Cotidiano
Rio Acre em crise
Saerb vem implantando medidas para enfrentar os momentos mais críticos da estiagem. Foto: Mariana Moreira
Publicado há
2 dias atrásem
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Redação
Por Maria Niélia Magalhães, Sérgio Corrêia e Gabriela Queiroz
Em meio a uma das piores secas dos últimos anos, o Rio Acre atingiu nesta semana a marca de 1,48 metro, segundo dados do site De Olho no Rio. O nível está apenas 25 centímetros acima da menor cota já registrada na história, de 1,23 metro em 2024. Além disso, o consumo de água em Rio Branco continua acima do recomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o que agrava ainda mais os impactos da estiagem sobre o abastecimento da população.
De acordo com relatório da Unesco, cada pessoa deveria consumir, em média, 110 litros de água por dia. Enquanto isso,segundo o Ministério da Saúde e organizações internacionais, varia entre 150 e 200 litros por dia. Na capital do estado, a realidade é bem diferente.
Mesmo com produção suficiente para abastecer toda a população, o município opera em regime de rodízio devido ao uso excessivo, perdas no sistema e desperdício.

Nível do Rio Acre é crítico. Foto: De Olho no Rio
Segundo o diretor-técnico do Serviço de Água e Esgoto de Rio Branco (Saerb), Antônio Lima, considerando esse parâmetro e a população de aproximadamente 364 mil habitantes em Rio Branco, a produção necessária para suprir a demanda diária seria de 72.800 metros cúbicos. No entanto, a produção atual é muito superior: são cerca de 138.240 metros cúbicos por dia, o que representa 1.600 litros por segundo, .
No bairro Calafate, Humberto Barboza, 51 anos, convive há 15 anos com a incerteza do abastecimento: “quando cheguei aqui, a falta d’água era tão comum que os mais antigos já nem reclamavam mais”, conta.
Em sua casa, três caixas d’água tentam garantir o abastecimento para sua família, de três pessoas. “A gente aprendeu a se virar, mas tem períodos que fica difícil mesmo com as caixas”, relata Humberto, que já pensou em perfurar um poço artesiano. “Fiz orçamento, mas é muito caro. Aqui no Calafate teria que cavar mais de 50 metros para achar água, e o custo passa dos R$15 mil.”
Consciente da escassez, Barboza adotou hábitos rígidos de economia como nunca lavar a calçada com mangueira, só com balde. “Água para mim é coisa séria, não dá para desperdiçar. Se tivéssemos reservatórios, como grandes lagos na cidade, ninguém passaria necessidade”, conta

Devido escassez, população precisa se conscientizar. Foto: reprodução
Apesar da capacidade de produção, o fornecimento contínuo não é garantido para toda a população. O motivo, está nas perdas operacionais, desperdício e uso indiscriminado da água. “Mesmo com essa produção, não é possível atender 100% dos habitantes, e por isso atuamos com sistema de rodízio em algumas localidades”, afirma o diretor do Saerb.

Medidas contra o desperdício
Para enfrentar esse cenário, o Saerb vem implementando ações como a resolução aprovada pela Agência Reguladora do Estado do Acre (Ageac), que determinou o uso obrigatório de boias nas caixas d’água a partir de agosto de 2025. Outra medida é o recadastramento de usuários, que visa adequar tarifas conforme o tipo de consumo e volume real utilizado.
“Temos uma Lei Municipal desde 2005 que autoriza o corte no fornecimento após notificação e aplicação de multa por desperdício”, explica Antônio Lima, diretor do Saerb. E complementa: “Paralelamente, estamos priorizando a agilização das manutenções em adutoras e redes de distribuição para reduzir as perdas técnicas no sistema.”

