Histórias de vida

Uma vida entre rios

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Por Sarah Helena e Tácila Matos

No bairro Tucumã, entre dois dos 11 filhos, mora a grandiosa matriarca de 1,50 cm da família Brito. Ela leva uma vida tranquila e sossegada, aproveita a idade avançada para fazer o que gosta: cuidar de suas tão queridas plantas, ir à igreja cultivar sua fé e desfrutar da família que tanto ama. Hoje, é grata pela paz e estabilidade de sua vida, mas quem vê essa senhorinha tão calada e serena não imagina todas as dificuldades que ela já viveu e superou.

Essa é Helena Soares de Brito, ou melhor, Dona Irene, como é chamada desde pequena e conhecida por todos; mas ao ser perguntada sobre o mistério dos dois nomes, ela diz “Meu bem, aí é uma resposta que eu não sei nem responder”. Mas com certeza esse nome lhe serve bem, visto que Irene, do Grego, significa “a Pacificadora”, encaixando muitíssimo com sua personalidade calma e singela.

A Trajetória – Do Rio Irú a Rio Branco

Ela nasceu em uma comunidade às margens do Rio Irú, próximo a cidade de Eirunepé, no Amazonas, no ano de 1936. E aí começou a trajetória de adversidades da pequena Irene. Apesar de ser relutante em se abrir sobre a infância, ela afirma em voz baixa, quase que num sussurro, que o início de sua vida foi muito difícil. “Perdi meu pai muito cedo”, por volta dos cinco anos de idade, diz. E emociona-se por não ter memórias com ele. Pouco tempo depois, a mãe, chamada Francisca Soares de Lima, casou-se novamente, levando Irene e suas irmãs, Regina e Maria, para morar no Seringal Aurora, no Vale do Juruá, agora adentrando o estado do Acre.

Desde muito pequena aprendeu a trabalhar em roçados para ajudar a família, mesmo assim, a mãe encontrava dificuldades para criar as três filhas. Então, aos 8 anos de idade, Irene e suas irmãs mudaram-se e foram morar com famílias distintas, por decisão da mãe. Situação comum para a época, na qual os pais “davam” os filhos para serem criados por outras pessoas, devido à difícil situação financeira. 

Assim, Irene seguiu o fluxo do Rio Juruá, chegando ao Seringal Três Bocas, onde morou com Francisco Regino de Brito e Idalina Mendes Guimarães, donos do local, e seus filhos, durante o restante de sua infância e toda a adolescência. Dentre os 11 filhos do casal, Rui Guimarães de Brito foi escolhido para casar-se com Irene, com quem construiu sua família.

Quando se casou com Rui, ele era dono da chamada Colocação das Gaivotas, ou seja, uma propriedade dentro do Seringal Três Bocas, que pertencia a seu pai. Dessa forma, lá estabeleceram-se: Rui, sendo o patrão dos negócios de extração da seringa e produção da borracha, e Irene, continuando com o trabalho no roçado e criação de animais. O casal teve ao todo 13 filhos, mas dois faleceram ainda durante a infância.

Dona Irene sempre manteve uma grande preocupação sobre o futuro dos seus filhos, queria que estudassem e adquirissem uma educação para terem a possibilidade de uma vida melhor, tendo em vista toda a dificuldade que passou durante a infância no seringal. Mas sua apreensão era voltada de modo especial às filhas: “eu dizia pras meninas, pra elas estudarem pra nunca serem dependentes de marido, porque não é todo marido que quer dividir o dinheiro dele com a mulher”.

Portanto, tomou a decisão de mandar os filhos para Cruzeiro do Sul, cidade do Alto Juruá, no Acre, para que estudassem e, assim, pudessem conquistar uma vida melhor e mais estável. Quem a apoiou durante esse processo foi o cunhado Romeu e sua esposa Magali, que tinham estabilidade e já moravam na cidade. Assim, a primeira filha levada foi Hilma, a mais velha, aos sete anos de idade. E aos poucos, um por um, os demais filhos também mudaram-se para a casa dos tios a fim de começar os estudos. Eles retornavam apenas nas férias.

Quando, enfim, restavam apenas os caçulas, Irene tomou a decisão de também sair do Seringal e acompanhar os filhos na cidade. Apoiada novamente por Romeu, ela partiu com as crianças de navio, enquanto Rui permaneceu na Colocação das Gaivotas para conseguir recursos para construir uma casa na nova morada.

Em Cruzeiro do Sul, trabalhou como costureira, ofício que aprendeu ainda criança fazendo roupas para suas bonecas, além da permanência no roçado. E dessa forma ajudou no sustento da família. Logo mais, seus filhos, já maiores, começaram a trabalhar como babá, em construções, vendendo comidas, etc.

Apesar das diversas dificuldades que passou na vida, ela se sente muito feliz de ver todos seus filhos bem. E afirma que o que a manteve “de pé” durante sua trajetória difícil foi a fé.

”Eu vi Nossa Senhora”

Por volta dos 12 anos, Irene foi morar com uma das filhas de Francisco Regino e Idalina, Riselda,que casou-se e saiu do “barracão” onde a família vivia para morar com o marido em uma casa pequena, de apenas um cômodo, que ficava mais distante da instalação principal. O marido de Riselda acordava todas as madrugadas para tomar café e a jovem devia se levantar mais cedo para fazê-lo. 

Numa madrugada, como de costume, levantou-se, acendeu o fogo, fez o café e depois que o cunhado havia bebido, ele voltou a deitar-se,  apagou o fogo e voltou para sua rede. De repente, uma luz intensa clareou a casa inteira, Irene olhou e viu uma mulher em pé ao lado de sua rede olhando para ela, vestida com um vestido branco e um manto azul. Imediatamente a jovem a reconheceu como Nossa Senhora das Graças. 

“Eu não fiquei com medo”, ela diz sobre a aparição, experiência que só intensificou sua fé. Em cada um de seus trabalhos de parto, ela pedia as bênçãos de Nossa Senhora para lhe ajudar, numa época onde não havia qualquer acompanhamento médico para gestantes.

Vivendo o sonho

Dona Irene, depois de ver seus filhos terminando o colegial, viu-os também, um por um, deixarem a cidade de Cruzeiro do Sul e chegarem à Rio Branco em busca de ensino superior. Aos poucos, foram formando suas próprias famílias e se estabeleceram na capital. Dessa forma, a mãe não via mais sentido em permanecer no interior, longe dos filhos e enfim chegou à Rio Branco.

Aos poucos a família cresceu, foram chegando cada vez mais netos e bisnetos. Hoje, a senhorinha de 88 anos leva uma vida muito feliz, rodeada pela família e afirma que seu sonho foi concedido. “Quando eu morava no seringal, o que eu mais pedia era sair de lá e ter uma velhice sossegada”, desejo que, enfim, conquistou.

Dona Irene, Rui e os 11 filhos, 2012. Foto: Arquivo Pessoal

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