídua das trends do TikTok, ela gosta de acompanhar dancinhas, músicas e desafios. Às vezes, as canções ficam tanto tempo na cabeça que ela começa a dançar sozinha em locais públicos. “Eu acho que influencia um pouquinho, porque tem vezes que dá vontade de dançar muito”, conta.

Com conteúdos rápidos, que viralizam em questão de horas, as trends acabam moldando hábitos, linguagem e comportamentos. Mas essa exposição constante também levanta alertas, como influência na autoestima das crianças, Alicia diz que já ficou triste ao se comparar com outras meninas da Internet. “Tem vezes que isso machuca, porque às vezes, eu estou desarrumada e do nada aparece uma menina bem arrumada na minha ‘for you’”, relata.

Psicóloga Samara Pinheiro. Foto: Arquivo Pessoal

Influências e riscos 

Nem todos os jovens se sentem pressionados. Para o irmão de Alicia, Adam da Luz, de 13 anos, diz não se importar em seguir trends: “Gosto de assistir vídeos de jovens que participam da igreja. Mas não sinto pressão. Prefiro sair pra jogar bola”, afirma. Mesmo assim, reconhece os dois lados da moeda: “O lado bom do TikTok é que dá pra ganhar dinheiro. Mas o lado ruim são os golpes e vídeos falsos”.

Para a pedagoga Maria do Carmo, mãe dos dois jovens, os filhos possuem uma boa relação quanto ao uso de telas. Ela monitora e alerta quando o conteúdo pode ser negativo para eles. Ainda assim, a pedagoga reconhece que o consumo pode afetar a autoestima deles: “os conteúdos mostram uma forma de viver luxuosa, sem problemas, onde tudo dá certo, então com isso eles criam sonhos, pois acreditam que tudo pode ser como a vida dos influenciadores”.

O professor de língua portuguesa Marcos Freire é pai do Gabriel, de 11 anos. Para ele, as redes sociais podem, sim, contribuir para o amadurecimento. “Como somos sujeitos constituídos pelos discursos que nos rodeiam, meu filho foi naturalmente interpelado por uma rede muito grande de ideias e informações. Isso fez com que ele tivesse rapidamente posicionamentos diversos, o que é uma espécie de amadurecimento cognitivo precoce”, reflete. 

Adam e Alícia. Foto: Arquivo Pessoal

Por outro lado, ele também vê riscos. “No que se refere ao amadurecimento sociointeracional, pode haver prejuízos. Por isso, acredito que o equilíbrio seja a melhor decisão: observar o tempo de tela, a idade de início e oferecer orientações constantes”, diz. 

Impactos psicológicos 

A relação dos jovens com as redes sociais acendem um sinal de alerta para pais, escolas e profissionais da saúde. O contato constante com conteúdos virais, números de curtidas e seguidores pode afetar diretamente a autoestima e o desenvolvimento emocional dos adolescentes.

A psicóloga Samara Pinheiro reforça que o contato com ideais inatingíveis pode provocar sentimentos de insuficiência. “Isso ativa comparações entre o self real [a forma como a criança se percebe no mundo real] e o idealizado, gerando angústia. O adolescente está em construção e, ao tentar corresponder a padrões irreais, pode desenvolver insegurança, ansiedade e até problemas com a imagem corporal”, explica.

Nesse cenário, o papel da família e da escola é fundamental. A orientação deve vir antes do controle. “O adolescente é espelho. Se os pais não dão o exemplo de um uso equilibrado, as regras perdem o sentido”, reforça a psicóloga. Estabelecer horários para o uso das redes, conversar sobre o que é consumido e incentivar outras atividades fora do ambiente virtual são caminhos possíveis.

Maria do Carmo. Foto: Arquivo Pessoal

Marcos Freire concorda com a psicóloga, para ele, a construção da identidade é um processo delicado, especialmente em um ambiente tão multicultural e acessível como as redes. “A plasticidade exacerbada de quem o sujeito pode se tornar pode gerar conflitos. Por isso, a família deve ser apoio, referência e promotora de ideais. Isso fortalece o caminho dos nossos jovens”, diz. 

