Cotidiano

População de Rio Branco diminui frequência no uso de cortinados; entenda

Moradores da capital acreana abandonam o mosquiteiro, popularmente conhecido como cortinado, e aderem ao uso de inseticidas


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Por Rebeca Martins e William Liberato

Adriana da Costa Silva, quando criança, adorava aniversários, pois era a oportunidade perfeita de levar balões para casa e enfeitar seu cortinado, como é popularmente conhecido o mosquiteiro no Acre. “Eu pegava o balão e botava no buraco do meio (do cortinado). Era uma alegria, ninguém podia estourar”, recorda, hoje, a servidora pública. Ela, como outros rio-branquenses, deixou de lado o uso dos mosquiteiros.

Em 1997, com a chegada no bairro novo, o Santa Inês, no segundo distrito de Rio Branco, Adriana abandonou de vez o uso do mosquiteiro. “A gente começou a ter preguiça de colocar e viu que a necessidade era pouca. O pai comprava muito veneno, acabávamos utilizando mais veneno do que o cortinado”. Os momentos inesquecíveis, com seu cortinado rosa, ficaram no passado, guardado em suas lembranças.

Adriana da Costa e sua família. Foto: Arquivo Pessoal/ Adriana Silva

Hoje, a criança encantada com o balão pendurado no meio do cortinado é uma mulher atarefada e prática. Adriana da Costa Silva, de 37 anos, tem uma rotina cheia. Além do seu intenso trabalho no Departamento Estadual de Trânsito (Detran), ainda precisa cuidar de seus dois filhos — um deles bebê —, fazer comida, limpar a casa e estudar para os concursos. Com uma vida tão corrida, ela adotou o inseticida como o seu principal aliado contra os mosquitos.

O que explica essa mudança de comportamento?

Imagem ilustrativa demonstra a disparidade no preço dos produtos. Arte: William Liberato.

Ao relembrar sua infância, o professor de História José Dourado de Souza, Diretor do Centro de Filosofias Humanas da Universidade Federal do Acre, apontou hipóteses para o abandono dos cortinados no cotidiano dos rio-branquenses. “Lembro de quando eu era ainda criança no seringal. A gente usava, obrigatoriamente, tinha que usar, senão as carapanãs, os bichos carregavam. Todos nós usávamos mosquiteiro. Eu vim para cá (Rio Branco) com 12 anos. Aqui também se usava, mas já era um período que começaram a surgir alguns produtos, os inseticidas”.

O professor também acredita que esse processo de abandono dos cortinados permanecerá, devido às facilidades oferecidas pelos inseticidas modernos. “Acho que eles (rio-branquenses) estão abandonando, em razão dessas novas tecnologias de combate aos insetos. Aqui, dentro da cidade, eu acho que esta tendência (dos cortinados) é diminuir e (aumentar) o uso de produtos industrializados para combater o inseto. Hoje, você bota lá (na tomada) e pronto. Já resolve o problema.”

A popularidade e praticidade dos inseticidas pode ser exemplificada na facilidade a qual encontramos esses produtos. Numa rápida busca pelo principal supermercado de Rio Branco, é possível encontrar variados venenos de diferentes formatos, fórmulas, cheiros e valores. O inseticida, no qual o professor José Dourado se refere, é popular por sua praticidade e pela proteção oferecida contra o mosquito Aedes Aegypti, responsável pela transmissão da Dengue, Zika e Chikungunya.

Fator socioeconômico

Enquanto os inseticidas ganham as prateleiras e o coração dos acreanos, os cortinados tornam-se escassos, caros e só são encontrados em lojas específicas, como o Bazar Chefe, estabelecimento popular por vender de tudo, e lojas de produtos e roupas infanto-juvenis. Para melhor ilustrar essa disparidade, observe a diferença do valor dos produtos, um inseticida, da marca Buzz, de 400ml, custa R$ 10,69 no mais popular supermercado; enquanto o mosquiteiro de casal, da marca Durma Bem, está R$ 77,20 no maior e-commerce do Brasil.

A estrutura dos domicílios e os serviços de saneamento básico, como tratamento de esgoto, água encanada e coleta de lixo, pode ser outro fator nessa mudança de comportamento dos rio-branquenses. Segundo o professor Dourado, “as pessoas que vivem numa situação precária, numa residência precária, é mais difícil combater os insetos, porque eles (os mosquitos) entram, não tem janela apropriada, nas casas há buracos, brechas”. Ou seja, pessoas em situação de pobreza são mais vulneráveis às doenças transmitidas por mosquitos.

É o que aponta um estudo norte-americano, realizado em 2010, que analisa a incidência de casos de dengue na cidade de Brownsville, no sul do Texas; e no município Matamoros, no norte de Tamaulipas, no México. Os dados apontam que as cidades vizinhas apresentam uma elevada disparidade, com a cidade mexicana tendo sete vezes mais casos do que os 4% registrados na cidade estadunidense. Segundo Jaime Torres, “a forma de armazenar a água, de tratar (ou não) os resíduos e o uso do ar-condicionado, são determinantes para que esses insetos criem, vivam, se reproduzam e alimentem em um ou outro lugar”, afirmou o diretor do departamento de Medicina Tropical da Universidade Central da Venezuela, XVIII Conferência Internacional de Doenças Infecciosas, realizada em março de 2018, na cidade de Buenos Aires.

Imagem ilustrativa, proximidade entre a cidade americana e a mexicana. Arte: William Sousa.

