Ouvindo música em um antigo toca-fitas, Rosemildo Alves de Sousa, de 64 anos, segue concentrado no conserto de um sapato enquanto a cliente espera do outro lado do balcão, admirando sua habilidade.
Na parede atrás dele, estão alguns objetos pendurados, entre eles um bule e um boneco do papai noel, que ele justifica: “Me considero ainda uma criança, porque tudo que é de criança eu acho bonito”.
Cada item carrega uma história. O bule que tem mais de 69 anos foi encontrado na mata. Mas o que mais chama atenção é uma machadinha, que ele diz guardar por ser igual a que o pai usava quando era soldado da borracha.
Foto:Amanda Silva/ Francisca Samiele
Ele conta que quando era menino não tinha como tirar fotos, e por isso guarda alguns desses objetos como memória. E também que só trabalha ouvindo os programas radiofônicos, e ouve todos os tipos: “Eu sou viciado em rádio, escuto todo dia”.
Aos 64 anos, o sapateiro é um guardião de grandes histórias. Filho do seringueiro Francisco Gonçalves da Silva, que veio do Nordeste para o Acre em 1942, recrutado como soldado da borracha, no período da 2ª Guerra Mundial. Após a chegada ao estado, conheceu a mãe de Rosemildo, Idalécia Alves. “A primeira mulher que ele namorou, ele casou. Com minha mãe”.
Seu Rosemildo cresceu no Seringal Iracema, às margens do Rio Acre. Ribeirinho, aprendeu a nadar muito cedo.“Vixe! Eu ia morrendo afogado duas vezes”, recorda com uma risada. Ainda criança, aos 12 anos, começou a auxiliar o pai na coleta do látex. “Da seringa eu sei de tudo”, diz.
Da época ele diz gostar do trabalho, porque era uma das poucas diversões de muitas crianças do seringal. “Não tinha muita brincadeira, trabalhar era o que tinha”, conta. Pelo fato de não ter escola no local, acompanhar o pai era uma maneira de ocupar-se, “Não estudava porque não tinha escola”, enfatiza.
Rosemildo só conseguiu se alfabetizar aos 25 anos. Com exceção da mãe, todos da família eram analfabetos. Ele se culpa por não ter continuado os estudos, mas diz que conciliar a vida de estudante com o trabalho era muito difícil, e desistiu da escola antes de concluir o ensino fundamental.
O profissional diz que se tivesse outra chance, sua vida seria outra. “Se eu nascesse de novo, […] eu queria ser um médico, ou então advogado, para defender as causas. Eu vejo muita injustiça”.
O início da profissão de sapateiro
Alguns anos após o período de extração da borracha a família se mudou para a cidade. Rosemildo conta que o pai não ficou muito feliz com a mudança. “Ele era acostumado no interior, né? Nós todos, não era só ele não”. Na época a família não tinha muita expectativa com a vida na zona urbana.
Rosemildo, aos 18 anos, conheceu Manoel Oliveira de Lima, que era um sapateiro conhecido do bairro Quinze. Ele convidou Rosemildo para ser seu ajudante na sapataria. Por dia, fabricavam dez pares de botinas ou sandálias, começando do zero, além da manutenção dos calçados de clientes que chegavam. “Aprendi tudo, na prática”, afirma.
Foto:Amanda Silva/ Francisca Samiele
Depois de certo tempo, Rosemildo teve vontade de voltar para o interior. Mas o mentor lhe fez uma proposta: “Rapaz, vou abrir um negócio acolá, você poderia ficar lá?” foi então que ele resolveu ficar e permanece trabalhando no mesmo lugar há 16 anos.
Ao ser indagado sobre o que acha do futuro da profissão, ele responde que a atividade está se perdendo e a procura pelo serviço diminuiu muito nos últimos anos. A falta de material é um grande obstáculo, principalmente pela logística. E os sapatos de hoje não têm durabilidade. Para complementar a renda também vende Acrecap e mel.
História de sapateiro
A sapataria ganhou o nome de Santa Mônica anos depois, em homenagem à comunidade de mesmo nome, no bairro da Bahia. Seu Rosemildo disse que a profissão já lhe rendeu algumas histórias.
A mais inusitada foi de uma mulher que, mesmo sabendo que ele era sapateiro, solicitou um serviço diferente. “Teve uma mulher que chegou com a sacola cheia de calcinhas para remendar […] falei que não se costurava roupas. Naquele dia eu ri”.
Alguns clientes levam os sapatos e só voltam para buscar após um ano. Quando passa muito tempo, normalmente ele doa os calçados para projetos das igrejas ou para pessoas em situação de rua.
Foto:Amanda Silva/ Francisca Samiele
Apesar das adversidades, Rosemildo Alves de Souza, segue com um sorriso no rosto, agradecendo a Deus e se orgulhando do ofício que escolheu: “Me orgulho de ser sapateiro, não tenho vergonha. É meu ganha-pão”.