Outros caminhos

As redes sociais oferecem oportunidades de aprendizado, conexão e diversão. Alicia cita os filtros, quizzes e vídeos educativos como pontos positivos. “Tem vídeo de pergunta e de quiz que eu gosto. Mas tem também os vídeos ruins, de maus-tratos com animais, vídeos adultos. Isso me deixa muito triste”, conta. 

Mesmo entre crianças, já há percepção crítica sobre o conteúdo. “No Instagram, aparecem mais coisas feias do que no TikTok. Quando vou seguir alguma amiga, vejo umas coisas que fico horrorizada”, relata Alicia.

As falas das crianças, adolescentes e seus responsáveis apontam que a influência digital não é apenas uma questão de tempo de tela. O apoio familiar é importante, sem o uso do controle, mas da orientação: “Se a família tiver possibilidade, ofereça outras alternativas ao mundo virtual, seja um hobby, dança, leitura ou exercício. É importante também observar os sinais de alerta, o comportamento daquele adolescente”, finaliza.

Redação

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Adoção LGBTQIAPN+ no Acre

Pedidos por casais homoafetivos desafia estigmas e amplia debate sobre inclusão

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Por Ana Paula Melo e Pedro Amorim

No Acre, 104 crianças e adolescentes vivem atualmente em situação de acolhimento institucional ou familiar. Desses, 21 estão aptos para adoção, enquanto 18 estão em processo. Entre 2019 e 2025, 145 adoções foram efetivadas no estado. Em contrapartida, 626 crianças e adolescentes foram reintegrados às suas famílias desde 2019,  uma prioridade prevista na legislação. Hoje, há 65 pretendentes habilitados à adoção no estado, sendo a maioria residente em Rio Branco.

Os dados mais recentes também revelam um cenário ainda marcado por lacunas e pouca visibilidade: apenas dois casais homossexuais constam oficialmente como pretendentes à adoção no estado. O número pode não refletir a realidade, já que 57 dos cadastros não informam orientação sexual, um dado que ainda enfrenta subnotificação e o silêncio motivado por receios sociais ou institucionais.

Apesar disso, o Acre possui um dos processos mais ágeis do país: o tempo médio entre o pedido e a sentença de adoção é de 5 meses, inferior à maioria dos estados brasileiros. Isso é possível graças à integração do estado ao Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), criado em 2019 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de unificar informações sobre crianças acolhidas e pretendentes à adoção. A ferramenta digital também permite maior controle de prazos e mais transparência em cada etapa do processo.

Em meio a esse cenário, casais homoafetivos como Breno Geovane Azevedo Caetano e Rosicley Souza da Silva representam um movimento crescente e necessário: o de famílias diversas que buscam oferecer afeto, segurança e estrutura a crianças em situação de vulnerabilidade e que, por vezes, precisam também enfrentar estigmas e barreiras sociais.

As etapas da adoção

Breno e Rosicley estão há quase oito meses na fila de adoção e contam como têm vivido esse processo.A decisão de adotar veio antes do início dos trâmites legais. “Então, fomos buscar o Juizado da Infância e Juventude para saber quais eram os procedimentos e a documentação necessária”,  conta Breno. O casal, ambos com formação de mestrado, relata que desde o início foi bem orientado e acolhido pelas instituições envolvidas.

O processo de habilitação seguiu com certa rapidez: em apenas dois meses, Breno e Rosicley concluíram todas as etapas exigidas para entrar no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Fizeram um curso online obrigatório, entrevistas com psicóloga e pedagoga do Juizado e uma visita técnica ao lar do casal. “Achamos que foi bastante célere. Esperávamos de três a quatro meses para todo esse trâmite”, comentam.

