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Fernanda no Oscar, “Noites Alienígenas” em Gramado: como o cinema acreano se formou como resistência

Essa história se passa entre Rio de Janeiro e São Paulo, grandes centros urbanos brasileiros, mas histórias de opressão e perseguição provindas desse período histórico se multiplicam por todas as partes do país. No Acre, o poder do governo militar também afetou a produção artística e cinematográfica de grupos locais.

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A partir da repercussão da presença de “Ainda Estou Aqui” no Oscars 2025, vamos nos perguntar: “existia cinema no Acre durante os períodos de opressão do Acre?”

Por Beatriz Mendonça e Victor Manoel

Para além de uma forma de arte e entretenimento, o cinema é uma forma de memória coletiva de um povo. Um exemplo recente e de destaque, é o filme Ainda Estou Aqui, lançado em 2024 e dirigido por Walter Moreira Salles Jr, que ganhou reconhecimento nacional e internacional. O longa-metragem já ganhou diversos prêmios e já está na corrida do Oscar, concorrendo nas categorias de Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz de Drama e até mesmo como Melhor Filme. 

Foto: Trecho do filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles/Créditos: Globo Filmes e Sony Pictures

Ambientado na década de 70, a trama é baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva que conta a história real de sua família quando seu pai, Rubens Paiva, engenheiro e ex-deputado, foi sequestrado e morto pela ditadura militar brasileira. O filme é protagonizado por Eunice Paiva, advogada e esposa de Rubens, que também chegou a ser presa e perseguida pelos militares, e teve que continuar cuidando de sua família sozinha e buscar respostas para o desaparecimento de seu marido. 

Toda repercussão trouxe de volta discussões como a importância de reconhecer os atos de repressão feitos pelo governo militar e de ações, como a Comissão da Verdade, que trouxe respostas para as famílias de desaparecidos da época. Olhar para o passado é também uma forma de aprender com os erros para eles não serem repetidos no futuro.

Foto: Jovens da ECAJA/Créditos: A Gazeta do Acre

Essa história se passa entre Rio de Janeiro e São Paulo, grandes centros urbanos brasileiros, mas histórias de opressão e perseguição provindas desse período histórico se multiplicam por todas as partes do país. No Acre, o poder do governo militar também afetou a produção artística e cinematográfica de grupos locais. 

“O cinema acreano, por assim dizer, o cinema que nasce no Acre, tem sua certidão de nascimento registrada na ata de fundação de 1972, período que coincide com o auge do regime militar, durante o governo Médici, um dos momentos mais repressivos da ditadura” explica o professor Professor de História da Universidade Federal do Acre (Ufac), Hélio Moreira da Costa Junior. “No Acre, o cinema sofreu uma censura indireta. O caso mais emblemático foi o do filme Fracassou Meu Casamento, que foi apreendido pela Polícia Federal por não possuir certificado de censura”.

O Tempo e o Vento

Foto: 1ª câmera do cinema acreano, uma super 8mm da marca “Yashica”; atualmente de propriedade de Antonio Evangelista (Tonivan)/Créditos: Reprodução/Hélio Moreira da Costa Junior

Com o golpe militar de 1964, o novo governo militar do Acre buscou estimular a vinda de empresários para a região para a exploração dos recursos naturais. O plano era implantar grandes fazendas de criação de gado, ou seja, uma pecuarização da cultura. Para isso, os meios de comunicação de massa passaram a carregar uma um forte discurso de divulgação do estado. 

Nos anos subsequentes, a chegada dos chamados “paulistas” ou “sulistas”, trouxe um cenário de conflitos na região, principalmente, por posse de terras e preservação ambiental. Além disso, as exibições de filmes aconteciam de maneira fortuita e discreta, sempre sob vigilância, devido ao receio de apreensões pela Polícia Federal. A totalidade dos filmes produzidos localmente não possuía certificado de censura, o que dificultava a sua exibição.

