Cultura

Música e identidade: jovens acreanos se constroem através dos ritmos

Do forró e reggae de fronteira ao trap, funk e MPB, a juventude do Acre encontra na música uma forma de expressão, pertencimento e resistência. Foto: cedida

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Por Ana Paula Melo e Pedro Amorim

A música que escolhemos ouvir não é apenas uma questão de gosto. Ela carrega nossas histórias, desejos, pertencimentos e até nossas contradições. No Acre, a juventude tem construído sua identidade a partir de uma combinação singular de ritmos, que vão desde gêneros tradicionais até influências contemporâneas e internacionais.

Os jovens acreanos transitam entre o forró, o brega romântico e o sertanejo universitário,  estilos que, historicamente, marcaram a cena local, e novos gêneros como o funk, o trap e até o K-pop refletem tanto suas raízes regionais quanto suas conexões com fenômenos culturais globais.

Outro estilo marcante é o chamado “reggae de fronteira”, típico das regiões próximas ao Peru e à Bolívia. Embora menos visível nos meios digitais, esse gênero ainda ressoa em festas e encontros culturais, compondo a memória afetiva de muitos jovens. Essa convivência entre o tradicional e o moderno mostra como a identidade musical juvenil no Acre é múltipla, viva e em constante transformação.

A música, nesse contexto, se transforma em ferramenta de expressão pessoal e coletiva, reafirmando a identidade desses jovens em múltiplos espaços, do bairro às plataformas globais. Paula Amanda, jornalista, cantora e já jurada de festivais de música em Rio Branco, destaca que espaços como o Mercado Velho, a Expoacre e os festivais locais ainda têm papel fundamental na formação cultural.

“A gente percebe a predominância dos jovens nesses espaços. É um lugar que influencia, sim, na identidade, porque eles estão tendo acesso de ouvir aquele repertório, ouvir aquele estilo musical e de conhecer outras pessoas que também consomem aquele estilo. Isso é de grande importância dentro dessa construção de identidade, porque eles têm alguém para se espelhar, para ter como referência”, afirma Paula Amanda.

Paula Amanda é jornalista e cantora. Foto: cedida

Ela reforça ainda que cada geração encontra na música um reflexo do seu tempo. “A geração antes de nós tinha um gênero musical que gostava e hoje os adolescentes também têm um estilo, uma identidade, um jeito de se vestir e algo para ouvir. Cada geração tem seu espaço no mundo para consumir o que gosta.”

A forma como essa música é consumida também revela muito sobre os hábitos e dinâmicas culturais dessa juventude. Segundo dados da pesquisa Cultura nas Capitais, realizada pela JLeiva Cultura & Esporte com 600 pessoas em Rio Branco entre 19 de fevereiro e 17 de maio de 2025, o celular é hoje o principal meio de acesso à música, sendo utilizado por 85% dos entrevistados. Em seguida, aparecem o som portátil (75%), o carro (41%), o rádio (33%), o computador (27%), o CD ou DVD (16%) e, ainda, o vinil (3%).

Além dos dispositivos, o uso de plataformas digitais é expressivo: 68% escutam música pelo YouTube, 44% usam o Spotify e 34% recorrem ao TikTok. Esses dados indicam que os jovens não apenas ouvem música, mas a consomem de maneira interativa. Eles compartilham faixas, criam conteúdos, remixam sons e participam ativamente das tendências que surgem nas redes sociais.

Plataformas digitais e novos sons

Abigail Sunamita, cantora, jornalista e assessora de comunicação, explica que os aplicativos mudaram completamente o acesso. “Antigamente, pra você ouvir uma música, era pela rádio, CD ou fita. Hoje, com um simples clique no Spotify ou no YouTube, a pessoa consegue acessar aquela música, colocar na playlist e o mundo inteiro pode ouvir. Isso é de grande importância porque os jovens têm o celular na mão e o acesso é imediato”, explica.

Abigail fala sobre suas experiências na música. Foto: cedida

Sobre os estilos em alta, Sunamita destaca a influência das trends digitais. “Os jovens acreanos estão sendo muito bombardeados pelas trends do TikTok. Essas músicas do auge, de gêneros diversos, muitas vezes resgatadas de tempos antigos, acabam voltando. Mas um gênero que eu percebo muito intenso na vida dos jovens é o funk, o trap e até a MPB, que tem tido um resgate muito forte”, comenta.

