Cotidiano

Como as “notícias falsas” afetaram a imunização dos povos indígenas

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Apesar das doses suficientes disponíveis e dos profissionais capacitados para aplicá-las, os indígenas enfrentaram, além do vírus, as fake news e os grupos que as disseminam de forma massiva

Por Ana Bessa e Evander Oliveira

Segundo o Informe Técnico nº15 , baseado no Plano Estadual de Operacionalização de Vacinação Contra Covid-19 do Acre, inicialmente eram 13.933 pessoas, entre indígenas aldeados e trabalhadores da saúde dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), distribuídos em 12 municípios, que precisavam ser vacinados.

Prestes a fazer um ano de quando o primeiro lote de vacinas entregue pelo governo estadual, em 19 de janeiro, foi recebido pelas autoridades locais, avalia-se o impacto da vacinação dos povos indígenas até hoje. O primeiro lote destinou 26.920 unidades para a vacinação dos povos aldeados, o que seria praticamente suficiente para a ampla imunização logo nos primeiros meses de 2021.

Porém, é possível avaliar que o impacto da vacinação dos povos indígenas foi afetado, sendo que apenas quase um ano depois eles chegaram perto do número total da população. Ao longo da matéria, foi possível afirmar que as fake news fizeram parte da equação nas dificuldades encontradas pelos órgãos responsáveis em cumprir o plano de vacinação.

Outros entraves como a dificuldade de acesso aos povos aldeados, agravado também pelo período de inverno amazônico, caracterizado por muitas chuvas, impedindo o acesso por ramais e às vezes também o deslocamento de barco, e a manutenção das doses durante a viagem, foram parte do problema até hoje.

Partindo da Secretaria de Estado de Saúde (Sesacre), o órgão responsável por intermediar e direcionar as doses de vacina contra a Covid-19 para os povos indígenas é o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). O DSEI é a unidade descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), que realiza atividades técnicas de atenção à saúde indígena. No Brasil existem 34 DSEIs, no Acre há duas unidades: os DSEIs Alto Rio Juruá e o Alto Rio Purus, baseados em Cruzeiro do Sul e Rio Branco, respectivamente.

Em dados disponibilizados no painel do Ministério da Saúde (MS), sendo eles fornecidos pelos DSEIs do Acre, até o dia 10 de janeiro de 2022, a população indígena era composta por 13.607. Na DSEI Alto Rio Juruá 6.378, o que representa 75% da população da regional, tomaram a 1ª dose. Já no Alto Rio Purus 4.659 (92%) tomaram a primeira dose do imunizante. Quando se trata da 2ª dose, no Juruá apenas 59% foram imunizados, enquanto no Purus esse número chega a 78%.

Quando somamos as populações das duas DSEIs e as doses aplicadas em ambas até o momento, o portal do Ministério da Saúde mostra que após um ano que as doses destinadas a esses povos chegaram, apenas 81% está com a 1ª dose e 66% está com a 2ª dose, ou dose única, em dia.

Povo Manchineri

Os Manchineri (Manxineru, em sua língua nativa, o aruak) possuem população de 1.100 indivíduos, segundo dados da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) e estão espalhados pelas Terras Indígenas (TI) de Mamoadate, Seringal Guanabara e Cabeceira do Rio Acre, espalhados pelas cidades de Assis Brasil e Sena Madureira. Suas terras são marcadas por acesso pelos rios, possuem amplos campos abertos e em algumas partes também ocupam área de mata fechada.

Família Manchineri – acervo CPI-Acre

De acordo com dados do painel do Pacto Acre Sem Covid , em dados atualizados em 9 de dezembro de 2021 e disponibilizados no Portal da Transparência do estado, o povo Manchineri foi o terceiro com mais casos confirmados de Covid, 22 até então. O Painel mostra ainda um total de 1.037 notificações, 130 suspeitos, 522 casos confirmados, 33 em tratamento e 12 óbitos até a última atualização.

A professora indígena e historiadora Soleane Manchineri relata que em torno de 500 pessoas, na faixa de 40 a 60 anos foram vacinadas em sua aldeia e aproveita para fazer um breve relato do impacto da Covid-19 em seu povo depois de tanto tempo após o início da pandemia.

“O impacto causado pela pandemia foi muito grave. Tivemos perdas irreparáveis pois muitos anciãos morreram de Covid-19. Então uma parte de nossa história e memória se foi com eles”afirma a professora.

Ao informá-la sobre os dados disponíveis sobre o andamento da vacinação em nosso estado e perguntar sobre possíveis motivos da adesão atual, Soleane diz que haviam muitas informações falsas circulando nas terras indígenas e que muitos acreditaram que eram as cobaias das vacinas e que iam morrer se as tomassem.

Ela destaca que já percebeu melhora nas aldeias Manchineri desde o início efetivo da vacinação e que o grande motivador para as vacinações avançarem foi o trabalho de conscientização e apoio de algumas organizações que constantemente estão nas terras indígenas.

