Por Fernanda Maia, Gabriel Vitorino, Jhenyfer de Souza
“Eu vou concordar com o que Machado de Assis fala: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” A frase escrita pelo escritor no século XIX ressoa hoje na voz de Mariany Santana, natural do Piauí, que aos 23 anos decidiu fazer laqueadura e escolheu romper de vez com a possibilidade de ser mãe.
Marieny enxerga a ausência de filhos não como uma falta, mas sim uma escolha de quais batalhas deseja enfrentar na sua vida. E esse pensamento não é isolado, assim como ela, cada vez mais mulheres questionam o destino que lhes foi imposto culturalmente por gerações: a maternidade.
O desejo de se opor à maternidade era um tabu, mas hoje ganha corpo em estatísticas e debates, que são explicados por dados que apontam não só para o medo da instabilidade econômica que dificulta a criação de filhos mas também para uma geração que, pela primeira vez, sente mais liberdade em reivindicar o direito de dizer, sem culpa, “não quero ser mãe”.
Além disso, dados mostram o crescimento do movimento de mulheres que pensam da mesma forma. Pesquisas do Censo 2022 (IBGE) mostraram que o percentual de mulheres com 50 a 59 anos que não tiveram filhos subiu para 16,1%, em comparação com os anos 2000 que era de apenas 10,0%. Além disso, a pesquisa demonstra que em 2010, o maior índice de fecundidade era visto no grupo de 20 a 24 anos. Já em 2022, esse pico se deslocou para a faixa de 25 a 29 anos. Esse envelhecimento é causado pela redução na fecundidade entre as mulheres mais jovens.
A PNAD 2019 revelou que 10% das mulheres em idade reprodutiva declararam não desejar filhos, isso coincide com a queda expressiva na taxa de fecundidade que era de 6,3 filhos por mulher em 1960 e chegou a 1,6 em 2022, abaixo do nível de reposição populacional (2,1).
Maternidade é escolha
Na sociedade existe há alguns séculos a necessidade de impor aos gêneros seus respectivos papeis, muito influenciados pela herança de uma cultura machista que restringia as mulheres à procriação e cuidados com o lar. Hoje notamos certas mudanças nesse contexto, mulheres estão conquistando cada vez mais os seus espaços fora do âmbito familiar e possuem reflexão cada vez maior sobre suas aptidões e desejos.
A maternidade foi muitas vezes associada a estereótipos que reduziram a mulher a papéis naturais de fragilidade e dedicação exclusiva ao cuidado com os outros. Essa visão ficou enraizada nas estruturas sociais, com as mulheres vistas como cuidadoras, responsáveis pelo lar, pela gestação e pela criação dos filhos, o que reforçava que a realização da mulher estava necessariamente ligada à maternidade.
Essa associação entre mulher e maternidade está cada vez mais distante da realidade atual da mulher, que muitas vezes visa liberdade e independência feminina. Hoje, algumas mulheres buscam autonomia, crescimento pessoal, profissional , e desafiam as funções que as definiram apenas com base em papéis reprodutivos. Para algumas mulheres a maternidade não é mais vista como um destino inevitável, mas sim uma escolha.
Pâmela Freitas palestrando sobre representações de mulheres e desconstruindo estereótipos. Foto: Arquivo Pessoal
A frase “não quero ser mãe” pode parecer simples, mas carrega um peso social imenso para quem decide dizê-la em voz alta, especialmente quando se é uma mulher jovem. Essa afirmação pode taxar a mulher que prefere não ser mãe como egoísta e colocando-a quase como vilã.
Escolha Definitiva
Em posicionamento público, por meio de suas redes sociais, Mariany Santana relatou como a decisão definitiva encerrou de uma vez por todas a possibilidade de ter filhos. O vídeo sobre sua experiência em fazer a laqueadura aos 23 anos viralizou e atingiu milhares de pessoas que se identificaram, discordaram ou se surpreenderam com sua posição convicta.
“Essa decisão de não ter filhos, ela não veio do dia para noite. Foi bem pensada. Começou com um sentimento de enxergar que a maternidade não era de fato para mim. A maternidade existe muito sacrifício, muda totalmente a dinâmica do casal, muda totalmente a mulher e é como se fosse um emprego vitalício. Então, eu vi que isso não era para mim”, contou Mariany.
Mariany testemunhou em sua própria família os sacrifícios da maternidade e decidiu que não queria seguir o caminho da criação dos filhos e optou pela cirurgia de laqueadura com o objetivo de realizar um método definitivo.
Ela buscou um método com 100% de garantia e optou por remover as trompas, ao invés dos métodos anticoncepcionais tradicionais. “Viver numa família grande, observar os sacrifícios, saber que eu estava criando uma criança para o mundo e que talvez essa criança não seguisse os os meus passos, não seguisse os meus conselhos, eu não teria controle sobre ele, sobre o que viveríamos, sobre os perigos ao qual ele poderia se expor, tudo isso me fez optar por não ser mãe.”
Apesar de sua decisão ter sido recebida com mensagens de apoio da grande parte de seus familiares, Mariany conta que ao publicar em suas redes sociais sofreu julgamentos e até ataques online por suas opiniões: “É um hate desmedido, é desproporcional, eles se lamentam e dizem que eu sou egoísta.”
Sem medo de se arrepender, Mariany segue firme em sua decisão. “Eu prefiro me arrepender por não não ter um filho do que ter um filho e me arrepender, eu tinha conhecimento sobre todos os métodos, sobre falhas, eu me mantive virgem para fazer a cirurgia, eu realmente estava firme.”
