Maria Santiago. Licenciada em Ciências Sociais pela UNIR, Coordenadora Estadual de Formação do Movimento Negro Unificado – MNU e Educadora Popular (Foto: Marcos Jorge Dias)
“Olha, esta negrinha, esta negrinha é mulher de Francesco. Ela é brasiliana e casou com meu filho”.
Com essas palavras Maria Santiago (60 anos) foi apresentada pela sogra italiana, aos familiares do marido.
Para quem nunca sentiu na pele a dor do preconceito racial, a ausência de direitos e a mercantilização de seu corpo e acha que o preconceito e o racismo são questões de um passado remoto, a história de uma mulher acreana, negra, vem nos mostrar que os resquícios da escravidão continuam presentes nos dias atuais.
Nascida no Seringal ôco do mundo, KM 86 da Br 364, sentido Rio Branco-Porto Velho, a história de Santi (assim chamada pelos amigos) em princípio não difere muito da história das meninas nascidas nas brenhas das matas dos seringais acreanos.
Independente da cor da pele, desde cedo elas são condicionadas a ajudar a mãe nos afazeres domésticos, algumas nem chegam a puberdade (entre os 8 e 13 anos de idade) e são “negociadas” com algum amigo ou conhecido do pai, sob o argumento de que já é hora de ter uma marido que a sustente. Santi queria fugir dessa pré-destinação histórica. Queria estudar! Mas no ôco do mundo não tinha escola. Então, por várias vezes tentou sair do Seringal para estudar na cidade, Rio Branco.
Santiago começa sua história contando que certa vez (durante as campanhas eleitorais), um homem de nome Manoel passou por lá e pediu ao pai dela que permitisse trazê-la para trabalhar como empregada doméstica na casa dele e que assim (ela) poderia estudar, pois havia uma escola próxima.
Maria Santiago: – “Era uma casa na Rua 6 de Agosto e, realmente, havia uma escola próxima. Mas, depois de uns seis meses trabalhando em troca de comida e moradia a família não me matriculou na escola. Um dia, enquanto eu varria o quintal vi passar na frente da casa uma pessoa conhecida e pedi para comunicar a minha mãe que eu estava querendo ir para casa.”
MJ: – Nesse ponto, a sua história me lembra o tráfico de escravos africanos trazidos para o Brasil no ínicio do Seculo XVI. Um sistema desumano que fez das pessoas negras a mercadoria que serviu de base à economia brasileira por mais de 300 anos.
Três dias depois a mãe chegou para levá-la. Contudo, a dona da casa, além de reclamar muito, alegou não ter com o que pagar. Então, encheu uma sacola com roupas usadas e entregou à mãe, como forma de pagamento. Voltando ao seringal Santiago não desistiu de seus sonhos.
Maria Santiago: – “A segunda vez que tentei vir estudar na cidade, fui trabalhar na casa de duas irmãs, médicas, que moravam na Avenida Getúlio Vargas. E lá foi a mesmo coisa: trabalhei por meses e nunca recebei 1 centavo. E eu não me dava conta por que essas coisas aconteciam com a gente.”
MJ: – Essa é uma situação que segundo a pesquisadora Raísa Alves da Silva Almeida(2021), “a Lei Áurea apenas mascarou a ausência de justiça social, pois não reparou às agressões sofridas, não garantiu direitos básico nem condições mínimas de sobrevivência às pessoas escravizadas” (Fonte: https://portal.unit.br)
Maria Santiago: – Mais uma vez retornei ao Seringal. Naquele tempo a BR 364 já tinha sido aberta no trecho Rio Branco-Porto Velho e a Igreja católica estava chegando com as Comunidades Eclesiais de base, os CEB’s.
Aí tinha o Padre José… foi quando conheci o Nilson Mourão, o João Maia, o Abrahim Farhat, qua andavam por ali fazendo reunião para organizar a Confederação dos Trabalhadores em Agricultura – CONTAG e fazendo o enfrentamento aos chamados paulistas que estavam chegando para ocupar os seringais e transformar em fazenda. Foi nesse tempo, também, que conheci a irmã Fábia, uma pessoa muito atuante, muito ativa e em quem eu me inspirei. Eu queria ser igual a ela”.
Através da irmã Fábia eu vim morar na casa das irmãs, na casa madre Elisa, que é ali no segundo distrito, no Colégio Imacualada Conceição. Eu morei três anos e sete meses com elas. Ai eu entrei no convento, semi-analfabeta, porque eu tinha estuda muito pouco (uns seis meses) numa escolinha que tinha sido aberta lá (no seringal) mas tive de sair por conta da idade que não permitia mais.
Na casa das irmãs eu conclui a 5ª série no Colégio Imaculada e depois eu fui fazer o supletivo, que na época era transmitido pelo rádio. Depois fui fazer educação integrada, que eram os programas que tinha. Foi onde eu realmente fui aprender a ler. Esse período em que eu morei com as iramãs foi um período muito bacana, eu aprendi muitas coisas. Depois eu saí e entrei no Movimento Sindical Rural aqui. Isso foi mais ou menos em 1985, 86.
Mais uma mudança, novos desafios.
Com os olhos enevoados pelas lembranças, Santiago segue narrando sua trajetória de vida.