O combate às fake news

A Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) é uma organização fundada em 1979, sem fins lucrativos, com sede em Rio Branco. Sua missão é apoiar os povos indígenas que vivem no Acre em suas lutas pela conquista e o exercício de seus direitos coletivos — territoriais, ambientais, linguísticos, socioculturais — por meio de ações que articulem a gestão territorial e ambiental das terras indígenas, a educação intercultural e bilíngue e as políticas públicas. É baseada nesses princípios que a CPI-Acre batalha lado a lado dos povos indígenas no combate à Covid-19 e às fake news.

Vera Olinda de Paiva, secretária executiva da CPI-Acre, é uma das lideranças da organização que está sempre presente nos territórios indígenas combatendo essas duas inimigas. A secretaria executiva alega que tem conversado com muitos indígenas, e afirma que as fake news são sim o principal motivo de recusa das vacinas. Vera Olinda aponta um grupo específico que as têm disseminado:

“A gente avalia, por tudo que acompanhamos, pelo que a gente lê e também conversando com os indígenas, que isso em boa parte tem a ver com essa linha de novos pentecostais, né. A presença deles é significativa nas terras indígenas. Mas tem também fatores que têm a ver com essa corrente negacionista, de que o coronavírus era uma gripezinha e que essa gripezinha iria passar. Então, isso chegou com muita força dentro das terras indígenas, por causa dos evangélicos e essa ideia de que ia ter um chip, que a vacina ia botar um chip na cabeça dos indígenas, isso deixou todo mundo muito inseguro”.

Ela complementa que as forças religiosas foram uma “desgraça” para os indígenas e para o trabalho feito pela Comissão, que com educação e conscientização, sempre baseados na ciência, com informação de qualidade e valorizando a medicina tradicional desses povos, tentavam conscientizá-los.

Os grupos religiosos e as fake news

A Fundação de Jovens Com Uma Missão (JOCUM), foi criada em 1960, por Loren e Darlene Cunningham, como um movimento interdominical empenhado na mobilização de jovens de todas as nações para a obra missionária. No Brasil, as atividades começaram em 1975, em Contagem (MG). Hoje a fundação possui uma estrutura descentralizada com 66 escritórios e centros de treinamento missionário espalhados por todas as regiões do país.

No Acre, o pastor e presidente da Jocum Rio Branco, Daniel Batistela, é um dos que organizam e desenvolvem trabalhos a partir da igreja junto aos povos indígenas. Segundo ele, nos estados quase todas as etnias são atendidas e apenas as mais isoladas ainda não receberam o trabalho desenvolvido pela igreja, conforme explica a seguir:

“A Igreja e as missões atuam em aldeias indígenas desde o descobrimento do Brasil. Os católicos há mais tempo e os evangélicos há uns 200 anos. Neste trabalho se faz evangelismo, discipulado, análise da língua, criação do alfabeto, alfabetização na língua, tradução de Bíblia e de outros livros na língua materna. Também temos a formação de professores e outros profissionais, tratamento de saúde e ação social em geral”, explica Daniel.

Questionado sobre como o projeto atua no contexto de pandemia, momento em que as fake news predominam até nas aldeias, o pastor da Jocum afirma que a igreja realiza um trabalho de conscientização com os povos, comunicando-se na língua indígena sobre “a realidade dos fatos, prevenção, tratamento e cuidados”. Daniel afirma que essas orientações dizem respeito a evitar ir à cidade, usar máscara e cuidados de higiene em geral.

O pastor indica, mesmo sem dizer precisamente, que parte dos missionários já se vacinaram. Apesar de aparentemente não ser um dos grupos que disseminam notícias falsas aos povos indígenas, a reportagem perguntou se Daniel acredita que a vacina contra a Covid-19 é eficaz no tratamento da doença. O pastor limitou-se a dizer: “Depende do corpo e das condições físicas de cada indivíduo. Creio que, para a maioria, a vacina ajudará”.

A conscientização dos povos

Buscando combater esse mal, aumentar a taxa de vacinados e conscientizar cada vez mais os povos indígenas, a CPI-Acre trabalha em conjunto com os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Ambos estão fazendo um trabalho de sensibilização, informação e convencimento, juntamente com as equipes de saúde, com os indígenas e, principalmente, suas lideranças, para que os indígenas que não tomaram ainda a vacina confiem na eficácia dela e aceitem ser vacinados.

cartaz em língua indígena – acervo CPI-Acre

Com destaque especial ao podcast da organização, o “Atenção, Txai!”, Vera aponta para as estratégias da CPI-Acre usadas no combate à desinformação, que possui um plano de comunicação composto por programa de rádio, podcast, cartazes em língua indígena, conversas por redes sociais, radiofonia e telefonemas diários para as terras indígenas, onde alega já ter retorno das terras indígenas com ótimos resultados.

“Temos um amplo plano de comunicação para ajudar os indígenas a aceitarem a vacinação, confiarem na ciência e desfazer o estrago que as fake news e que os evangélicos, em sua maioria, fizeram contra a vacina. Nós já estamos tendo retorno das terras indígenas da Bacia do Juruá, informando que a aceitação cresceu muito”, afirma a secretária executiva da Comissão Pró-Índio do Acre.


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