Em Rio Branco, os índices de saneamento básico não são nada satisfatórios, é o que demonstra o ranking do saneamento 2023, do Instituto Trata Brasil, com a capital acreana ocupando a posição 94, entre as 100 cidades analisadas. Atualmente, 60,73% da população rio-branquense tem acesso à água e apenas 22,67% têm coleta de esgoto. Esse quadro atual deixa a população das regiões periféricas vulneráveis às picadas e doenças transmitidas pelo mosquito. A realidade força os cidadãos a gastarem parte de sua renda com inseticidas.

Antes, Malária; agora, Dengue

No início da década de 1940, por exemplo, momento em que a incidência da Malária era maior, cerca de 6 milhões de pessoas foram atingidas, o que correspondia a pelo menos, 20% da população do Brasil. No estado do Acre, não era diferente. Conforme o Acre, diário oficial da época, em 1947, quase 900 pessoas contraíram a doença só na cidade de Rio Branco. Na época, os seringueiros eram um dos grupos mais afetados, pois estavam em contato direto com a floresta. Os inseticidas não faziam parte da realidade dessa população, que para se proteger contava com fumacês e mosquiteiros.

Hugo Carneiro, governador do território do Acre, entre 1927 a 1930, criou políticas de prevenção contra a malária. Entre elas, a curricularização de práticas de higiene no ensino primário. Dentre as orientações, também estava o uso de mosquiteiros.

Atualmente, a incidência de Malária está diminuindo no Acre. Segundo o boletim da Secretaria de Estado de Saúde do Acre (Sesacre), em 2023, estima-se que 1,5 mil cidadãos foram acometidos pela doença entre janeiro e março. As estimativas apontam uma queda nos números, tendo em vista que no mesmo período de 2022, foram contabilizados 2,1 mil casos. As cidades com mais diagnósticos foram: Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Rodrigues Alves, todas do Vale do Juruá.

O professor Marcelo Urbano Ferreira, coordenador de pesquisas no Acre, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista ao jornal da USP, em 2021, comentou que o quadro de Malária urbana, hoje contido nos grandes centros da Amazônia, como Rio Branco, pode aumentar. “Os moradores das cidades frequentemente transitam em localidades rurais de alta transmissão, onde podem infectar-se. Assim, temos mosquitos e parasitos presentes na periferia das cidades, potencialmente se espalhando em áreas de população mais adensada. São elementos que propiciam surtos de Malária em áreas urbanas.”

No momento, as políticas públicas estão sendo eficazes no controle da Malária no Acre, mas o mesmo não ocorre com a Dengue. Segundo o boletim epidemiológico da Sesacre, nos três primeiros meses de 2023, mais de 3 mil casos suspeitos foram diagnosticados. Rio Branco obteve mais de 1 mil notificações da doença, outro fator de atenção, é o aumento no número de casos de Zika, a capital registrou 243 casos entre janeiro e março. Em 2022, no mesmo período, nenhum caso havia sido registrado na cidade.

Infográfico dos casos de malária. Arte: William Liberato.

Cortinado, por favor

Mesmo com inseticidas disponíveis como opção atualmente, em Rio Branco, há pessoas que ainda preferem o uso dos cortinados. Esse é o caso de Rute de Oliveira dos Santos do Nascimento, de 42 anos. Ela conta que durante toda a infância, quando morava no interior do estado, para se proteger de insetos e até morcegos, ela e sua família utilizavam o mosquiteiro, hábito que ainda mantém até hoje.

“É desde a infância. Quando eu morava com meus pais, os colonos tinham o hábito de usar, principalmente devido aos morcegos, eles ferravam a pessoa. Lembro da minha mãe não pisando direito porque o morcego tinha roído o pé dela. Era uma regra muito recomendada à noite. E a questão das carapanãs também”, disse.

Rute aponta também possíveis motivos para o abandono dos mosquiteiros pela população, e reforça que a desigualdade social impacta nessa mudança de comportamento. “As casas forradas, que tem ar-condicionado, eu acredito que não há necessidade de usar o mosquiteiro, porque o ambiente não é aconchegante para esses mosquitos. Acredito que se parou de usar o cortinado porque incomoda e é algo a mais para arrumar, para enrolar, guardar, lavar e colocar”, finaliza Rute.

Nas lembranças

Da geração Z, posterior a de Adriana e Rute. Paulo Victor Alves de Oliveira, de 21 anos, guarda nas lembranças o cortinado da vizinha, responsável por seus cuidados quando criança. “Era só eu e minha mãe. Grande parte do dia a minha mãe ficava trabalhando e eu ia para escola. No tempo que eu não estava com ela, normalmente ficava com uma vizinha. A casa dela era de madeira, era um terreno mais aberto e com muito mais vegetação. Lembro que sempre existia esse cuidado de colocar o mosquiteiro e ver se ele estava certo. Sempre escutava os mosquitos quando acordava no meio da noite, assim, fora do mosquiteiro”.

O jovem, hoje, estudante de biologia da Universidade Federal do Acre (Ufac) abandonou, assim como Adriana, o cortinado. “Queremos as coisas muito mais fáceis. Lembro que sempre se tinha o cuidado de levantar e amarrar o mosquiteiro e quando fosse dormir o cuidado de não deixar um espaço, um buraco. Na minha concepção, as pessoas (jovens) querem as coisas na hora. O mosquiteiro traz uma dificuldade, por conta da montagem e desmontagem”.

O cortinado, presente por muitas gerações no dia-a-dia dos rio-branquenses na hora de dormir, sofre relutância para se manter como opção na proteção contra os mosquitos. Hoje, com o acentuado processo de urbanização, a popularização dos inseticidas e o controle da Malária, o mosquiteiro parece não atender às necessidades da população, se tornou obsoleto, ficando nas memórias de quem usou durante a infância ou até depois, na vida adulta.

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