Divulgação/Saerb
Uma campanha educativa também está em andamento. Em novembro, será lançada a ação Agente 00CAT – Zero Gato D’Água, para estimular denúncias de desperdícios e irregularidades no uso da água. O canal de atendimento via WhatsApp (68 3212-7438) está ativo para receber essas notificações.
Alerta da Defesa Civil
O Rio Acre é a principal fonte de abastecimento de Rio Branco e está enfrentando uma crise hídrica severa. Para o coordenador da Defesa Civil de Rio Branco, tenente-coronel Cláudio Falcão, o momento exige responsabilidade coletiva.
“Se não mudarmos nossos hábitos, teremos consequências ainda mais graves nos próximos anos”, alerta. Segundo ele, existe a previsão de uma cota zero do Rio Acre até 2032, caso o desmatamento continue avançando nas margens do rio.

Em termos científicos, a “cota zero” é o nível mínimo de um rio em que a captação de água se torna inviável para consumo, abastecimento e navegação. Isso significa que a altura da lâmina d’água está tão baixa que não é mais possível retirar água de forma segura e eficiente para uso humano, animal ou industrial.
O coronel explica que cerca de 40% das margens do rio já foram desmatadas. Isso impede a retenção de água no período chuvoso e potencializa as secas severas.
“O Rio Acre está em constante formação geológica. Pequenas represas não resolvem. Precisamos de reservatórios grandes, com planejamento a longo prazo. Mas isso só será possível com vontade política e o engajamento da população”, defende.
Reservatórios de emergência
Entre as propostas em estudo pela Defesa Civil, Prefeitura e Saerb está a construção de grandes represas para armazenar a água captada nas cheias. A ideia é criar reservatórios com cerca de 700 hectares de lâmina d’água, que garantiriam o abastecimento da capital durante os períodos críticos.
“Hoje, uma família de quatro pessoas consome, em média, 23 mil litros por mês. É mais que o dobro do necessário”, alerta Falcão. Além do consumo exagerado, práticas como queima de lixo agravam ainda mais os impactos da seca.
A Defesa Civil também observa que os extremos climáticos se intensificam. A ausência de fenômenos como La Niña ou El Niño causou chuvas inesperadas em abril. A partir de agosto, especialistas temem que o El Niño volte a ganhar força, elevando o risco de enchentes em dezembro.
“O baixo nível atual do rio é um prenúncio de cheias futuras. Precisamos estar preparados para ambos os extremos”, adverte.
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Cotidiano
As diferenças de gênero nas mortes
Violência das ruas atinge a maioria dos homens, para muitas mulheres o lar não é sinônimo de segurança. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Publicado há
5 dias atrásem
29 de agosto de 2025por
Redação
Por Gabriela Fintelman e Natália Lindoso
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 revelou um dado chocante: 64,3% dos feminicídios acontecem dentro da própria casa da vítima. Já entre as mortes violentas intencionais, mais de 90% das vítimas são homens, e quase 58% desses assassinatos ocorrem em via pública. Essa diferença expõe uma realidade cruel: as mulheres morrem principalmente no lar, e os homens, nas ruas.
Para a delegada Juliana de Angelis, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), a casa, longe de ser um espaço seguro, é para muitas mulheres o local de maior risco. “A sociedade patriarcal legitima relações de dominação masculina e encara o espaço doméstico como território privado do homem, onde ele exerce controle e poder sobre a mulher”, afirma.

Juliana de Angelis. Foto: Dhárcules Pinheiro/Sejusp
Muitas mulheres vivem dependência emocional, econômica ou parental em relação ao agressor, o que cria barreiras para romper o ciclo de violência. Esse ciclo segue três fases: tensão crescente, explosão violenta e uma fase de “lua de mel” ou reconciliação, um padrão que se repete e naturaliza a violência no cotidiano.
O medo, a vergonha e a desconfiança no sistema de justiça são motivos comuns para que muitas vítimas não denunciem. Isso mantém os agressores impunes, incentivando a continuidade da violência.
Um caso emblemático em Natal (RN) ilustra esse cenário, o registro em câmeras de uma mulher agredida com mais de 60 socos. Tudo indica o perfil típico de violência de gênero no espaço doméstico: o agressor era namorado da vítima, a agressão ocorreu no elevador do condomínio, havia histórico de relacionamento conturbado e as agressões foram motivadas por ciúmes e posse.
O Acre no padrão nacional
No Acre, a situação é preocupante. Segundo o Atlas da Violência, o estado apresenta uma das maiores taxas proporcionais de feminicídio no Brasil. A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) em Rio Branco informou que mais de 70% das ocorrências registradas acontecem dentro do lar da vítima.
Os dados locais confirmam que as vítimas são, em sua maioria, mulheres jovens, pardas e negras, envolvidas em relacionamentos afetivos com os agressores. Muitas delas já relataram ameaças anteriores, reforçando o padrão de escalada da violência doméstica.
A Polícia Civil do Acre disponibiliza relatórios mensais com estatísticas que detalham esses casos, ressaltando a urgência de políticas públicas específicas para o combate à violência contra a mulher.