No entanto, mesmo após a habilitação, o casal ainda aguarda na fila de adoção, sem previsão definida para a chegada da criança. “Estamos no SNA desde o início de dezembro e já se passaram quase oito meses. A fila anda, mas de forma muito irregular. Às vezes avança, às vezes quase não se movimenta”, explica Rosicley.

Eles optaram por adotar um menino de até 4 anos e meio, considerando crianças de cinco estados brasileiros onde possuem rede de apoio familiar. Ainda assim, avaliam ampliar o cadastro para todo o território nacional, embora isso exija planejamento financeiro, já que os custos são arcados integralmente pelos adotantes.

Sobre a experiência enquanto casal homoafetivo, o relato é positivo: não houve preconceito institucional. “Na verdade, foram bastante acolhedores”, afirmam. “O que mais nos animou foi o acolhimento das nossas famílias e amigos com o fato de querermos adotar.”

A principal preocupação agora é com o futuro. “Nos inquieta pensar em como nosso filho será tratado por uma sociedade ainda machista e paternalista”, reflete Breno. Ainda assim, eles seguem esperançosos: “O processo até aqui tem sido justo, dentro do que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente.”

Visão de quem venceu a burocracia 

Maria Silva e Lucia Souza são um casal homoafetivo que, em meio ao início da pandemia de Covid-19, em 2020, realizou um sonho: adotaram uma criança após três anos de um processo marcado por burocracias e desafios. Apesar das dificuldades enfrentadas, elas destacam que a experiência foi marcada por respeito e acolhimento, especialmente no Acre.

“Sempre fomos tratadas com respeito e igualdade. A demora em si é no sistema de adoção. Por isso, muitas crianças crescem e só vão pra adoção de fato já grandes, porque é um processo lento, burocrático”, afirmou Maria Silva.

Para o casal, os maiores desafios não vieram do Judiciário ou das instituições, mas de estigmas sociais profundamente enraizados na sociedade brasileira sobre o que significa adotar. 

“Na sociedade, em geral, predomina um preconceito em relação à adoção. Ouvimos diversas vezes: Vocês não podem ter filhos biológicos, por isso adotaram? Então, acham que adoção significa caridade ou impossibilidade de gerar filhos biológicos, e não é, eu sempre quis adotar, mesmo podendo gerar”, explica Maria.

Embora reconheçam a existência de preconceitos em relação à adoção e à parentalidade homoafetiva, Maria e Lúcia se dizem positivamente surpresas com a recepção no estado. “No Acre nos surpreendemos o quanto fomos abraçadas quando adotamos. Porém, o que sempre nos incomodou foi enxergarem como se estivéssemos fazendo uma caridade com nosso filho. Talvez aí esteja o ponto, trazer que adoção não é ajuda, é uma outra escolha e opção de exercer a maternidade”, destacou.

Por outro lado, Maria Silva alertou para a importância de discutir o assunto na sociedade, trazer pautas na imprensa e desmistificar os estereótipos sobre o assunto. Adoção principalmente no Acre é comunicado como algo triste, traumático, e não é, é amor puro. Nosso filho trouxe vida para as nossas vidas, e escolheria adotá-lo novamente, nunca passou pela nossa cabeça substituir a adoção por fertilização”, pontuou.

O que diz a Lei 

A adoção por casais homoafetivos no Brasil é um direito plenamente garantido por lei, segundo explica a advogada Mariana Castro de Souza, especialista em Direito de Família e Sucessões. De acordo com a jurista, a legislação e a jurisprudência não fazem distinção entre casais homoafetivos e heterossexuais nos processos de adoção.

“Com base no princípio da igualdade todos são iguais perante a lei, sem distinção. Portanto, a legislação brasileira e a jurisprudência consolidada tratam casais homoafetivos da mesma forma que casais heterossexuais nos processos de adoção. Não existe qualquer distinção em lei que impossibilite ou limite a adoção por casais homoafetivos”, afirma.