Em 1988, vai morar na cidade de Ji-Paraná no estado de Rondônia e lá chegando entra “de cabeça” no Movimento sindical e no Movimento Negro, passando também pelo Movimento de mulheres.
Em dezembro de 1989, já estava na direção Nacional da Central Única dos Trabalhadores – CUT, onde assumiu a Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras rurais. Nesse trabalho ficou por mais de sete anos e foi onde teve a oportunidade de discutir e realizar várias pautas de suma importância: primeiro o reconhecimento do trabalho rural feminino enquanto profissão; salário maternidade; documentação; o direito à terra e a aposentadoria. Até então, a mulher trabalhadora rural não tinha direito a aposentadoria. Quando o marido morria elas recebiam uma ajuda que se chamava “fundo rural”. Maria Santiago: – Foi um período de muita luta, muitas ações. A gente fazia várias caravanas de todos os Estados para as mulheres irem para Brasília e ficávamos acampadas lá no Estádio Mané Garrincha, às vezes uma, duas semanas e até mais, para reivindicar nossos direitos. Hoje, olhando para trás eu vejo o tanto que conquistamos. Além do que já falei, as trabalhadoras rurais hoje tem direito à terra, a financiamentos,
O racismo familiar estrutural
MJ: – Nessa sua trajetória, em quais momentos você sentiu na pele o preconceito, o racismo e recorreu ao Estado ou a alguma instituição de defesa de Direitos Humanos?
Maria Santiago: – Eu não tinha consciência que esses problemas que eu enfrentei estavam vinculados a uma prática de racismo. Hoje eu tenho. Hoje eu percebo de longe quando vejo uma menina ou qualquer pessoa que esteja em situação degradante de trabalho, eu percebo, que tem a questão da exploração e que ela vem sempre casada com a prática do racismo.
E essas coisas, a gente só vai percebendo quando você vai tomando consciência de quem você é nessa sociedade. Foi a partir daí que eu tomei consciência de que eu era uma pessoa negra, uma mulher negra, uma menina que veio de família pobre, com muitas dificuldades e aí foi quando eu comecei a perceber.
Assim… tem muitas coisas que quando a gente não percebe, não são tão doloridas. Mas quando a gente toma conhecimento, elas batem muito forte, como uma chicotada. Eu lembro que quando casei, meu ex-marido é um italiano e a família dele é toda do Sul. Então, a primeira vez que eu fui ao Sul foi em 1989. A gente casou em dezembro e em janeiro viajamos, fomos lá para conhecer a família dele. Aí, a mãe dele me apresentava desse jeito: “Olha, esta negrinha, esta negrinha é mulher de Francesco. Ela é brasiliana e casou com meu filho”.Eu percebia que havia ali preoconceito e racismo. Foi muito conflituoso e revoltante para mim ser apresentada para a família dessa forma.
Outra situação de preconceito foi relação aos colares que eu usava há época. Esses colares índígenas da nossa região. Eles tinham muito preconceito com os colares. Havia uma cunhada dele que dizia que quando eu entrei na casa dela o meu colar tinha espatifado e as coisas tinham quebrado. E, isso nunca aconteceu. Ela me associava a uma macaumbeira, com as religiões de matriz africana e porque eu usava meu cabelo com tranças rastafary. Foi um período muito difícil para mim.
Mesmo depois que “a negrinha”, mulher de Francesco, teve a oportunidade de viajar e conhecer a Itália (coisa que alguns deles nunca puderam fazer), quando voltei, eu era maior motivo de orgulho da família, porque tinha conhecido a Itália. Com o tempo foram sumindo as palavras, mas a resistência e os preconceitos eu percebia que continuavam camuflados.
MJ: – Hoje, enquanto Coordenadora Estadual de Formação do MNU e Educadora Popular, que transita nos chamados “espaços de poder” que são tipicamente masculinos, principalmnete na política, você sente que há resistência ao seu perfil ?
Maria Santiago: – Quanto a isso a gente tem duas questões muito bem definidas: Primeiro é questão de ser mulher e ocupar os espaços de poder. Isso é uma dificuldade para todas as mulheres. Agora, em se tratando da mulher negra isso é pior.
Por exemplo, eu que sempre estive na Política, as pessoas olham para mim e costumam dizer: “ah, ela sabe falar de política e tal”, mas nunca me vê como um profissional, como uma socióloga, uma pessoa que tem capacidade de fazer várias outras coisas. É difícil ter de estar todo o tempo provando para as pessoas do que você é capaz.
Além de ser uma das grandes dificuldades, isso é colocado como um diferencial para você estar ocupando esses espaços de poder. As vezes o que te dá a possibilidade de ocupar um espaço de poder é um belo de um currículo e de modo geral as pessoas não vêm isso e você acaba ficando sempre nos bastidores da política. Essa é a realidade dos espaços de poder.
Assim, para finalizar, não posso deixa de fazer aqui uma referência a ativista pelos direitos dos negros e das mulheres, a americana Angela Davis:
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”
*A Lei Nº 1.390, de 3 de julho de 1951, que leva o nome do seu autor (Deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco), é um marco na trajetória das lutas da população negra no enfrentamento ao racismo, à discriminação e na conquista de Direitos individuais e coletivos.(Fonte: https://www.gov.br/palmares)