Os desdobramentos que ocorreram em todo o mundo desde a classificação de pandemia feita pela OMS ao vírus que ninguém conhecia, fizeram com que problemas sociais, como a falta d’água para lavar as mãos, ficassem cada vez mais visíveis. No entanto, outros empecilhos pós-descoberta da vacina, como dificuldade de imunização em massa e ocultação dos reais números também emergiram em todos os continentes.
Por Maria Fernanda Arival e Renato Menezes
É inegável que a Covid-19 mudou drasticamente a maneira a que o mundo se comportava antes do dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a doença no grau de “pandemia”. O vírus, até então desconhecido aos olhos da ciência e da sociedade em geral, se espalhou rapidamente pelo planeta, não deixando ninguém ileso frente aos impactos de uma doença que isolou, atingiu e matou milhões de pessoas.
O primeiro caso do novo coronavírus no Brasil foi identificado em 26 de fevereiro de 2020, quarta-feira de cinzas, um dia após o término do Carnaval, festival de rua mais famoso do planeta. Naquele momento, a mídia se dividia entre a apuração das escolas de samba e aquela descoberta de uma doença em um homem de São Paulo que havia viajado para a Itália, doença esta que já acometia centenas de pessoas na Europa e milhares na Ásia.
Como a chamada “transmissão comunitária” ainda não havia sido declarada, o país encarava aquela manchete como um vírus qualquer, mesmo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarando, no dia 03 de fevereiro, a Covid-19 como uma emergência de saúde pública a nível global.
O vírus, que parecia impossível sair de Wuhan, na China, e vir parar no outro lado do hemisfério em tão pouco tempo, teve sua primeira vítima em solo brasileiro em 17 de março daquele mesmo ano: um homem de 62 anos hipertenso e diabético. Naquele instante, o país mais populoso do mundo já deixaria de ser o epicentro do coronavírus, tendo em vista a fase turbulenta que vivenciaram ainda em 2019, quando acreditavam se tratar apenas de uma epidemia. Já a média móvel de infectados na Itália, por sua vez, que já havia se tornado o novo epicentro no mundo – e não somente na Europa, como era antes –, estava em 3,051.00, enquanto no Brasil, a média móvel de casos confirmados era de 41,43, um número aproximadamente 74 vezes menor que os registros feitos pela Itália, que tivera seu sistema de saúde colapsado devido ao aumento repentino, desenfreado e avassalador.
A situação só piorava no país em questão. No mesmo dia em que o Brasil notificou a primeira morte, a Itália já registrava média móvel de 267.43 mortes diárias. A partir de então, a população passava a se preocupar, afinal, a Itália fica mais “próxima” das terras tupiniquins, logo, imaginaram-se um fluxo maior de brasileiros em comparação com Wuhan, que naquele momento já havia passado pelo pico de infestação. Não demorou muito: tudo começou a fechar. Escolas, bares, restaurantes, universidades e absolutamente tudo que, a princípio, não se encaixaria como “serviço essencial”, acabaram fechando as portas para tentar conter o avanço e, quem sabe, não correr o risco de colapsar o Sistema Único de Saúde (SUS), que não estava preparado para a pandemia.
Ter que lidar – no sentido de assimilar que a pandemia já estava saindo do controle – com aquele novo fenômeno que invadiu o Brasil já começou a se tornar realidade a partir do momento em que a curva do número de mortes foi crescendo exponencialmente até ultrapassar a Itália, que detinha o maior registro de óbitos entre todos os países. No dia 29 de abril de 2020, a média móvel de mortes por Covid-19 marcava 372.43, enquanto a Itália ficava um pouco mais atrás, com 371. A tendência de crescimento se concretizou. Enquanto o Brasil marcava 1.095 em 25 de julho, a Itália registrava 8.97 no mesmo dia.
No entanto, mesmo cientes da situação, o Brasil não imaginaria que o pior estaria por vir: média móvel de 3 mil mortes diárias, recorde este marcado no dia 01 de abril de 2021 – ironicamente, o dia da mentira.
Além do atraso na compra das vacinas emergenciais que, na época, já vinham sendo aplicadas em outros países – inclusive na Itália que, no mesmo dia em que o Brasil registrou recorde de mortes, já havia imunizado mais de 12% da população, correspondentes a mais de 7,4 milhões de pessoas –, uma série de problemas estruturais brasileiros que vinham ocorrendo desde muito antes da pandemia se assomaram para que o maior país da América Latina se estabelecesse em segundo lugar com o maior número de vítimas da pandemia, com 623 mil mortos, atrás apenas dos Estados Unidos com 864 mil.