Faixada Deam. Foto: Neto Lucena/Secom
Raça e gênero
Interseccionalidade é um conceito que analisa como diferentes grupos sociais, como raça, gênero, classe, orientação sexual, entre outros, se cruzam e interagem, criando experiências únicas de discriminação ou privilégio.
A advogada criminalista e militante Lúcia Ribeiro destaca que as mulheres negras são as mais afetadas pela violência doméstica e pelo feminicídio no Brasil. Dados do Dossiê Feminicídio e do Ministério da Saúde mostram que mulheres negras têm duas vezes mais chance de serem assassinadas que mulheres brancas.
Entre 2003 e 2013, enquanto o número de homicídios de mulheres brancas caiu quase 10%, os homicídios de mulheres negras aumentaram mais de 54%. Além disso, a maioria das vítimas de violência obstétrica e mortalidade materna também são negras, indicando que o racismo estrutural atravessa diversas formas de violência e exclusão.
Especialistas apontam que o racismo, aliado ao sexismo, cria camadas de discriminação que dificultam o acesso das mulheres negras a direitos, serviços públicos e justiça. “O racismo é um fenômeno ideológico que justifica a hierarquização social e a exclusão das mulheres negras da cidadania plena”, afirma Ana Carolina Querino, do ONU Mulheres.
A socióloga Luiza Bairros lembra que o racismo e o sexismo estão no DNA da sociedade brasileira e que, sem a análise da interseccionalidade, políticas universais dificilmente avançam no combate à violência e à desigualdade.
Invisibilidade política
Apesar de as estatísticas mostrarem a predominância da população negra entre as vítimas, Lúcia Ribeiro alerta para a invisibilidade política dessa realidade. Para transformar o cenário, é fundamental aumentar a presença de pessoas negras em espaços de gestão pública e privada e criar planos de enfrentamento que considerem as múltiplas vulnerabilidades.

