Histórias de vida

Os lobos estão dentro de casa

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A juventude brasileira, em especial a amazônida, está vulnerável à violência sexual; educação pode ser uma opção para protegê-las

 Por William Liberato   

Quem não conhece o lobo mau? Horror das histórias infantis. Criatura astuta e traiçoeira, faz sempre maldades contra nossos queridos heróis. Atazanou os pobres porquinhos que buscavam descansar ou a esperta e brincalhona Chapeuzinho Vermelho, devorada após ser enganada pelo lobo vestido de vovó. O personagem aterrorizante dos contos de fadas parece não estar só nas páginas dos livros, mas também na vida real.   

Tanto a história dos Três Porquinhos quanto a da Chapeuzinho, o enredo, mesmo que diferente, traz características comuns. Os heróis tinham missões, como construir um lar ou deixar doces para sua avó, e ambos sofreram nas mãos, no caso, nas garras do lobo mau. O fim vocês já conhecem, é um final feliz.    

Diferente dos contos europeus que escutam e leem nas escolas, a juventude brasileira precisa conviver com seus horrores diariamente e, em muitos momentos, em silêncio. Não há casa de tijolos ou caçador para salvá-los. Estão vulneráveis a violência sexual, como aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023. Em 2022, mais de 73 mil casos de estupro foram notificados, desses, mais de 56 mil casos eram somente de vulneráveis, vítimas menores de 14 anos ou que apresentavam alguma deficiência ou enfermidade e não poderiam consentir o ato sexual. O cenário é ainda mais preocupante quando observado a idade das vítimas, 61,4% de todos os estupros cometidos no Brasil foram contra menores de 13 anos.    

A situação é crítica também na Amazônia Legal, com quatro dos seus nove estados na lista dos mais altos índices de estupro de vulnerável por 100 mil/habitantes. São eles: Roraima (87,1), Amapá (64,5), Tocantins (56,2) e Acre (67,1). A juventude amazônida corre perigo, em especial a acreana, que de 2021 para 2022 registrou um aumento de 22,3% no número de casos.  

Quem são os lobos da vida real?  

Os abusadores sexuais não são psicopatas, tarados que encontramos na rua, são pessoas comuns, de todos os níveis socioeconômicos e religiões. Predominantemente homens, heterossexuais, possuidor de alguma posição de autoridade ou poder perante um, ou mais, menores e na maior parcela das vezes convive com a criança ou o adolescente no dia a dia. Segundo o Anuário de segurança pública, 71,5% dos crimes sexuais cometidos contra vulneráveis é por algum familiar.    

E não caia no mito que os perigos estão, exclusivamente, nas ruas. A residência continua sendo o local mais perigoso para nossa juventude, pois é onde ocorre 72,5% dos casos. Os autores na maioria das vezes são: pais ou padrastos, 44,4%; tios, 7,7%; avós, 7,4%; primos, 3,8%; irmãos, 3,4%; e por outros familiares, 4,8%. A violência sexual extrafamiliar, a cometida por desconhecidos, representa 12,8% dos crimes, número elevado, mas significativamente inferior aos ocorridos no seio familiar.   

Outro dado importante de evidenciar são os horários do crime, há uma preponderância de estupros diurnos quando a vítima é menor de 13 anos, 65% dos casos que envolvem essa faixa etária foram cometidos entre 06h e 18h, enquanto maiores de 14 anos são abusadas predominantemente no período noturno, 53,3%. 

Na região amazônica, em especial, o estado do Acre, a situação alerta para mais um risco, os cônjuges e namorados. Um estudo, de pesquisadores do Centro universitário Uninorte e da Universidade Federal do Acre (Ufac), apontou que em 2019, 53,5% das mulheres violentadas no Acre, na faixa etária de 10 a 19 anos, foram abusadas por seus namorados, 29%; e por seus cônjuges, 24,5%. Os dados ajudam a ilustrar a situação das crianças e jovens do Acre e da Amazônia, que sofrem com o casamento infantil. Atitude absurda e incompreensível, mas uma realidade no Brasil, 4º lugar no ranking de casamentos infantis no mundo.

Pistas escondidas: desenhos podem ser uma ferramenta para crianças denunciarem violências e abusos. Foto: William Liberato

Perfil das Vítimas

Volto à literatura para pensar o perfil de crianças e adolescentes abusadas, Chapeuzinho Vermelho, a garota devorada do conto medieval, poderia compor esse cenário trágico. Meninas como ela, menores de 13 anos, são as principais vítimas de violência sexual. Em 2022, 86% de todos os estupros de vulneráveis ocorridos no Brasil foi contra jovens do sexo feminino. A maioria negra (56,2%) e com 10 a 13 anos (58%). Esse é o retrato de nossas meninas.   

