Alta procura pelo curso de Medicina costuma exigir mais dedicação dos candidatos nas horas de preparação | Foto: Arquivo pessoal/Linda Vitória
A trajetória de estudantes que percorrem diferentes caminhos em busca do sonho de cursar medicina
Por Ana Luíza Bessa e Renato Menezes
Do ponto de partida até a linha de chegada ao ensino superior, a trajetória que milhões de estudantes percorrem para realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) visa um objetivo em comum: entrar no curso dos sonhos em uma universidade pública ou faculdade privada. De acordo com o Relatório Anual do Enem, somente no estado do Acre foram 40.674 inscrições realizadas em 2020 para tentar alcançar a meta de ingressar no ensino superior. Contudo, as dificuldades que a pandemia de Covid-19 trouxe no início desta década em todas as áreas da sociedade refletiram nos dois domingos de prova, sendo as datas realocadas para 17 e 24 de janeiro de 2021, por conta da crise de saúde pública que impede aglomerações.
Dos mais de 40 mil acreanos inscritos em 2020, somente 19.721 pessoas estiveram presentes no primeiro dia de aplicação do exame. No segundo dia, o número caiu para 18.389. Conclui-se que mais de 20 mil alunos deixaram de comparecer aos locais de aplicação para resolverem as questões de Ciências Humanas, Linguagens e Redação. No segundo dia, mais 1.332 estudantes não fizeram a segunda etapa, que continha questões de Ciências da Natureza e Matemática. Vale lembrar que se o candidato não se faz presente nos dois dias, a desclassificação é automática, uma vez que o quadro de notas não ficará completo. Isso impede a inscrição nos programas de acesso ao ensino superior como o Sistema de Seleção Unificada (SiSU), Programa Universidade para Todos (Prouni) e Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Nesta pista de corrida, mais da metade dos acreanos ficaram pelo caminho.
Os motivos foram vários. Alguns contraíram a Covid, outros chegaram atrasados, outros nem sequer conseguiram chegar nos locais de prova em decorrência de problemas pontuais ou de deslocamento. Estes foram eliminados e não tiveram a chance de fazer a prova que define quem entra e quem tem que voltar a tentar no ano seguinte, mesmo que tenham estudado muito para isso.
Este foi o caso das estudantes Andressa Mendes, de 22 anos, e de Linda Vitória Coutinho, de 20 anos. Apesar de terem feito a prova em 2020, ambas não foram aprovadas para o curso de Medicina da Universidade Federal do Acre (Ufac). Então, seguem estudando para alcançar a vaga na graduação pretendida. A caminhada de ambas não começou no ano passado.
A TRAJETÓRIA DE ANDRESSA
Se preparando desde 2016, quando estava no 3º ano do ensino médio, Andressa tentou no ano em questão, nos seguintes e segue estudando para fazer a edição de 2021, que acontecerá nos dias 21 e 28 de novembro. Quem olha para tantas tentativas pode até imaginar que ela perdeu tempo demais ou que poderia ter feito outra graduação. No entanto, ela conta que não sente que está ficando para trás. Muito pelo contrário, considera que está evoluindo a cada ano em prol do objetivo que traçou desde que compreendeu que seu destino era cuidar de gente, aos 13 anos. “A cada ano tenho evoluído, devagar, uma hora eu vou chegar lá. Já estive mais distante, mas creio que tô chegando perto”, falou.
Ela fez um ano de cursinho público (2016), três anos de cursinho particular (2017, 2018 e 2019) e quase dois (2020 e 2021) em modalidade de Ensino à Distância (EaD), devido à pandemia. No primeiro ano que prestou o exame, tinha uma jornada tripla: trabalhava de manhã ajudando a mãe, que é diarista, ia para a escola à tarde e ao cursinho de noite. Quando terminou o ensino médio, começou a se dedicar mais ao Enem, tentando conciliar trabalho e estudo preparatório.
“Eu sempre trabalhei desde o ensino médio. Antes era bem mais difícil, porque eu tinha que trabalhar de manhã, estudar de tarde e fazer cursinho de noite. Quando terminei o ensino médio, fiquei só trabalhando e estudando para o Enem, mas ainda assim não deixou de ser difícil. O bom é que eu não tinha mais a obrigação de ir para a escola e ainda pegar ônibus, me deslocar e me estressar – porque esses ônibus daqui não são fáceis. Mas aí, quando me formei, ficou um pouco mais flexível pra trabalhar e estudar. O cursinho, querendo ou não, é algo mais liberal”, disse.