Lúcia Ribeiro. Foto: cedida
Nilza Iraci, do Instituto Geledés, destaca que “o racismo institucional e a desigualdade de gênero produzem a falta de acesso ou acesso de menor qualidade aos serviços e direitos para a população negra, perpetuando desigualdades estruturais”.
A violência letal contra homens e mulheres revela que a segurança pública precisa ser pensada de forma segmentada, considerando as diferentes dinâmicas que expõem cada grupo aos riscos.
No caso das mulheres, a compreensão do racismo estrutural, da dominação patriarcal e da interseccionalidade é fundamental para elaborar políticas públicas eficazes que realmente protejam as vítimas e punam os agressores.
Canais de ajuda
O primeiro passo em direção ao pedido de ajuda é desafiador, mas também necessário. Romper com o ciclo da violência é um ato de coragem que pode trazer de volta a segurança para dentro de casa. Você não está sozinha.
As vítimas podem procurar ajuda na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) pelo telefone (68) 3221-4799.
Também podem entrar em contato com a Central de atendimento à Mulher pelo Disque 180 ou com a Polícia Militar do Acre (PM – AC) através do 190.
Outras opções de atendimento incluem o Centro de Atendimento à Vítima (CAV), no telefone (68) 9999-34701, a Secretaria de Estado da Mulher (Semulher), pelo número (68) 99605-0657 e a Casa Rosa Mulher no (68) 3221-0826.
Cotidiano
Como as redes sociais moldam a personalidade de crianças e adolescentes
O contato constante com conteúdos virtuais pode gerar ansiedade e necessidade de aceitação
Publicado há
3 semanas atrásem
13 de agosto de 2025por
Redação
Por Gabriela Fintelmann e Natália Lindoso
A pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024 revela que 83% dos jovens entre 9 e 17 anos usam redes sociais como WhatsApp, Instagram, TikTok e YouTube. O levantamento, feito com 2.424 crianças e adolescentes e o mesmo número de responsáveis, mostra o impacto crescente dessas plataformas no cotidiano infanto juvenil.
Uma delas é a estudante Alicia da Luz, de apenas 10 anos, que já tem uma rotina digital típica da nova geração. Seguidora assídua das trends do TikTok, ela gosta de acompanhar dancinhas, músicas e desafios. Às vezes, as canções ficam tanto tempo na cabeça que ela começa a dançar sozinha em locais públicos. “Eu acho que influencia um pouquinho, porque tem vezes que dá vontade de dançar muito”, conta.
Com conteúdos rápidos, que viralizam em questão de horas, as trends acabam moldando hábitos, linguagem e comportamentos. Mas essa exposição constante também levanta alertas, como influência na autoestima das crianças, Alicia diz que já ficou triste ao se comparar com outras meninas da Internet. “Tem vezes que isso machuca, porque às vezes, eu estou desarrumada e do nada aparece uma menina bem arrumada na minha ‘for you’”, relata.

Influências e riscos
Nem todos os jovens se sentem pressionados. Para o irmão de Alicia, Adam da Luz, de 13 anos, diz não se importar em seguir trends: “Gosto de assistir vídeos de jovens que participam da igreja. Mas não sinto pressão. Prefiro sair pra jogar bola”, afirma. Mesmo assim, reconhece os dois lados da moeda: “O lado bom do TikTok é que dá pra ganhar dinheiro. Mas o lado ruim são os golpes e vídeos falsos”.
Para a pedagoga Maria do Carmo, mãe dos dois jovens, os filhos possuem uma boa relação quanto ao uso de telas. Ela monitora e alerta quando o conteúdo pode ser negativo para eles. Ainda assim, a pedagoga reconhece que o consumo pode afetar a autoestima deles: “os conteúdos mostram uma forma de viver luxuosa, sem problemas, onde tudo dá certo, então com isso eles criam sonhos, pois acreditam que tudo pode ser como a vida dos influenciadores”.
O professor de língua portuguesa Marcos Freire é pai do Gabriel, de 11 anos. Para ele, as redes sociais podem, sim, contribuir para o amadurecimento. “Como somos sujeitos constituídos pelos discursos que nos rodeiam, meu filho foi naturalmente interpelado por uma rede muito grande de ideias e informações. Isso fez com que ele tivesse rapidamente posicionamentos diversos, o que é uma espécie de amadurecimento cognitivo precoce”, reflete.

Por outro lado, ele também vê riscos. “No que se refere ao amadurecimento sociointeracional, pode haver prejuízos. Por isso, acredito que o equilíbrio seja a melhor decisão: observar o tempo de tela, a idade de início e oferecer orientações constantes”, diz.
Impactos psicológicos
A relação dos jovens com as redes sociais acendem um sinal de alerta para pais, escolas e profissionais da saúde. O contato constante com conteúdos virais, números de curtidas e seguidores pode afetar diretamente a autoestima e o desenvolvimento emocional dos adolescentes.
A psicóloga Samara Pinheiro reforça que o contato com ideais inatingíveis pode provocar sentimentos de insuficiência. “Isso ativa comparações entre o self real [a forma como a criança se percebe no mundo real] e o idealizado, gerando angústia. O adolescente está em construção e, ao tentar corresponder a padrões irreais, pode desenvolver insegurança, ansiedade e até problemas com a imagem corporal”, explica.
Nesse cenário, o papel da família e da escola é fundamental. A orientação deve vir antes do controle. “O adolescente é espelho. Se os pais não dão o exemplo de um uso equilibrado, as regras perdem o sentido”, reforça a psicóloga. Estabelecer horários para o uso das redes, conversar sobre o que é consumido e incentivar outras atividades fora do ambiente virtual são caminhos possíveis.