Mariana Castro- Foto: cedida

Para iniciar o processo de adoção, os requisitos são os mesmos para todos os adotantes, independentemente de sua orientação sexual. Segundo a advogada, “os adotantes precisam ter, no mínimo, 18 anos completos, e deve haver a diferença mínima de 16 anos entre os adotantes e o adotado; os adotantes precisam ter capacidade civil plena e idoneidade moral; se a adoção for conjunta, os adotantes devem ser casados ou conviventes em união estável.”

Mariana Castro. Foto: Cedida

O reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar foi consolidado pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, o que abriu caminho para uma série de direitos, incluindo o da adoção.  Embora não trate especificamente de adoção, o julgamento é considerado um marco, pois garante os mesmos direitos e deveres das uniões heterossexuais. “A partir disso, todos os direitos familiares, inclusive a adoção por casais homoafetivos, passaram a ser assegurados”, detalha.

O procedimento judicial é o mesmo para todos. “O casal homoafetivo deve se habilitar junto à Vara da Infância e Juventude, após isso é realizada uma avaliação interdisciplinar com psicólogos e assistentes sociais, para verificar se o casal possui capacidade de exercer a parentalidade, e o casal também deve participar de cursos preparatórios”, explica a advogada.

Se aprovado, o casal entra no Cadastro Nacional de Adoção. A seguir, começa a etapa de aproximação com a criança ou adolescente, seguida da fase de convivência. Somente após esse processo é que a ação de adoção é formalizada.

Mariana Castro esclarece que o casamento ou união estável é obrigatório para adoção conjunta. “Independentemente de serem heterossexuais ou homoafetivos, se o intuito for a adoção conjunta é necessário que os adotantes sejam casados ou mantenham união estável, para comprovar a estabilidade da família.”

Em situações de separação, a guarda segue os mesmos parâmetros aplicáveis aos casais heterossexuais. “No Brasil, a regra é a guarda compartilhada, que significa que, mesmo após a separação, ambos os pais continuam responsáveis pela tomada de decisões importantes para a vida dos filhos e dividem responsabilidades parentais, ainda que o filho resida com apenas um deles”, afirma. A guarda unilateral só é aplicada em casos de risco ou acordo entre os genitores.

Quanto ao registro da criança, também não há qualquer obstáculo legal. Quando o casal homoafetivo adota conjuntamente, a certidão de nascimento é emitida com o nome dos dois pais ou das duas mães “Uma curiosidade é que atualmente nos documentos de identificação no Brasil a expressão utilizada é ‘filiação’, em substituição aos termos ‘pai’ e ‘mãe’, justamente para evitar qualquer tipo de discriminação, e para garantir a inclusão das diversas formações familiares, especialmente das famílias homoafetivas”, detalhou a advogada.

Barreiras enfrentadas 

O país deu passos importantes nessa pauta, segundo Germano Marino, chefe do Departamento de Promoção dos Direitos Humanos e da Divisão de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTI+ da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Acre (SEASDH). “O Brasil avançou. Nos últimos anos, aumentou o número de adoções e o CNJ publicou a Resolução 532/2023 para coibir discriminação nos tribunais”, explica.

Germano Marino. Foto: Cedida

No entanto, mesmo com esse respaldo jurídico, o preconceito institucional ainda se impõe como uma barreira significativa. “Apesar do respaldo legal, casais LGBTQIA+ ainda enfrentam preconceito de profissionais do Judiciário, burocracia excessiva, interpretações diferentes entre comarcas e resistência em cartórios para registro de dupla parentalidade”, afirma Marino.

Ele ressalta que o preconceito muitas vezes se manifesta de forma sutil, mas prejudicial ao andamento do processo, através de decisões enviesadas, atrasos injustificados no processo, julgamentos morais por parte de assistentes sociais e juízes oufalta de capacitação de servidores. “Muitas instituições ainda operam com base em modelos heteronormativos de família”, pontuou o ativista.

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Onde estão os políticos negros no Acre?