“É PUXADO”
Esta rotina dupla ainda perdura. Ela continua acompanhando e realizando as faxinas diárias com a dona Rosilene Mendes, de segunda a sexta-feira, para prover o sustento da casa e custear os estudos. Ela considera a rotina puxada. “Minha mãe é faxineira, diarista, e eu vou ajudar ela. Então, não é aquela coisa de todo dia você estar naquele mesmo canto. Aí tem gente que bagunça muito, tem outros que fazem as coisas mais direitinho. Geralmente é só um turno, mas tem dias que a gente faz dois, e aí eu tenho que dar um jeito de conciliar e acabo estudando só à noite”, comentou.
Com o dinheiro das faxinas, Andressa e a mãe conseguiram pagar o cursinho presencial durante três anos, com mensalidade de R$800 na época, e apostilas no valor de R$2 mil que se renovam a cada ano. De manhã, ia para as casas de família; de tarde, para o cursinho; e de noite, mantinha os estudos. Oriunda de escola pública, ela também contou que no próprio pré-Enem fica perceptível a diferença de ensino entre o público e o particular.
“O cursinho que eu fazia era o melhor do Acre. Tinha gente de todas as classes, de todos os níveis e a maioria da sala, tipo 90%, querendo fazer medicina. E quando você chega lá, e você é de escola pública, é possível ver uma diferença discrepante comparando com estudantes de escola privada. Tem coisas que eu ficava ‘meu Deus, eu nunca vi isso na minha vida!’ Mas aí, depois, com muita dificuldade, a gente vai se acostumando”.
COMPARATIVO ENTRE AS ESCOLAS DO
A média de notas das escolas no Enem reflete esta discrepância no ensino. De acordo com uma pesquisa nacional realizada pela empresa de tecnologia ZBS com os resultados do Enem 2019, as maiores médias do exame no Acre se concentram em instituições de ensino privadas. No top 10, somente duas não são deste nicho.
Neste estudo com 5.318 participantes do Acre, a média de notas de alunos de escola pública é de 461,56. A de ensino privado, por sua vez, é de 572,09, sendo que 13,33% destes alunos têm renda média mensal bruta de R$11,9 mil a R$14,9 mil.
Com relação aos que estudaram em escola pública, o maior grupo socioeconômico é composto de participantes que possuem renda de até 1 (um) salário mínimo.
Não há dúvidas que essas diferenças foram ainda mais acentuadas durante a pandemia. Estudos realizados pela Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) mostram que há desigualdade quando o assunto é internet: 98,4% dos estudantes da rede privada tiveram acesso à rede e este percentual entre os estudantes da rede pública de ensino foi de 83,7%.
Sobre isto, Andressa destacou que é inevitável a diferença de notas quando se equipara os resultados do Enem de pessoas que vêm de ensino público com os que estudaram em escola particular, principalmente àqueles que não precisam trabalhar e, consequentemente, têm mais tempo de dedicação exclusiva ao estudo. “Uma pessoa que não tem tantos recursos acaba se preocupando bem mais com coisas do tipo ‘como é que vou pagar meu estudo, cursinho e material?’. Querendo ou não, às vezes só o cursinho online não é suficiente. Tem algumas coisas que você tem que pagar um pouco mais caro para ter algo mais individualizado”.
Estes esforços se justificam ao analisar o último relatório anual da Ufac. O “Ufac em Números 2019” mostra que mesmo com a aprovação, em 2018, da cota regional que prioriza alunos que concluíram o ensino médio no estado, a relação candidato/vaga no curso de medicina ainda é alta. Em 2018, foram 17.643 inscritos e 220,54 candidatos por vaga. Em 2019, foram 7.775 candidatos e 97,19 concorrentes para cada vaga, o que ainda configura a maior média entre os cursos, apesar da queda significativa. Anualmente, a universidade oferta 80 vagas distribuídas em duas turmas de 40 alunos nas duas edições do Sisu.
Atualmente, Andressa se prepara com os recursos on-line que tem ao alcance, tanto em decorrência da pandemia, como por questões financeiras. No entanto, afirma que se acostumou a estudar sozinha, mesmo ciente de que requer mais esforço por parte de quem estuda. “No começo (da pandemia) foi bem difícil. Eu não estava acostumada a estudar online porque tinha aquela rotina de estar todo dia no cursinho com os professores para me auxiliar. Depois me adaptei e comecei até a gostar, pois vi que eu podia fazer aquilo, já que antes eu me prendia demais naquele negócio de ter que estar com um tutor ao meu lado”.
No início das restrições, ela e a mãe ficaram sem trabalhar por 2 meses. Agora, ela retomou o trabalho no turno matutino de segunda a sexta-feira e, eventualmente, alguns dias de tarde. Ao chegar em casa, descansa por alguns minutos e tenta focar no estudo, mesmo às vezes exausta do trabalho. E como faz para manter o foco? “Eu tento, mas tem dias que o cansaço vence a gente. Mas aí depois de um banho quente, a gente pensa melhor”.