Marcos Freire concorda com a psicóloga, para ele, a construção da identidade é um processo delicado, especialmente em um ambiente tão multicultural e acessível como as redes. “A plasticidade exacerbada de quem o sujeito pode se tornar pode gerar conflitos. Por isso, a família deve ser apoio, referência e promotora de ideais. Isso fortalece o caminho dos nossos jovens”, diz.
Outros caminhos
As redes sociais oferecem oportunidades de aprendizado, conexão e diversão. Alicia cita os filtros, quizzes e vídeos educativos como pontos positivos. “Tem vídeo de pergunta e de quiz que eu gosto. Mas tem também os vídeos ruins, de maus-tratos com animais, vídeos adultos. Isso me deixa muito triste”, conta.
Mesmo entre crianças, já há percepção crítica sobre o conteúdo. “No Instagram, aparecem mais coisas feias do que no TikTok. Quando vou seguir alguma amiga, vejo umas coisas que fico horrorizada”, relata Alicia.
As falas das crianças, adolescentes e seus responsáveis apontam que a influência digital não é apenas uma questão de tempo de tela. O apoio familiar é importante, sem o uso do controle, mas da orientação: “Se a família tiver possibilidade, ofereça outras alternativas ao mundo virtual, seja um hobby, dança, leitura ou exercício. É importante também observar os sinais de alerta, o comportamento daquele adolescente”, finaliza.
Cotidiano
Adoção LGBTQIAPN+ no Acre
Pedidos por casais homoafetivos desafia estigmas e amplia debate sobre inclusão
Publicado há
4 semanas atrásem
8 de agosto de 2025por
Redação
Por Ana Paula Melo e Pedro Amorim
No Acre, 104 crianças e adolescentes vivem atualmente em situação de acolhimento institucional ou familiar. Desses, 21 estão aptos para adoção, enquanto 18 estão em processo. Entre 2019 e 2025, 145 adoções foram efetivadas no estado. Em contrapartida, 626 crianças e adolescentes foram reintegrados às suas famílias desde 2019, uma prioridade prevista na legislação. Hoje, há 65 pretendentes habilitados à adoção no estado, sendo a maioria residente em Rio Branco.
Os dados mais recentes também revelam um cenário ainda marcado por lacunas e pouca visibilidade: apenas dois casais homossexuais constam oficialmente como pretendentes à adoção no estado. O número pode não refletir a realidade, já que 57 dos cadastros não informam orientação sexual, um dado que ainda enfrenta subnotificação e o silêncio motivado por receios sociais ou institucionais.
Apesar disso, o Acre possui um dos processos mais ágeis do país: o tempo médio entre o pedido e a sentença de adoção é de 5 meses, inferior à maioria dos estados brasileiros. Isso é possível graças à integração do estado ao Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), criado em 2019 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de unificar informações sobre crianças acolhidas e pretendentes à adoção. A ferramenta digital também permite maior controle de prazos e mais transparência em cada etapa do processo.
Em meio a esse cenário, casais homoafetivos como Breno Geovane Azevedo Caetano e Rosicley Souza da Silva representam um movimento crescente e necessário: o de famílias diversas que buscam oferecer afeto, segurança e estrutura a crianças em situação de vulnerabilidade e que, por vezes, precisam também enfrentar estigmas e barreiras sociais.
As etapas da adoção
Breno e Rosicley estão há quase oito meses na fila de adoção e contam como têm vivido esse processo.A decisão de adotar veio antes do início dos trâmites legais. “Então, fomos buscar o Juizado da Infância e Juventude para saber quais eram os procedimentos e a documentação necessária”, conta Breno. O casal, ambos com formação de mestrado, relata que desde o início foi bem orientado e acolhido pelas instituições envolvidas.
O processo de habilitação seguiu com certa rapidez: em apenas dois meses, Breno e Rosicley concluíram todas as etapas exigidas para entrar no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Fizeram um curso online obrigatório, entrevistas com psicóloga e pedagoga do Juizado e uma visita técnica ao lar do casal. “Achamos que foi bastante célere. Esperávamos de três a quatro meses para todo esse trâmite”, comentam.