Mesmo em menor número, vale salientar os estupros cometidos contra meninos. Eles representam 14% do número de casos. As vítimas do sexo masculino, diferentemente das meninas, são violentados numa faixa etária menor, entre 5 e 9 anos (43,4%). 

Também destaco o perfil das vítimas acreanas. Em 2019, 55,2% de todos os estupros cometidos no estado foram contra meninas de 10 a 14 anos, assemelhando-se ao resto do país. Além disso, as menores do Acre são majoritariamente pardas (83,8%) e contam com o ensino fundamental completo (64%).   

A situação, que é alarmante, poderia estar sendo combatida, porém, segundo a reportagem do site “Gênero e Número”, de 2022, o Acre conta somente com diretrizes para trabalhar, em sala de aula, à violência doméstica, tema sério e de necessária discussão. Mas, me parece pouco, para um estado com aumento expressivo no número de casos de abusos.

PL n.14/2023  

Os deputados da Assembleia Legislativa do Acre (Aleac), de maioria conservadora, fizeram um movimento histórico pela segurança de nossos jovens e adolescentes. Em 12 de abril de 2023, aprovaram o projeto de lei n.14/2023, que criava diretrizes para escolas estaduais atuarem na defesa dos menores, com ações e políticas de saúde sexual e reprodutiva. Mas, bastou a “canetada” da governadora em exercício, Mailza Assis (PP), para que a lei fosse engavetada. Uma política que poderia corroborar com ações já realizadas, foi vetada.   

A vice-governadora demonstra que faz de tudo para não enfurecer seu eleitorado, de maioria evangélica. Uma personagem contraditória, mas habilidosa no jogo político. Uma semana depois do veto, realizou uma caminhada com centenas de pessoas nas ruas, com todas as pompas que o dinheiro público é capaz de pagar. Segundo a assessoria, o ato foi exclusivamente para promover a conscientização no Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Na oportunidade, houve muitos flashs e, infelizmente, poucas ações.   

Enquanto isso, projetos são lançados, campanhas veiculadas, palestras ministradas, porém, nada de modo integrado e duradouro. Atualmente, no Acre, a Coordenadoria da Infância e Juventude (CIJ), do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), realiza ações e projetos para prevenir e coibir o abuso e à exploração sexual de menores. O mais duradouro deles é o Eca na Comunidade, criado em 2011, que está na décima edição, e promove debates divulgando informações para os jovens e suas famílias. Ação imprescindível, todavia, pouco para dimensão do problema.  

Educação é parte da solução  

A sexualidade faz parte de todo e qualquer indivíduo. Não falar ou evitar, não faz nossa juventude mais segura, mas, sim, desinformada. A educação sexual é sempre tratada com muito alvoroço. Tolice. Trabalhar esse tema nas escolas assegura o autoconhecimento de nossas crianças e adolescentes, e oferece a eles a capacidade de identificar e buscar apoio em qualquer situação vexatória ou abusiva.  

Entretanto, a ignorância diante do tema e da errônea relação de sexualidade exclusivamente ao sexo, nutre parte dos educadores, pais, responsáveis e algumas instituições a terem uma visão deturpada do assunto, o que dificulta profundamente a promoção da educação integral da sexualidade.   

Além disso, os números assustadores de violência sexual contra menores não parece mobilizar os governantes a executar reformas significativas nas diretrizes curriculares de seus estados, já que apenas três no Brasil orientam suas escolas a tratarem sobre sexualidade. Assim, resiste nas salas de aula, entre os alunos, dúvidas, questionamentos e aflições que não podem ser sanadas adequadamente. Levando-os a buscar informações em espaços inadequados e perigosos, principalmente em aplicativos e bate-papos. 

O ambiente cibernético tem sido amplamente usado para praticar diversos tipos de delitos sexuais, como atentado violento ao pudor, coação sexual, chantagem, assédio, corrupção de menores e pornografia infantil. Crimes que não são novidade, mas que tomam nova dimensão com a popularização da internet e das redes sociais.  Diante dessa realidade, de fácil acesso as redes e aplicativos por nossas crianças e adolescentes, políticas de conscientização se fazem urgente, para coibir o estupro também virtual.  

Precisamos agir. Apoiar a discussão e a implementação da educação sexual nas escolas é fortalecer que nossas crianças e adolescentes tenham a capacidade de identificar e comunicar qualquer violência sofrida. É sonhar para eles um final feliz como os dos contos de fadas. 

Denuncie – disque 100 ou ligue 190  

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