Análise dos políticos autodeclarados negros em Rio Branco nas eleições desta década

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Por Beatriz Mendonça e Victor Manoel

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil vive um regime democrático representativo. Isso significa que o povo escolhe seus representantes por meio do voto, e estes, por sua vez, são responsáveis por tomar decisões em nome da população. Partindo desse princípio, seria esperado que os políticos eleitos refletissem, em alguma medida, a composição social do país, incluindo fatores como raça e cor. 

No entanto, ao observarmos o cenário político do Acre, especialmente em sua capital, Rio Branco, percebemos que essa representatividade ainda está longe de se concretizar. A pergunta que se impõe é: onde estão os políticos negros do Acre? Essa promessa da democracia ainda está distante da vivência de grande parte da população negra. A ex-secretária municipal de Igualdade Racial de Rio Branco, Lúcia Ribeiro, comenta:

“Infelizmente, mesmo com a existência de uma lei eleitoral que estabelece cotas, ainda enfrentamos muitos obstáculos. A chamada política de cotas determina que nenhum sexo pode compor mais de 70% ou menos de 30% das candidaturas. Essa regra ficou conhecida como “cota feminina”, mas, na verdade, ela se refere à proporcionalidade de gênero nas candidaturas — não necessariamente à garantia de eleitas […] Esse é um dos pontos que considero fundamentais para entendermos por que não temos uma representatividade que reflita a composição da sociedade”, cita.

Coronel Ulysses do União Brasil. Foto: Reprodução

Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 73,5% da população acreana se declara parda e 6,8% se declara preta. Juntos, pretos e pardos — a população negra, conforme classificação do IBGE — somam 80,3% dos habitantes do estado. No entanto, essa maioria demográfica não se reflete nas urnas nem nas composições das casas legislativas da capital.

Segundo Lucia Ribeiro, o Tribunal Superior Eleitoral começou a registrar a autodeclaração de candidatos e candidatas a partir de 2014. Naquele ano, foram identificadas 281 pessoas autodeclaradas negras. Em 2018, esse número subiu para 305. Já em 2022, tivemos 376 candidatos e candidatas que se autodeclararam pardos, e 315 que se autodeclararam pretos. Destes, 61 foram eleitos.

“Outro fator importante é que muitas dessas pessoas não fazem parte de famílias tradicionais da política. Um exemplo é a deputada Jéssica Sales, que vem de uma família política: a mãe é deputada estadual, o pai já foi deputado e prefeito de Cruzeiro do Sul. Essa trajetória familiar contribui para a inserção dela na política. E, por fim, há a questão da identificação social entre o candidato e o eleitor. Quando não há essa conexão, a campanha perde força e visibilidade”, questiona a especialista.

Caminho sem volta 

Nas eleições para a Câmara de Vereadores de Rio Branco, apenas um vereador autodeclarado preto foi eleito nas duas últimas disputas: João Paulo Silva (PODE), em 2024. Já no cenário estadual e federal, a presença de pretos também é mínima. Em 2022, apenas um deputado federal preto foi eleito (Coronel Ulysses, do União Brasil) e apenas um deputado estadual (Edvaldo Magalhães, do PCdoB), pegando como base, os dados dos votos apenas da capital acreana. Isso demonstra uma sub-representação evidente, especialmente dos pretos, mesmo entre os grupos que se autodeclaram negros.

João Paulo Silva do PODE. Foto: Reprodução

Ribeiro reforça a gravidade da invisibilidade política da população preta, especialmente das mulheres:

“Infelizmente, as pessoas ainda não fazem a associação direta do voto com a identidade do candidato. Raramente alguém diz: ‘Vou votar nesse candidato porque ele é preto, pardo ou negro e vai defender essa causa no parlamento’, ou ‘Vou votar nessa mulher porque, como mulher, ela vai representar os interesses das mulheres na sociedade”, reflete.