No entanto, mesmo após a habilitação, o casal ainda aguarda na fila de adoção, sem previsão definida para a chegada da criança. “Estamos no SNA desde o início de dezembro e já se passaram quase oito meses. A fila anda, mas de forma muito irregular. Às vezes avança, às vezes quase não se movimenta”, explica Rosicley.
Eles optaram por adotar um menino de até 4 anos e meio, considerando crianças de cinco estados brasileiros onde possuem rede de apoio familiar. Ainda assim, avaliam ampliar o cadastro para todo o território nacional, embora isso exija planejamento financeiro, já que os custos são arcados integralmente pelos adotantes.
Sobre a experiência enquanto casal homoafetivo, o relato é positivo: não houve preconceito institucional. “Na verdade, foram bastante acolhedores”, afirmam. “O que mais nos animou foi o acolhimento das nossas famílias e amigos com o fato de querermos adotar.”
A principal preocupação agora é com o futuro. “Nos inquieta pensar em como nosso filho será tratado por uma sociedade ainda machista e paternalista”, reflete Breno. Ainda assim, eles seguem esperançosos: “O processo até aqui tem sido justo, dentro do que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente.”
Visão de quem venceu a burocracia
Maria Silva e Lucia Souza são um casal homoafetivo que, em meio ao início da pandemia de Covid-19, em 2020, realizou um sonho: adotaram uma criança após três anos de um processo marcado por burocracias e desafios. Apesar das dificuldades enfrentadas, elas destacam que a experiência foi marcada por respeito e acolhimento, especialmente no Acre.
“Sempre fomos tratadas com respeito e igualdade. A demora em si é no sistema de adoção. Por isso, muitas crianças crescem e só vão pra adoção de fato já grandes, porque é um processo lento, burocrático”, afirmou Maria Silva.
Para o casal, os maiores desafios não vieram do Judiciário ou das instituições, mas de estigmas sociais profundamente enraizados na sociedade brasileira sobre o que significa adotar.
“Na sociedade, em geral, predomina um preconceito em relação à adoção. Ouvimos diversas vezes: Vocês não podem ter filhos biológicos, por isso adotaram? Então, acham que adoção significa caridade ou impossibilidade de gerar filhos biológicos, e não é, eu sempre quis adotar, mesmo podendo gerar”, explica Maria.
Embora reconheçam a existência de preconceitos em relação à adoção e à parentalidade homoafetiva, Maria e Lúcia se dizem positivamente surpresas com a recepção no estado. “No Acre nos surpreendemos o quanto fomos abraçadas quando adotamos. Porém, o que sempre nos incomodou foi enxergarem como se estivéssemos fazendo uma caridade com nosso filho. Talvez aí esteja o ponto, trazer que adoção não é ajuda, é uma outra escolha e opção de exercer a maternidade”, destacou.
Por outro lado, Maria Silva alertou para a importância de discutir o assunto na sociedade, trazer pautas na imprensa e desmistificar os estereótipos sobre o assunto. Adoção principalmente no Acre é comunicado como algo triste, traumático, e não é, é amor puro. Nosso filho trouxe vida para as nossas vidas, e escolheria adotá-lo novamente, nunca passou pela nossa cabeça substituir a adoção por fertilização”, pontuou.
O que diz a Lei
A adoção por casais homoafetivos no Brasil é um direito plenamente garantido por lei, segundo explica a advogada Mariana Castro de Souza, especialista em Direito de Família e Sucessões. De acordo com a jurista, a legislação e a jurisprudência não fazem distinção entre casais homoafetivos e heterossexuais nos processos de adoção.
“Com base no princípio da igualdade todos são iguais perante a lei, sem distinção. Portanto, a legislação brasileira e a jurisprudência consolidada tratam casais homoafetivos da mesma forma que casais heterossexuais nos processos de adoção. Não existe qualquer distinção em lei que impossibilite ou limite a adoção por casais homoafetivos”, afirma.
Mariana Castro- Foto: cedida
Para iniciar o processo de adoção, os requisitos são os mesmos para todos os adotantes, independentemente de sua orientação sexual. Segundo a advogada, “os adotantes precisam ter, no mínimo, 18 anos completos, e deve haver a diferença mínima de 16 anos entre os adotantes e o adotado; os adotantes precisam ter capacidade civil plena e idoneidade moral; se a adoção for conjunta, os adotantes devem ser casados ou conviventes em união estável.”

O reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar foi consolidado pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, o que abriu caminho para uma série de direitos, incluindo o da adoção. Embora não trate especificamente de adoção, o julgamento é considerado um marco, pois garante os mesmos direitos e deveres das uniões heterossexuais. “A partir disso, todos os direitos familiares, inclusive a adoção por casais homoafetivos, passaram a ser assegurados”, detalha.
O procedimento judicial é o mesmo para todos. “O casal homoafetivo deve se habilitar junto à Vara da Infância e Juventude, após isso é realizada uma avaliação interdisciplinar com psicólogos e assistentes sociais, para verificar se o casal possui capacidade de exercer a parentalidade, e o casal também deve participar de cursos preparatórios”, explica a advogada.
Se aprovado, o casal entra no Cadastro Nacional de Adoção. A seguir, começa a etapa de aproximação com a criança ou adolescente, seguida da fase de convivência. Somente após esse processo é que a ação de adoção é formalizada.
Mariana Castro esclarece que o casamento ou união estável é obrigatório para adoção conjunta. “Independentemente de serem heterossexuais ou homoafetivos, se o intuito for a adoção conjunta é necessário que os adotantes sejam casados ou mantenham união estável, para comprovar a estabilidade da família.”
Em situações de separação, a guarda segue os mesmos parâmetros aplicáveis aos casais heterossexuais. “No Brasil, a regra é a guarda compartilhada, que significa que, mesmo após a separação, ambos os pais continuam responsáveis pela tomada de decisões importantes para a vida dos filhos e dividem responsabilidades parentais, ainda que o filho resida com apenas um deles”, afirma. A guarda unilateral só é aplicada em casos de risco ou acordo entre os genitores.
Quanto ao registro da criança, também não há qualquer obstáculo legal. Quando o casal homoafetivo adota conjuntamente, a certidão de nascimento é emitida com o nome dos dois pais ou das duas mães “Uma curiosidade é que atualmente nos documentos de identificação no Brasil a expressão utilizada é ‘filiação’, em substituição aos termos ‘pai’ e ‘mãe’, justamente para evitar qualquer tipo de discriminação, e para garantir a inclusão das diversas formações familiares, especialmente das famílias homoafetivas”, detalhou a advogada.
Barreiras enfrentadas
O país deu passos importantes nessa pauta, segundo Germano Marino, chefe do Departamento de Promoção dos Direitos Humanos e da Divisão de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTI+ da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Acre (SEASDH). “O Brasil avançou. Nos últimos anos, aumentou o número de adoções e o CNJ publicou a Resolução 532/2023 para coibir discriminação nos tribunais”, explica.

No entanto, mesmo com esse respaldo jurídico, o preconceito institucional ainda se impõe como uma barreira significativa. “Apesar do respaldo legal, casais LGBTQIA+ ainda enfrentam preconceito de profissionais do Judiciário, burocracia excessiva, interpretações diferentes entre comarcas e resistência em cartórios para registro de dupla parentalidade”, afirma Marino.
Ele ressalta que o preconceito muitas vezes se manifesta de forma sutil, mas prejudicial ao andamento do processo, através de decisões enviesadas, atrasos injustificados no processo, julgamentos morais por parte de assistentes sociais e juízes oufalta de capacitação de servidores. “Muitas instituições ainda operam com base em modelos heteronormativos de família”, pontuou o ativista.

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