SANEAMENTO BÁSICO
Um dos problemas que mais aflige o Brasil e que contribuiu para que a pandemia fosse ainda mais grave no país foi a questão do saneamento básico, direito este previsto na Constituição de 1988, mais precisamente no inciso XX do artigo 21, que argumenta que a União deve “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”. Além disso, o artigo 23, inciso IX também afirma que a melhoria das condições de saneamento básico é de competência de todas as esferas, sendo estas União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Uma pesquisa feita por integrantes da Sala Técnica de Saneamento, composta por 250 profissionais da área de saneamento, constatou que a falta de saneamento básico contribui para a proliferação do vírus. Para chegar a esta conclusão, os estudiosos utilizaram como base os levantamentos feitos em 2009 que, por meio da identificação de um vírus semelhante ao SarsCoV-2, entenderam que o vírus causador da Covid-19 pode, sim, permanecer em águas naturais e no esgoto por mais de 10 dias, além da possibilidade de contaminação por meio de gotículas (aerossóis) provenientes do esgoto infectado.
“Dispor o esgoto sem o adequado tratamento degrada a qualidade das águas receptoras, causando impacto na saúde da população, além de comprometer os usos a jusante, como abastecimento humano, balneabilidade, irrigação, dentre outros”, diz o relatório.
ACESSO
Que o saneamento básico é crucial para a manutenção da qualidade de vida e, consequentemente, da saúde, isto é fato. No entanto, embora seja uma necessidade básica garantida em lei, na prática a realidade é outra. Segundo o Ranking do Saneamento Básico do Instituto Trata Brasil, pelo menos 35 milhões de pessoas não têm acesso à água potável e pior ainda, mais de 100 milhões de brasileiros sem coleta de esgotos. Ou seja, quase 50% da população brasileira está sujeita a contrair doenças como diarreia, leptospirose, malária e até a própria covid-19.
Falando ainda do referido ranking, Rio Branco, capital do Acre, está em 92ª colocação quando o assunto é saneamento básico como um todo. A cidade mais populosa do estado, que comporta mais de 400 mil pessoas e que, consequentemente, está entre as cem cidades mais populosas do Brasil, tem um dos piores indicadores do atendimento total de água, atingindo apenas 54,26% dos rio branquenses. Com relação ao atendimento total de esgoto, o percentual cai para 21,65%.
O que mais chama atenção neste relatório é o montante investido nos serviços de distribuição de água e tratamento de esgoto. Nos últimos cinco anos, R$70,17 milhões foram aplicados nestes serviços na capital, com investimento médio de pouco mais de R$34 por habitante. Por outro lado, R$125,82 milhões foram arrecadados. No que tange à região Norte, apenas Santarém, Belém e Ananindeua – todos estes no Pará –, Porto Velho (RO) e Macapá (AP) estão abaixo do estado no ranking.
ÁGUA E ESGOTO
Tais dados geram preocupação pois com a pandemia de Covid-19 e com a consequente necessidade de se cumprir a quarentena, ficou evidente a necessidade de fornecimento de água para higienização das mãos e consumo humano, além de um adequado tratamento de esgoto para evitar que outras doenças, tão graves quanto a Covid, voltassem à tona. Uma nota técnica do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) publicada em 2020 mostrou que dos 100 milhões sem esgoto adequado, quase 22 milhões usam instalações sanitárias não adequadas e mais de 2 milhões defecam a céu aberto.
Quando analisados os dados voltados às escolas brasileiras, o Programa Conjunto de Monitoramento de Abastecimento de Água e Saneamento feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e Unicef apontou que 39% das instituições de ensino não possuem as estruturas mínimas para higienização das mãos. Ou seja, nem pia tem.
A situação fica ainda pior ao constatar, por meio do mesmo levantamento, que menos de 10% das escolas públicas possuem serviços de esgotamento. No Acre, apenas 9% têm acesso à rede pública de esgoto.
“Além do monitoramento do esgoto, nenhuma medida específica foi identificada em termos de ampliação de acesso a serviços de esgoto e instalações sanitárias durante o confinamento no Brasil. A falta de medidas ativas voltadas ao esgotamento sanitário e instalações, especialmente para aqueles que usam banheiros públicos e compartilhados, pode aumentar a insegurança e o risco de transmissão de doenças, especialmente entre mulheres e meninas, que, conforme mencionado anteriormente, são super-representadas nos ambientes informais”, diz a nota técnica.
A pesquisa evidenciou, mais ainda, a necessidade de ações rápidas e eficazes não somente do Brasil, mas de todo o planeta, com relação à necessidade de fornecimento de serviços de esgoto e da distribuição de água. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, disse que “trabalhar em um centro de saúde sem água, saneamento e higiene é o mesmo que enviar enfermeiras e médicos para trabalharem sem equipamento de proteção individual”.
PANDEMIA NO MUNDO
A Covid-19 levou muitas vidas e deixou sequelas em muitas famílias, principalmente em países como Estados Unidos da América, que até dia 10 de dezembro de 2021 registrava mais de 795 mil mortes, mesmo dia em que o Brasil registrou 616.069 mortes pela doença, com os títulos de primeiro e segundo país com maiores números de mortes, respectivamente. No décimo dia de dezembro de 2021, os Estados Unidos da América acumulava 49,7 milhões de casos desde o início da pandemia.
A China, país que registrou o primeiro caso e também a primeira morte por covid-19, em 10 de dezembro de 2021, enumerava 4.636 mortes em todo período de pandemia e mesmo com a população com uma marca acima de 1 bilhão, o número de casos pela doença foi de 99.517. No Reino Unido, formado pelos países Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte, no dia 10 de dezembro de 2021 registrou 58 mil novos casos de Covid-19, um recorde na pandemia, que desde fevereiro notificou mais de 146 mil mortes.
