Histórias de vida

Uma vida entre fitas cassetes e DVDs

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Tonivan carrega a paixão pelo cinema há mais de 50 anos. Pioneiro, trabalhou em filmes como “Rosinha, a rainha do sertão

Por Amanda Silva e Francisca Samiele

Rodeado por fitas cassetes e DVDs, no silêncio da Filmoteca Acreana, Antônio Evangelista, mais conhecido como Tonivan, relembra uma trajetória que se confunde com a história do cinema no Acre.  Uma paixão que teve início na adolescência quando começou a ler as revistas da mãe e fez dele ator, produtor e diretor. 

Seu entusiasmo cresceu ainda mais ao fazer visitas à Rádio Difusora Acreana, em 1970, pois gostava de acompanhar de perto tudo o que acontecia nos bastidores onde viu, pela primeira vez, um rolo de gravação de áudio. “Eu ficava impressionado com aquilo”, recorda.

Nomes como Adalberto Queiroz e João Batista, o Teixeirinha do Acre, tornaram-se parceiros. Além da paixão pela sétima arte, dividiram com ele o rolo de gravação de alguns dos primeiros filmes gravados no estado. “Rosinha, a rainha do sertão” (1974) chegou a ser apresentado no 11º Festival do Cinema Brasileiro, evento realizado em Brasília. A obra se destacou em grandes jornais como Correio Braziliense e Folha de São Paulo, chegando inclusive a Londres. 

Na década de 1970, a estação de Rádio Difusora já transmitia as novelas radiofônicas. Os enredos eram histórias enviadas pelos ouvintes e, com isso, eram criados os personagens e todo o roteiro. Tonivan, entonando a voz no “estilo radialista”, envolta de nostalgia, recorda como eram feitos os pedidos: “Histórias amigas, histórias pungentes extraídas da vida real. Se você tem algum problema, nos escreva contando a sua história, nós a radiofonizamos e enviaremos nossas palavras amigas. Hoje, vamos atender a ouvinte que nos escreveu a sua história”.

As radionovelas deixavam Antônio Evangelista encantado. Naquele momento, decidiu que era aquilo que queria para sua vida. Insistiu até seu pai lhe comprar um gravador portátil de rolo que encontrou à venda. “Era quase o mesmo da rádio, só que era menor”, diz.

Não demorou muito para surgir a primeira oportunidade. A Rádio Difusora estava precisando de ator para as radionovelas,  Tonivan assumiu a vaga, dando início à carreira de ator, mas em determinado momento foi informado que as radionovelas iam parar, o responsável pelas histórias viajaria. Desde então, tentou gravar a própria novela, mas a falta de estrutura e equipamentos adequados frustrou o trabalho.

Antônio Evangelista. Foto: Amanda Silva /Francisca Samiele

O início do cinema e seus desafios

Tonivan enfrentou muitos desafios pessoais. Além da ditadura, o pai não o apoiava sobre a ideia de investir no cinema. Tentava desencorajá-lo ao afirmar que cinema não dava futuro. O sonho do pai era que o filho assumisse os negócios da família. Mas sua mãe, que acreditava que poderia dar certo, o incentivava a continuar.

Em um dos encontros em sua casa onde o grupo se juntava para os ensaios das radionovelas, Teixeirinha chega e lhe dá uma boa notícia: “rapaz, nós deveríamos fazer cinema no Acre”. Surpreso, ele achou ser mais uma das brincadeiras do amigo, mas quando se deu conta que falava sério, disse incrédulo: “onde é que nós vamos fazer cinema no Acre?”, querendo dizer que em um estado com pouca estrutura não teria essa possibilidade. 

Teixerinha continuou: “fui na Joalheria Medeiros e descobri uma filmadora super 8 milímetros, ele nos empresta desde que a gente vá comprar os filmes virgens lá”. A partir daí os primeiros filmes começaram a surgir.