As Motivações
Os motivos por trás dessa escolha são diversos, e entre eles se encaixam questões econômicas, pois para a classe média, criar um filho até os 18 anos no Brasil custa em média R$ 1,4 milhão, segundo cálculos do IPC/FGV de 2023. As mulheres também estão cada vez mais valorizando o direito de decidir priorizar as suas vidas pessoais ou suas carreiras profissionais e ter autonomia sobre o seu corpo sem se dedicar às renúncias que vêm junto com a maternidade. Uma pesquisa do LinkedIn em 2023 sobre carreira e maternidade mostrou que aproximadamente 68% das mulheres sem filhos enxergam a maternidade como um obstáculo profissional.
Pâmela Freitas na Ufac dialogando sobre jornalismo, filosofia, ciência e tecnologia. Foto: Arquivo Pessoal
A jornalista acreana Pâmela Freitas, 30 anos, desde cedo também não se via como mãe e buscou conhecimento sobre as questões sociais e trabalhos que envolvem a maternidade como um todo, principalmente para as mulheres.
A jornalista entende que ter filhos gera uma carga muito maior para a mãe. “Mesmo quando ela é casada e o pai é presente, a carga sempre é maior para a mulher, como basicamente tudo na vida. Então, eu acredito que, principalmente por esse motivo, por esse excesso de trabalho, por mais essa demanda, eu nunca tive vontade”, comentou Pâmela.
A decisão de não ter filhos também esbarra em políticas públicas que ainda tratam a maternidade como uma inevitabilidade. Métodos permanentes de contracepção, como a laqueadura, seguem cercados de exigências e burocracias, especialmente para mulheres jovens.
“Eu acredito que essa informação não chega de forma equivalente para todo mundo, e isso é um problema, porque faz com que muitas mulheres acabem engravidando por não saber como se prevenir ou por não ter acesso à cirurgia de laqueadura, por exemplo”, desabafou Pâmela.
No caso de Pamela, a decisão de não ser mãe não surgiu de um trauma ou evento isolado, mas de uma consciência desenvolvida ao longo da vida. Desde a juventude, Pâmela nunca se enxergou em narrativas tradicionais de casamento, filhos e rotina doméstica, enquanto muitas mulheres são ensinadas a sonhar com um berço no quarto e uma criança nos braços, ela sempre sonhou com estudos, idiomas, profissão e liberdade de escolhas.
“Eu quero ser professora universitária, eu queria trabalhar como jornalista, como assessora de imprensa para pegar bagagem, para levar para sala de aula quando eu me tornar uma professora. Eu gosto de estudar, estudar idiomas como um agregador pessoal e profissional. Então, meus planos de vida estão sempre voando”, destacou Pâmela.
Por onde passa, ela evita dar margem a julgamentos. “As pessoas que mais importam para mim são as que eu falo abertamente sobre isso. Outras pessoas eu comento sobre, mas nunca dou abertura para elas me criticarem.” Ainda assim, ela reconhece que o julgamento existe, não direcionado a si, mas presente na sociedade.
Realidade sem filtro
Há uma romantização da maternidade, que ignora as renúncias que ela impõe, filhos são sim, fonte de amor, mas também exigem tempo, dinheiro, disposição emocional e física, recursos esses que muitas mulheres hoje em dia preferem direcionar a si mesmas, aos seus projetos de vida, ou mesmo à liberdade de viver sem grandes vínculos familiares. Pâmela compreende isso com clareza, para ela ter filhos nunca fez parte de um ideal de realização.
Mulheres que não querem ser mães. Foto: Arquivo pessoal
Mais do que não desejar a maternidade, Pâmela e Mariany também rejeitam a experiência da gestação como os impactos causados no corpo, o risco à saúde que surge e as cobranças sociais que se impõem às mães desde o pré-natal até a vida adulta da criança.“Eu não queria ter que sofrer durante a maternidade, sentir enjoo, correr risco de pré-eclâmpsia, diabetes gestacional, eu não queria ter que parir”, disse Mariany. “Eu não quero a gestação, sabe? Aquelas mudanças no corpo, aquela transformação que passa no corpo da mulher quando ela engravida”, endossa Pâmela.
É nesse ponto que a sociedade frequentemente desumaniza a mulher que escolhe não ser mãe, quando a define como “incompleta” ou “egoísta”, mesmo quando a escolha está baseada em racionalidade, planejamento e autoconhecimento. Para muitas, inclusive, a cobrança de uma herança biológica torna-se um peso, outras querem deixar seu legado em suas ações, em suas profissões, nos vínculos afetivos que constroem voluntariamente, e não na continuidade de um sobrenome.
“Eu acredito que nós podemos ser o melhor que podemos para as pessoas que amamos. Essa é a marca que eu quero deixar”, relatou Mariany.
Além da questão da informação e do acesso aos métodos contraceptivos que aparecem com força nos relatos, as entrevistadas destacam o quanto a desigualdade pode impactar diretamente sobre a vida de mulheres que, como elas, não querem filhos.
Pâmela também reflete sobre outras desigualdades que atravessam esse debate: enquanto mulheres cis hétero são pressionadas a serem mães, casais homoafetivos enfrentam preconceito ao desejarem a parentalidade. “Quando você é uma pessoa LGBT e decide que quer adotar um filho, a sociedade tem uma reação oposta, eles acreditam que você não poderia fazer isso. Totalmente preconceituoso”.
Enquanto o debate sobre o tema cresce na sociedade, especialmente nas redes sociais e nas universidades, mulheres como Mariany e Pamela seguem abrindo caminhos para que a maternidade deixe de ser um destino automático e passe a ser, de fato, uma escolha. Mais do que rejeitar a maternidade, a escolha de mulheres é sobre liberdade. Sobre poder dizer “não” a um modelo pronto, e sim a uma vida construída com consciência e autonomia. Em suas palavras, ecoam não só as experiências, mas os pensamentos de uma geração que ousa fazer perguntas onde antes só havia respostas prontas.