Por trás de cada peça feita à mão, há algo que vai além do material. Onde a natureza dita o ritmo da vida, o artesanato é mais do que trabalho: é uma maneira de preservar histórias, manter vivas tradições e transformar o olhar sobre o que nasce da terra.
Em cada colar, escultura ou acessório produzido no Acre, vive a memória da floresta, das tradições amazônicas e das pessoas que escolheram o artesanato como forma de expressão e sustento. Nesta reportagem, conversamos com três artesãos que dão forma, cor e alma a peças únicas, e que carregam, em suas trajetórias, a força de quem faz da arte um caminho.
O artesão das sementes
João Neto produz diversos tipos de miçangas. Foto: Autores
João Neto cresceu cercado pela natureza e aprendeu cedo a olhar para as sementes como algo que carrega vida e história. Não demorou para transformar esse olhar em arte: pulseiras, colares, terços, todos feitos à mão, um a um, usando sementes da floresta amazônica.
Mas seu começo no artesanato foi outro. “Eu tô nesse ramo desde 2005. Há uns 12 anos, abri minha loja com cinco colegas. Nunca imaginei que um dia estaria fazendo artesanato assim. Mas, com o tempo, a loja começou a exigir mais variedade, então passei a montar minhas próprias peças.”
Foi aí que as sementes ganharam espaço. As matérias-primas vêm de diferentes partes do Acre e até do Amazonas. “Tem gente que traz de Boca do Acre, Assis Brasil, Feijó, Sena Madureira. A semente vem crua e a gente compra de quem já beneficiou. Eu não faço o beneficiamento, tem gente certa pra isso. Tem quem fure caroço por caroço. A gente trabalha com paxiubão, açaí, jarina… e os cascalhos, que são essas pecinhas menores entre uma semente e outra. Pode ser de Tucumã, de Cumaru-ferro ou até da própria semente que sobra.”
Grande parte do trabalho é produzido com sementes. Foto: Autores
Hoje, João fabrica chaveiros, colares, brincos, e outros acessórios. Para ele, a reinvenção é parte do ofício. “O turista cobra isso da gente. Então a gente se reinventa.”
Mesmo com a experiência, os desafios são constantes. “Minha maior dificuldade como artesão é o incentivo financeiro.” Hoje ele é microempreendedor individual (MEI), tem sua empresa, mas por ainda ter dívidas junto ao Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), fica impedido de conseguir crédito em bancos. “Tudo que eu faço é com o dinheiro que gira dentro da loja… é o que sustenta minha vida, o pagamento dos funcionários, a compra das sementes. Às vezes, eu até dou material para outros artesãos que estão passando dificuldade. Porque a gente sabe como é”.
A criação, segundo ele, é algo que se aprende ao fazer. Inicialmente, João Neto não se via montando um colar, um brinco. “Mas tudo é criatividade. Cada peça tem um significado, depende da forma como você monta, do jeito que você deixa”. Ele cita o exemplo dos chaveiros, que gosta de deixar uma pontinha pra fora. “É um gosto meu, tem gente que critica, diz que tem que seguir um design certinho. Mas eu gosto de combinar as peças com uniforme, com alguma coisa que se conecte”, explica.
“Tudo é criatividade”, disse João Neto. Foto: Autores
Ele sente uma motivação muito grande ao ver suas criações cruzando fronteiras “ e sempre pergunta para os clientes de onde são. “Um dia, entreguei uma camiseta para um cara e ele disse que era da Checoslováquia. Eu nem sei onde fica direito, mas pra você ver como a Amazônia atrai gente do mundo todo. O nosso artesanato tem esse poder.”
O doutor da borracha
José Rodrigues carrega no apelido e no ofício o legado da floresta. Filho e neto de seringueiros, ele nasceu nesse caminho e fez da borracha não apenas sustento, mas arte que já cruzou fronteiras e palcos do mundo.
José Rodrigues é conhecido como Doutor da Borracha. Foto: Autores
“O que me inspira a trabalhar com a borracha é a floresta. Eu queria viver de um trabalho que valorizasse o meu ambiente. Me inspiro na minha história, na história dos meus pais, que são seringueiros. É algo que corre no sangue”. Para ele, o mais importante é conseguir transformar essa matéria-prima em uma peça final, pronta para o consumidor, e esclarece: “isso agrega valor ao que a floresta oferece e ao que eu faço com minhas próprias mãos.”