O amigo, empolgado, logo escreveu a primeira história que levou o nome de “Fracassou Meu Casamento”, em 1972. Tonivan atuou como coadjuvante, mas conta que o primeiro filme não deu muito certo, mas a experiência serviu para aprender a fazer filmagem.

Infelizmente, por conta da ditadura, o primeiro filme e o projetor foram apreendidos pela Polícia Federal, à época era preciso ter uma empresa registrada com CNPJ e licenciamento. “A gente tinha um cuidado, muito cuidado de não falar nada que ofendesse a ditadura”, recorda. Mas o ocorrido foi inevitável.  

Em março de 1973, os jovens amadores fundaram oficialmente o ECAJA- Estúdio Cinematográfico Amador de Jovens Acreanos, a primeira equipe de produção audiovisual do estado. O segundo filme, “Rosinha, a rainha do sertão” (1974), foi filmado com uma câmera de 8 milímetros. A produção foi bem-sucedida e passou a ser reproduzida nos municípios próximos a Rio Branco. 

Outros filmes foram produzidos pelo grupo e, ao ser indagado sobre seu filme favorito, sorrindo, diz que é “Uma realidade em conflito”,  lançado em 1979. A obra conta a história de um acreano ‘pé no chão’ que acerta na loteria e investe no próprio estado. Ele justifica seu favoritismo pois além de diretor e galã, no enredo declarava seu desejo de desenvolvimento para o Acre.

Foto: Amanda Silva /Francisca Samiele

O cinema nos municípios

A televisão ainda não havia chegado ao Acre, mas Tonivan e seu grupo passaram a levar “Rosinha, a rainha do sertão” ao interior e fazer a alegria das comunidades, pois isso o cinema era algo, à época, inacessível às famílias.

No início, eles próprios saiam de porta em porta convidando as pessoas para assistirem. Após um tempo, já com certa fama, quando o grupo chegava nas cidades era recebido como celebridades. Quando eramos vistos chegando nos lugares as pessoas já gritavam: “ei, tem cinema hoje?”. Quando a resposta era positiva os próprios cidadãos passavam nas casas chamando todo mundo.

As projeções improvisadas eram feitas na Escola Franklin Roosevelt, no município de Plácido de Castro, aos sábados e domingos. Eram duas projeções por dia, dependendo do filme, porque lotava e a sala era pequena. O valor do ingresso era algo simbólico. Ele menciona que sempre se sentiu realizado em ver a alegria das pessoas ao ter acesso a algo tão importante.

Certo dia, durante uma das sessões, Adalberto grita: “Para! Para! Para! cancela tudo, a Polícia Federal! Passa tudo pela janela para eles não verem!’’. Com medo de uma nova apreensão, todas às vezes que tinha cinema alguém ficava observando se a viatura da polícia se aproximava. E ficou assim até o regime militar acabar, pois não eram permitidas reuniões sem autorização. 

Quando acabou a ditadura, Geraldo Mesquita, então governador do Acre, deu oportunidade ao cinema. Em março de 1983 foi oficializada a Filmoteca Acreana, localizada no prédio da Biblioteca Pública e onde desde a criação Antônio Evangelista trabalha.

Diretor do local, diz que não consegue se ver longe do cinema, uma paixão que faz seu coração bater mais forte. A Filmoteca se tornou seu palácio. Ele confessa que já recusou uma proposta de emprego e que hoje poderia estar formado em Direito, mas fala com orgulho que não se arrepende.

Tonivan ainda nutre o sonho de revelar todo o potencial do Acre por meio de uma obra totalmente local. “Eu queria fazer um filme para mostrar que a gente tem condições de fazer um filme, não é?”

Apesar da repressão política e as barreiras pessoais, sua contribuição para o cinema acreano foi significativa, até mesmo para a formação da identidade cultural local. Antônio Evangelista diz a seguinte frase: “A cultura prepara para um mundo melhor, e o Acre começou a mudar também”.

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