Rap como resistência e pertencimento

Além do entretenimento, a música também é ferramenta de resistência e de voz para os jovens, especialmente nas periferias. Kaemizê, rapper e beatmaker de Rio Branco, conta que começou ainda na escola. “A música entrou na minha vida por volta de 2014, quando ouvi ‘Linhas Tortas’, do Gabriel, o Pensador. A partir dali, senti que podia fazer rap. Foi uma grande inspiração”, explica o rapper.

Para ele, o rap cumpre uma função social importante. “Através da música eu li meu primeiro livro. O rap me trouxe essa responsabilidade de cantar algo que eu vivia, mas de forma consciente para quem está ouvindo. Isso me faz refletir até hoje sobre a mensagem que passo”, relata.

Kaemizê reforça papel social do hip-hop. Foto: cedida

O rapper também lembra que o estilo musical influencia diretamente no comportamento e na moda. “Hoje a moda streetwear faz parte da identidade do hip hop. Quando você vai numa escola fazer apresentação e o moleque te vê com uma calça larga, um tênis, isso impacta na vida de quem vê”, conclui Kaemizê.

Música Huni Kuin: ancestralidade e resistência na juventude indígena

Para os jovens indígenas do Acre, como Yubé-Warderson Rodrigues Domingos Kaxinawá, estudante de música da Universidade Federal do Acre (Ufac) e membro do povo Huni Kuin, a música é mais do que arte: é uma ponte para a ancestralidade, um espaço de resistência e uma ferramenta para ocupar espaços na sociedade. 

Ele explica como a música indígena, especialmente a Huni Kuin, contribui para a construção da identidade dos jovens e dialoga com outros estilos musicais sem perder sua essência. “A música Huni Kuin ajuda a gente a ser reconhecido, respeitado e a ocupar espaços na arte e na música”, afirma Yubé-Warderson. 

Ele destaca que os 17 povos indígenas do Acre possuem tradições musicais diversas, cada uma com sua força cultural. “Não é só o Huni Kuin. Temos referências como o Mapu, que está na mídia, gravando com artistas famosos e participando de novelas, mas há outros povos e artistas que também fortalecem nossa identidade através da música”, comenta.

Yubé-Warderson destaca importância da música para os jovens. Foto: cedida

Para ele, a música indígena carrega uma espiritualidade única, conectada aos antepassados e à floresta. “Nossas músicas falam dos elementos da natureza, pedem cura, força e paz. Não é como outras músicas que falam, por exemplo, da beleza de uma pessoa. É algo sagrado, com uma história e uma ancestralidade por trás”, destaca.

Como estudante de música na Ufac, Yubé-Warderson reflete sobre o aprendizado formal e a riqueza da música indígena. “Na universidade, aprendemos sobre ritmo, melodia, o que é considerado música no contexto ocidental. Mas, para nós, a música indígena é diferente. Ela está nos rituais, nas dietas, nos batismos, nos cantos dos anciãos e especialistas das aldeias. Nossa inspiração vem dos mais velhos, da nossa origem, não apenas de quem está na mídia”, enfatiza o estudante.

Sobre a integração da música indígena com outros estilos, ele acredita que a adaptação é natural e não compromete a força cultural. “No mundo atual, tudo se transforma, até a música indígena. Podemos usar instrumentos ocidentais, mas a essência permanece. As letras continuam espirituais. É uma criatividade que fortalece nossa resistência, porque mostramos quem somos em novos espaços, sem perder nossa história”, esclarecer.

Yubé-Warderson também destaca a importância de valorizar os artistas que vivem nas aldeias, muitas vezes invisibilizados pela mídia. “Nossa maior inspiração vem dos anciãos, dos nossos pais e tios, que cantam nas comunidades. Eles são a base da nossa música, mesmo que não apareçam na mídia. É de lá, do nosso território, que tiramos força para levar nossa cultura adiante”, destaca.

Desafios da cena musical acreana

Spartakus MC, rapper, historiador e membro do Centro Acreano de Hip-Hop, complementa a análise ao falar sobre os obstáculos de produzir música no Acre.

“A primeira dificuldade sempre foi a falta de acesso à tecnologia: estúdios, softwares, computadores. Isso era surreal há 15 ou 20 anos. Hoje melhorou, mas os equipamentos de qualidade ainda são muito caros. A gente consegue fazer muito com muito pouco”, alega o historiador.

Ele também aponta a carência de incentivo público. “Os apoios vêm por meio de editais, e nem todos conseguem chegar. O poder público incentiva pouco, e até o próprio público consome pouco o que é local”, conclui. Para ele, muitas vezes o que vem de fora é mais valorizado. E, com isso, nem todos reconhecem o valor e a qualidade da música e dos grupos locais que acompanham gerações de acreanos.

Redação

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