Outro ponto importante quando falamos em barreiras é a violência política e a violência de gênero. Essa violência ocorre tanto durante a campanha, no momento em que a candidatura é colocada, quanto durante a gestão de um mandato ou em cargos públicos.

Segundo pesquisas, na última eleição houve 542 casos de violência política e eleitoral, com 497 vítimas, incluindo tentativas de assassinato. Tivemos, por exemplo, o caso de uma vereadora no município de Bujari, que enfrentou intimidações e constrangimentos, uma situação bastante comum que desestimula muitas mulheres e pessoas negras a se colocarem como candidatas, reflete Ribeiro.

Quanto aos candidatos pardos, houve um crescimento nas eleições municipais. Em 2020, dos 17 vereadores eleitos, 9 eram pardos (52,94%); já em 2024, dos 21 eleitos, 14 se declararam pardos (66,67%). Ainda assim, esse percentual está abaixo da presença dos pardos na população geral. Para os cargos de deputado estadual em 2022, 58,33% dos eleitos foram pardos. Já para deputado federal, os pardos representam apenas 37,5% dos eleitos.

Edvaldo Magalhães, do PCdoB. Foto: Reprodução

“As pessoas eleitas que se autodeclararam negras não foram eleitas por serem negras. Primeiro, porque acredito que essas pessoas não se autodeclararam pretas ou pardas apenas para preencher cotas. Mas o ponto principal é que essas pessoas não se elegeram com base em uma consciência racial, em um letramento racial ou em um projeto de mandato voltado à promoção da igualdade racial e ao enfrentamento do racismo. Por que eu digo isso? Porque essas pessoas, em sua maioria, não exercem seus mandatos com foco nessa pauta”, descreve Ribeiro.

Necessidade de mudanças

Considerando todos os cargos legislativos citados (vereadores, deputados estaduais e federais) eleitos entre 2020 e 2024 em Rio Branco, a representação negra chega a cerca de 61,43% — número ainda inferior aos 80,3% da população. Além disso, dentro desse grupo, os pretos seguem sendo drasticamente minoria, evidenciando que a desigualdade é ainda mais acentuada dentro da própria população negra.

A proporção de votos válidos para candidatos pretos quase dobrou, de 4,8% em 2020 para 8,1% em 2024. Embora João Paulo Silva tenha sido eleito, o número é pouco comparado ao tamanho da demanda política. Para Lúcia Ribeiro, mudar esse cenário exige mais do que ajustes partidários. É preciso reconhecer a política como território histórico de exclusão e agir de forma estratégica e coletiva para inverter essa lógica.

A maioria das pessoas eleitas não têm uma preocupação maior com o empobrecimento da população negra, com essa situação de exclusão em que o racismo estrutural coloca a população negra: no subemprego, no desemprego, na economia informal. A maioria das mães negras está em programas de transferência de renda, cita a entrevistada.

Assembleia Legislativa do Acre (Aleac). Foto: Juan Diaz/ContilNet

A questão ambiental também. Quando há as alagações, a população negra mora próximo aos igarapés, às fontes d’água, aos cursos d’água e são as primeiras a serem alcançadas. São levadas para o Parque de Exposição. Durante esse momento de secura que estamos vivendo agora, a população negra é a que fica sem água, que não tem infraestrutura, que sofre os agravos das consequências dessas questões ambientais.

“Além disso, é necessário garantir a aplicação real do fundo partidário e dos tempos de televisão e rádio para as candidaturas negras. É fundamental que os partidos, sejam de direita, de esquerda ou de centro, comecem a se organizar e a tratar essa pauta com mais seriedade. Que não continuem descumprindo a lei e depois indo ao Congresso pedir anistia, como vimos acontecer agora, em 2025. Vários partidos, federações e coligações não cumpriram a cota estabelecida, e eles mesmos criaram uma lei para se anistiar do descumprimento de uma norma que eles próprios aprovaram”, finaliza.

Confira mais detalhes das estatísticas levantadas aqui.

Redação

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