Os Estados Unidos, China e Reino Unido, além do Brasil, foram os países mais citados durante todo período de pandemia até então, se tornando, cada um de uma vez, o epicentro da pandemia.
AMÉRICA LATINA
A pandemia nesta região do mundo não impactou todos os países da mesma forma como o Brasil, México e Peru foram afetados e, por isso, ocupam os três primeiros lugares no ranking de número de casos na América Latina, formada pelos países Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
Com dados atualizados até dia 10 de dezembro de 2021, o Brasil ocupava o primeiro lugar em número de casos acumulados com 22.193.828, México com 3.911.714, Peru com 2,2 milhões, seguidos de Colômbia com 5.089.695 e Argentina com 5.354.440. Na lista dos países latinos, Nicarágua registrou o menor número de casos, com mais de 17 mil casos, além da nação centro-americana, El Salvador, Suriname, Guiana e Haiti também registraram poucos casos, o que não significa, necessariamente, que foram menos impactados, tendo em vista questões políticas e sociais que circundam tais nações.
Na Nicarágua, por exemplo, que possui mais de 6 milhões de habitantes, um estudo intitulado “Covid-19 e opacidade: a fórmula da morte na Nicarágua” publicado no Observatório para a Transparência e Anticorrupção, afirma que os números passados pelo governo de Daniel Ortega não condizem com a realidade, e que foram escondidas de 6 mil a 9 mil mortes. “É incrível que, enquanto no restante dos países da América Central morrem entre 6 e 11 pessoas por cada 10 mil habitantes a cada semana, na Nicarágua morra apenas uma”, afirmam os autores do estudo que preferiram não se identificar em razão de possíveis perseguições no país.
VACINAS
Apesar dos empecilhos que culminaram para que o Brasil figurasse em segundo lugar no ranking de mortes, e apesar também da lentidão no curso da campanha de imunização que impediu com que milhares de vidas fossem salvas, atualmente o Brasil é o segundo país da América do Sul – atrás do Chile com 87,73% de pessoas imunizadas com as duas doses – e o terceiro da América Latina – atrás apenas de Cuba, que imunizou 86,54% das pessoas, e do próprio Chile – a figurar nas primeiras colocações no ranking de vacinação, mais precisamente na 12ª posição. Segundo informações do Our World in Data, 69,27% da população brasileira está completamente vacinada contra a Covid-19.
É importante lembrar, no entanto, que para chegar a estes resultados, as estatísticas levam em consideração a proporcionalidade, ou seja, a quantidade de doses aplicadas para o número de habitantes de determinado país. No caso dos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, mesmo com a população sendo, pelo menos, 22 vezes menor que a do Brasil, eles figuram na primeira colocação justamente por ter imunizado quase que 100% das pessoas.
O Brasil também aparece no ranking de países que menos aplicaram vacinas. Contudo, observa-se que a América do Sul tem menor predominância do que o continente africano, por exemplo, onde se concentram os maiores percentuais de pessoas não-imunizadas. Somente na Nigéria, que é o país mais populoso da África, dos 206,1 milhões de habitantes, 198,24 milhões não se vacinaram. Inclusive, o governo nigeriano chegou a destruir mais de 1 milhão de doses alegando terem sido entregues ao país próximo à data de vencimento.
Os Estados Unidos também chamam atenção pois ao mesmo tempo em que vacinaram um percentual considerável (63%), um grande contingente de pessoas, mais precisamente 81.76 milhões de norte-americanos, acabaram não tomando nenhuma dose.
Já na Ásia, a Índia é a que aparece com menor número de pessoas sem serem vacinadas, com mais de 467 milhões nesta situação. Mesmo o número sendo matematicamente proporcional ao quantitativo de habitantes (1,38 bilhão), e mesmo tendo vacinado, em sua totalidade, mais de 500 milhões de pessoas, nota-se que ainda assim muitas pessoas ainda não procuraram pela imunização. Impulsionados pela variante Ômicron, o número de infectados no país subiu consideravelmente, o que fez a Índia registrar mais de 100 mil casos somente no último dia 07 de janeiro.
Apesar de o apagão no sistema de informações, ocasionado por um “ataque hacker”, ter afetado na credibilidade e na precisão dos dados no Brasil desde o dia 10 de dezembro de 2021, e mesmo com a demora no processo de imunização, é perceptível, com base neste conglomerado de gráficos e números, que o país segue em uma crescente no que diz respeito ao crescimento no número de vacinados contra a Covid-19. Se comparar com o Paquistão, por exemplo, que tem praticamente o mesmo quantitativo de habitantes, o Brasil se firma com uma larga vantagem. Obviamente, questões culturais e religiosas influenciam neste processo, mas o fato é que as diferenças entre os países culminam neste resultado vantajoso, uma vez que é a partir da imunização em massa que o vírus poderá ser combatido de forma mais eficaz.