NA HORA DE TENTAR A VAGA…
Como todo “enembulando”, o nervosismo para verificar a nota e aplicá-la no sistema é inevitável, justamente porque passou o ano inteiro se preparando. Porém, ela sempre tentou tirar uma vantagem diante das tentativas em passar para Medicina, principalmente para ficar motivada em continuar persistindo. “Nos primeiros anos eu me desesperava, mas aí depois eu comecei a tirar proveito disso e me manter mais focada nas disciplinas que eu vi que tinha um desempenho menor.
“TENHO QUE PROSSEGUIR, NÉ?!”
Sobre resultados, ela chegou a passar para Direito na Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat) e relatou que, inicialmente, ficou com vontade de adiar o sonho de ser médica. “No Enem de 2019 eu passei para Direito na Unemat e fiquei com vontade de ir, mas aí conversei com algumas pessoas que estavam se formando no curso de Medicina e que me orientaram a seguir meu coração. E se eu estava há todos esses anos estudando por uma coisa que eu sonho, eu tenho que prosseguir, né? Por mais que demore. Depois de pensar bem, vi que (Direito) não tinha nada a ver comigo”.
A TRAJETÓRIA DE LINDA VITÓRIA
A estudante Linda Vitória Coutinho, de 20 anos, também estuda para entrar no curso de Medicina. Oriunda de escola particular, concluiu o ensino médio em 2017. No ano seguinte, ingressou em um cursinho pré-vestibular pago. Desde então, foca em passar na federal. A rotina dela é totalmente focada nos estudos, com média de 9 horas de dedicação integral.
Linda mora com os pais e possui um local próprio e silencioso para os estudos. “Eu estudo no meu quarto. A maior parte do tempo eu fico em silêncio, tenho mesa, ar-condicionado, ventilador, material e internet. Tenho todo o tempo para estudar e sei que sou bem privilegiada por conta disso, pois tenho apoio dos meus pais”, disse.
Ela começa indo para o pré-Enem às 8h com mensalidade de R$900 e material anual de R$2mil, parando somente ao meio-dia para almoçar em casa. Depois disso, descansa até às 14h e segue estudando até às 20h. Aos finais de semana, Linda paga um valor extra para receber uma correção detalhada de simulados particulares online que costuma fazer no sábado, baseada no sistema de Teoria de Resposta ao Item (TRI). Além disso, assina mais cursos online de resolução de questões que mostram a porcentagem de desempenho diário e faz aulas extras de matérias isoladas.
Com isto, a estudante considera que tem bastante sorte em poder focar somente nos estudos. Ela comentou também que vê muitas pessoas que conciliam outros afazeres enquanto tentam ingressar na universidade. “Durante a trajetória de estudos, vi que na sala do pré-Enem tinha muita gente que só estudava, mas esse ano tem uma galera que estuda e ajuda em casa ou trabalha. Em 2020, teve um policial aprovado que trabalhava de madrugada e ia pra aula no outro dia. Me considero privilegiada, pois já é difícil passar assim, com todo esse apoio que eu tenho para estudar, então imagina se preocupar por dois, em estudar e trabalhar?!”, completou.
FATOR EMOCIONAL
Independente do perfil estudantil, o equilíbrio emocional dos estudantes é um fator muito importante para um bom desempenho na hora da prova. A pressão neste processo de estudo gera ansiedade e o desgaste mental é muito frequente. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Programa de Avaliação Internacional de Estudantes 2018, por exemplo, 56% dos jovens brasileiros sofrem com estresse. Além disso, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o país mais ansioso do mundo, com mais de 18 milhões de pessoas nestas condições.
Linda é uma das estudantes que costuma ficar insegura na hora da prova. Ela ainda não foi a um psicólogo, mas está procurando, pois sabe que o controle emocional conta bastante nos dias de prova do Enem.
“Esse ano fui fazer a prova com a consciência de que eu tinha estudado, de que sabia o conteúdo, mas no fim das contas eu errei por falta de calma. Talvez com cinco segundos a mais de atenção eu poderia ter resolvido as questões que errei, e essas eram as que eu precisava pra passar. Isso afetou demais a minha ansiedade”, disse.
“NINGUÉM VAI TOMAR ISSO DE MIM”
Linda sabe que tem potencial para passar. “A falta de confiança é constante, pois é uma prova que reflete um ano de dedicação. O cursinho, por exemplo, é um ambiente de muita rivalidade. Mas tenho consciência de que eu sou capaz de conquistar minha vaga e de dar o meu melhor. Ninguém tira vaga de ninguém, e ninguém vai tomar isso de mim”.
Andressa também acredita que uma hora essa conquista vai chegar para ela. “Acredito que cada pessoa tem seu momento. Às vezes você quer tanto uma coisa, mas emocionalmente não está preparado, e eu acho que o Enem, por mais duro que seja, ele nos prepara para desafios maiores. A esperança é a última que morre para mim”.