Com olhos atentos ao passado e pés fincados no presente, ele transformou o látex em sapatos, bolsas e acessórios únicos, produzidos com consciência ambiental e respeito pela cultura do seu povo. Sua trajetória começou ainda em meados dos anos 2000, a partir de um curso de tecnologia da borracha oferecido em parceria com a Universidade de Brasília a TEC BORR.
Todos os produtos são peitos a partir do látex. Foto: Autores
“Comecei a trabalhar com folha de defumação líquida que é um tipo de borracha produzida utilizando uma técnica de coagulação do látex com fumaça líquida. E ali, por volta de 2006, 2007, nasceu esse meu trabalho com o artesanato”. E tudo foi se transformando à medida que passou a expor em feiras, foi ouvindo o que as pessoas diziam, pegando ideias e colocando em prática.
Desde então, José levou o nome do Acre a diferentes partes do mundo. Participou da Feira de Milão em 2014, conduziu a tocha olímpica em 2016, esteve no palco do Faustão em 2017 e gravou o documentário Acre Existe em 2012. Em 2022, foi reconhecido com o prêmio Top 100 Mundial Ambiental.
“O que mais me emociona é poder andar pelo Brasil e até fora dele, mostrar meu trabalho. Eu, que nasci e fui criado na floresta, hoje tenho a oportunidade de apresentar um produto lindo, sustentável, para o mundo. Isso fica na memória.”
Da madeira para memória viva
No ateliê de Antônio Geraldo, a arte de esculpir a madeira é mais que um ofício. É uma paixão que se revela em peixes, folhas e animais típicos da Amazônia, trabalhados em detalhes minuciosos.
Desde os anos 2000, ele encontrou no artesanato não apenas uma fonte de renda, mas uma terapia, um respiro criativo e uma forma de respeitar o meio ambiente. Ele começou com móveis, criando com madeira o que dava vontade. Depois, foi se dedicando mais ao artesanal, aos estilos rústico e torneado. E com o tempo descobriu que o artesanato o ajudava até psicologicamente.
Da madeira, Antônio Geraldo produz diversos produtos. Foto: Autores
“ Às vezes você está fazendo uma peça e, do nada, surge uma ideia para outra. É como se a madeira abrisse caminhos dentro da nossa mente. A gente vai criando, se acalmando, refletindo. E mais do que isso, a gente transforma o que seria lixo em arte.”
Seu Geraldo utiliza restos de madeira, galhos e pedaços que iriam se perder e a partir deles criar peças únicas. “A sustentabilidade está aí: você não agride o ambiente, mas aproveita o que a floresta já oferece. Aquilo que muitos acham que só serve para lenha, eu vejo como matéria-prima.”
Para ele, cada escultura nasce de um impulso diferente, e a criação vem para todo artesão que tem atitude e desejo. “Nem sempre consigo repetir uma peça igual, porque cada uma nasce de um momento, de uma ideia. Se alguém me pede uma peça igual à que viu meses atrás, às vezes já não consigo fazer. É outra inspiração. É outra madeira. É outra história.”
Grande parte dos produtos é feito a partir de restos de madeira. Foto: Autores
E é justamente essa singularidade que tem levado seu trabalho para além das fronteiras do Acre, Brasil e até do mundo. “Dá um orgulho enorme ver o que a gente faz com as próprias mãos sendo valorizado. Quando as pessoas elogiam, encomendam, pagam antes mesmo de ver a peça pronta…” Antônio Geraldo se sente feliz com a admiração a suas peças, o que dá confiança para continuar trabalhando. “Já desejei que a noite virasse dia só pra seguir criando.”
Todo o processo criativo vem da própria mente do artista. Foto: Autores
Mas o reconhecimento nem sempre vem de onde se espera. “Infelizmente, aqui na nossa região, tem gente que debocha, que desvaloriza. A gente vive cercado de madeira e, por isso mesmo, muitos não enxergam o valor de um trabalho feito com ela. Tem quem diga que aquilo não presta, que é só lenha. Isso desanima. Mas aí vem alguém de fora, olha com outros olhos e diz: ‘isso é arte!’. E isso faz a diferença. O elogio de um compensa o desprezo do outro. Dá força pra continuar.”
Trabalho feito à mão é a realização de um sonho. Foto: Autores