Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil vive um regime democrático representativo. Isso significa que o povo escolhe seus representantes por meio do voto, e estes, por sua vez, são responsáveis por tomar decisões em nome da população. Partindo desse princípio, seria esperado que os políticos eleitos refletissem, em alguma medida, a composição social do país, incluindo fatores como raça e cor.
No entanto, ao observarmos o cenário político do Acre, especialmente em sua capital, Rio Branco, percebemos que essa representatividade ainda está longe de se concretizar. A pergunta que se impõe é: onde estão os políticos negros do Acre? Essa promessa da democracia ainda está distante da vivência de grande parte da população negra. A ex-secretária municipal de Igualdade Racial de Rio Branco, Lúcia Ribeiro, comenta:
“Infelizmente, mesmo com a existência de uma lei eleitoral que estabelece cotas, ainda enfrentamos muitos obstáculos. A chamada política de cotas determina que nenhum sexo pode compor mais de 70% ou menos de 30% das candidaturas. Essa regra ficou conhecida como “cota feminina”, mas, na verdade, ela se refere à proporcionalidade de gênero nas candidaturas — não necessariamente à garantia de eleitas […] Esse é um dos pontos que considero fundamentais para entendermos por que não temos uma representatividade que reflita a composição da sociedade”, cita.
Coronel Ulysses do União Brasil. Foto: Reprodução
Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 73,5% da população acreana se declara parda e 6,8% se declara preta. Juntos, pretos e pardos — a população negra, conforme classificação do IBGE — somam 80,3% dos habitantes do estado. No entanto, essa maioria demográfica não se reflete nas urnas nem nas composições das casas legislativas da capital.
Segundo Lucia Ribeiro, o Tribunal Superior Eleitoral começou a registrar a autodeclaração de candidatos e candidatas a partir de 2014. Naquele ano, foram identificadas 281 pessoas autodeclaradas negras. Em 2018, esse número subiu para 305. Já em 2022, tivemos 376 candidatos e candidatas que se autodeclararam pardos, e 315 que se autodeclararam pretos. Destes, 61 foram eleitos.
“Outro fator importante é que muitas dessas pessoas não fazem parte de famílias tradicionais da política. Um exemplo é a deputada Jéssica Sales, que vem de uma família política: a mãe é deputada estadual, o pai já foi deputado e prefeito de Cruzeiro do Sul. Essa trajetória familiar contribui para a inserção dela na política. E, por fim, há a questão da identificação social entre o candidato e o eleitor. Quando não há essa conexão, a campanha perde força e visibilidade”, questiona a especialista.
Caminho sem volta
Nas eleições para a Câmara de Vereadores de Rio Branco, apenas um vereador autodeclarado preto foi eleito nas duas últimas disputas: João Paulo Silva (PODE), em 2024. Já no cenário estadual e federal, a presença de pretos também é mínima. Em 2022, apenas um deputado federal preto foi eleito (Coronel Ulysses, do União Brasil) e apenas um deputado estadual (Edvaldo Magalhães, do PCdoB), pegando como base, os dados dos votos apenas da capital acreana. Isso demonstra uma sub-representação evidente, especialmente dos pretos, mesmo entre os grupos que se autodeclaram negros.
João Paulo Silva do PODE. Foto: Reprodução
Ribeiro reforça a gravidade da invisibilidade política da população preta, especialmente das mulheres:
“Infelizmente, as pessoas ainda não fazem a associação direta do voto com a identidade do candidato. Raramente alguém diz: ‘Vou votar nesse candidato porque ele é preto, pardo ou negro e vai defender essa causa no parlamento’, ou ‘Vou votar nessa mulher porque, como mulher, ela vai representar os interesses das mulheres na sociedade”, reflete.
Outro ponto importante quando falamos em barreiras é a violência política e a violência de gênero. Essa violência ocorre tanto durante a campanha, no momento em que a candidatura é colocada, quanto durante a gestão de um mandato ou em cargos públicos.
Segundo pesquisas, na última eleição houve 542 casos de violência política e eleitoral, com 497 vítimas, incluindo tentativas de assassinato. Tivemos, por exemplo, o caso de uma vereadora no município de Bujari, que enfrentou intimidações e constrangimentos, uma situação bastante comum que desestimula muitas mulheres e pessoas negras a se colocarem como candidatas, reflete Ribeiro.
Quanto aos candidatos pardos, houve um crescimento nas eleições municipais. Em 2020, dos 17 vereadores eleitos, 9 eram pardos (52,94%); já em 2024, dos 21 eleitos, 14 se declararam pardos (66,67%). Ainda assim, esse percentual está abaixo da presença dos pardos na população geral. Para os cargos de deputado estadual em 2022, 58,33% dos eleitos foram pardos. Já para deputado federal, os pardos representam apenas 37,5% dos eleitos.
Edvaldo Magalhães, do PCdoB. Foto: Reprodução
“As pessoas eleitas que se autodeclararam negras não foram eleitas por serem negras. Primeiro, porque acredito que essas pessoas não se autodeclararam pretas ou pardas apenas para preencher cotas. Mas o ponto principal é que essas pessoas não se elegeram com base em uma consciência racial, em um letramento racial ou em um projeto de mandato voltado à promoção da igualdade racial e ao enfrentamento do racismo. Por que eu digo isso? Porque essas pessoas, em sua maioria, não exercem seus mandatos com foco nessa pauta”, descreve Ribeiro.
Necessidade de mudanças
Considerando todos os cargos legislativos citados (vereadores, deputados estaduais e federais) eleitos entre 2020 e 2024 em Rio Branco, a representação negra chega a cerca de 61,43% — número ainda inferior aos 80,3% da população. Além disso, dentro desse grupo, os pretos seguem sendo drasticamente minoria, evidenciando que a desigualdade é ainda mais acentuada dentro da própria população negra.
A proporção de votos válidos para candidatos pretos quase dobrou, de 4,8% em 2020 para 8,1% em 2024. Embora João Paulo Silva tenha sido eleito, o número é pouco comparado ao tamanho da demanda política. Para Lúcia Ribeiro, mudar esse cenário exige mais do que ajustes partidários. É preciso reconhecer a política como território histórico de exclusão e agir de forma estratégica e coletiva para inverter essa lógica.
A maioria das pessoas eleitas não têm uma preocupação maior com o empobrecimento da população negra, com essa situação de exclusão em que o racismo estrutural coloca a população negra: no subemprego, no desemprego, na economia informal. A maioria das mães negras está em programas de transferência de renda, cita a entrevistada.
Assembleia Legislativa do Acre (Aleac). Foto: Juan Diaz/ContilNet
A questão ambiental também. Quando há as alagações, a população negra mora próximo aos igarapés, às fontes d’água, aos cursos d’água e são as primeiras a serem alcançadas. São levadas para o Parque de Exposição. Durante esse momento de secura que estamos vivendo agora, a população negra é a que fica sem água, que não tem infraestrutura, que sofre os agravos das consequências dessas questões ambientais.
“Além disso, é necessário garantir a aplicação real do fundo partidário e dos tempos de televisão e rádio para as candidaturas negras. É fundamental que os partidos, sejam de direita, de esquerda ou de centro, comecem a se organizar e a tratar essa pauta com mais seriedade. Que não continuem descumprindo a lei e depois indo ao Congresso pedir anistia, como vimos acontecer agora, em 2025. Vários partidos, federações e coligações não cumpriram a cota estabelecida, e eles mesmos criaram uma lei para se anistiar do descumprimento de uma norma que eles próprios aprovaram”, finaliza.