Foto: Foto de divulgação do filme “A Luta em Busca do Amor”/Créditos: Adalberto Queiroz/Arquivo Pessoal

Um grupo de jovens que se reuniam por grupos da Igreja Católica, viam a realidade das lutas e embates que a população sofria, e por isso, queriam mostrar a situação de opressão através do cinema.

O professor Moreira disserta sobre: “Apesar disso, alguns filmes eram anunciados nos jornais, especialmente na coluna de Chico Pop. Produções como A Rozinha Aí do Sertão, Fracassou Meu Casamento e A Luta em Busca do Amor chegaram a ser divulgadas. No entanto, as exibições aconteciam principalmente em escolas, sempre com alguém de vigia na entrada, atento à possível chegada surpresa da Polícia Federal”.

O grupo inicialmente era composto por quatro jovens: Antônio Evangelista de Araújo, Raimundo Ferreira, Ozenira Brito e João Batista de Assunção Marques, que no seu tempo livre, começaram a criar novelas radiofônicas. Já em 1973, eles criaram efetivamente o Grupo ECAJA FILMES, que significa Estúdio Cinematográfico Amador de Jovens Acreanos. 

Plateia comparecendo à noite de abertura do Festival de Cinema Pachamama, em dezembro de 2024/Créditos: Hannah Lydia

Apesar da paixão pela arte, os jovens enfrentavam dificuldades, já que tinham poucos recursos financeiros e produzir cinema no Acre não era barato. Um empecilho era também a própria censura da ditadura, que chegou a apreender o primeiro filme produzido por eles. Em entrevista ao historiador para a dissertação  “Acre (anos) de Cinema”: uma história quadro-a-quadro de jovens cineastas acreanos (1972-1982)”, João Batista relatou o ocorrido: 

Então fizemos o filme. Aí fomos exibir em Brasiléia, no dia 03 de julho de 1973, era aniversário de Brasiléia. […] Quando chegamos lá, aí exibimos o filme e muita gente, a cidade toda tava assistindo. Era coisa de cinco, seis mil pessoas. Quer dizer colocamos uma tela bem alta em cima de uma mesa, colocamos o banco lá […] aí toda a população assistindo foi uma maravilha […] daí outro dia pegamos o carro de volta e a Polícia Federal fez uma abordagem na estrada e perguntou de quem era o filme e tudo. Nós dissemos, ‘o filme é nosso. – cadê o certificado de censura?- Cadê o registro não sei do quê? – Cadê isso?- Cadê aquilo?’ Não tinha nada. O resultado: prenderam o filme que ficou dez anos no Departamento de Polícia Federal preso.”

Um Deserto Particular

Como explicado pelo historiador, não houve uma censura direta que impedisse a realização dos filmes, mas um clima de censura que limitava a exibição. O único filme que foi alvo direto da repressão foi “Fracassou Meu Casamento”, o primeiro filme do ECAJA. Após esse episódio, os membros passaram a ser mais cautelosos com suas produções.

“Outros grupos de cinema no estado também adotaram precauções em relação ao que era exibido, embora festivais de cinema fossem promovidos pelo Sesc. Assim, a censura ao cinema no Acre foi mais indireta do que explícita. No entanto, em outras formas de expressão artística, como o teatro, a repressão foi mais severa. As peças teatrais, por exemplo, precisavam ser submetidas previamente à avaliação dos censores antes de serem autorizadas para exibição. Já o cinema, por ser uma produção mais amadora e sem um sistema formal de distribuição, não sofria o mesmo nível de vigilância direta sobre sua produção”, exemplifica Moreira.

Trecho do filme “Noites Alienígenas”, dirigido por Sérgio de Carvalho/Créditos: Saci Filmes e Vitrine Filmes

O professor finaliza reafirmando que, por meio de cineastas como Sérgio de Carvalho – que em 2022, recebeu 5 prêmios no Festival de Gramado pelo filme “Noites Alienígenas” -, Silvio Margarido, Rose Farias e tantos outros que estão produzindo graças a leis de incentivo cultural como a Paulo Gustavo, o cinema acreano continua acontecendo:

“O cinema, ele é uma memória. É uma das formas de memória afetiva, essa memória visual”, finaliza.

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