Tenda de umbanda Luz da Vida celebra festa de São Cosme e Damião em evento aberto a visitantes
Luana Dourado
“Defuma, defuma a dor nessa casa de nosso Senhor e leva para as ondas do mar, o mal que aqui possa estar”. Essa é a letra que acompanha o atabaque tocado pelos ogãs (responsáveis por tocar o instrumento para manter a vibração durante as giras), marcando o início da festa de Cosme e Damião na tenda de umbanda Luz da Vida. O espaço está localizado depois da segunda ponte na estrada do Quixadá, em Rio Branco, e celebrou na última sexta-feira de setembro a energia das crianças.
Os consulentes, ou seja, os visitantes da tenda, são recebidos com cachorro quente e guaraná, exatamente como em um aniversário de criança. A decoração do local também é a mesma do aniversário de criança. Há balões coloridos e faixas, enfeites de doces e sacolinhas com guloseimas que são entregues pelos filhos da casa acompanhados de um caloroso “feliz Cosme e Damião”.
Há ainda um espaço dedicado para oferendas a Ibejí, Ibejada, erê, crianças ou curumim. Os consulentes podem deixar suas oferendas e acender velas para essa energia. As cores das velas? Azul, rosa e branco. As oferendas? Aquilo que qualquer criança gosta, doces!
Mas afinal, é erê, Ibejí, criança ou curumim?
A mãe de santo Marajoana de Xangô explica as diferenças e semelhanças entre os nomes: “Cosme e Damião são os santos sincronizados católicos que vieram fazer caridade para as crianças que não tinham condições de ter atendimento na saúde. Por isso, eles se formaram médicos e realizaram diversas ações sociais. Se tornaram o mártir de Cosme e Damião. Ibejí é o orixá. Dentro de uma comunidade na África não era permitido ter filhos gêmeos e todas as pessoas que tinham gêmeos precisavam matar um dos filhos. Era a cultura desses povos. Uma das mães que teve gêmeos decidiu não deixar que matassem seus filhos com a energia do orixá. Ele ficou conhecido como Orixá Gêmeos, Ibejí, aquele que cuida da criança. Aquele que cuida do relacionamento da criança interior, do espírito da criança”, explica.
Quanto ao nome erê, a mãe de santo explica que faz parte da iniciação de um filho de santo no candomblé. “A umbanda é o que eu pratico e ela se apropria também das outras (candomblé, catolicismo), chamamos de colcha de retalhos. Não temos muito esse conceito definido do nome, porque é uma forma de linguagem, depende de como cada um conhece e como cada um vem com a cabeça. Então para gente tanto faz, o erê, como o curumim, como criança, Ibejada ou Ibejí. Para nós, a energia da criança vem de um ser encantado como um símbolo misterioso, que cuida da nossa criança interior”.
Preparação para a festa
O mês de setembro é destinado para a energia de cura das crianças. A data da celebração de Cosme e Damião é dia 27 de setembro. Na tenda de umbanda Luz da Vida a celebração aconteceu no dia 30, por ser uma sexta-feira, dia em que acontecem os atendimentos da casa.
A preparação para a festa, no entanto, começa meses antes, de acordo com Sarah Rodrigues, filha de santo da casa. “Alguns meses antes a mãe separa os irmãos em grupos e vai delegando as tarefas. Esse ano eu fiquei com as sacolinhas e foi maravilhoso”, conta.
Durante o mês a energia de Ibejí é trabalhada na casa e com os consulentes. “Trazemos esse sentimento de buscar curar com as crianças que são a manifestação divina do mundo encantado. O mundo encantado não é aquele que a gente tem no imaginário, mas o mundo que busca curar a nós mesmos. Há essa ritualística de preparar o mês, de buscar trazer essa energia, a leveza e a limpeza”, conta a mãe de santo.
Sarah conta que foi uma surpresa descobrir que seu orixá é Ibejí. “Quando eu era mais nova, com uns 13 anos, frequentei um terreiro e quando fui apresentada a eles eu gostei muito. Eles trazem muita diversão e leveza. Foi uma surpresa o fato do meu orixá ser Ibejí e agora estou aprofundando mais e estudando sobre eles, sobre a energia que é de muito acolhimento”, conta.
A festa
Momentos antes do início da festa, a energia na tenda de umbanda Luz da Vida é semelhante à das crianças que aguardam os parabéns para comer o primeiro pedaço de bolo em um aniversário. A mãe de santo Marajoana de Xangô cumprimenta a todos os presentes ao microfone, convida os visitantes a participarem do banho de bênçãos feito pelas entidades. “Fiquem à vontade, a casa é de vocês”, declara no microfone e em seguida os ogãs começam a tocar o atabaque que dita o ritmo da festa a noite inteira.
Uma fila se forma para a defumação, ato que marca o início da festa. Antes da defumação ser concluída com todos os filhos de santo e com todos os visitantes, é possível ver a chegada das primeiras entidades. Os gritos, risadas e trejeitos lembram crianças. É impossível não se contagiar com a energia juvenil, inocente e leve que as crianças trazem consigo.
Enquanto os ogãs tocam e cantam os pontos de umbanda, é possível ver novas entidades de crianças chegando nos filhos de santo. Todas são recebidas com muito entusiasmo por aquelas que chegaram primeiro. Após alguns pontos cantados, as entidades se espalham pela roda formada por filhos de santo não incorporados e por consulentes.
Não demora muito para que as crianças encontrem a mesa de doces. Os gritos de alegria preenchem a noite e quase ficam mais altos que o toque dos ogãs. Além de se lambuzarem com os mais diversos bolos, pudins, brigadeiros, algodões doces, as crianças começam a passar esses doces no rosto dos consulentes.
É então que começa o banho de bênçãos, com guaraná. Algo que a princípio pode assustar, como explica o filósofo Renis Ramos: “Essa questão de demonizar as crianças é por puro preconceito, por pura intolerância. Por questões completamente errôneas e ignorantes das demais pessoas. É um problema porque mostra o sucesso da colonização com essa questão mais embranquecida na história. Todos os símbolos de potência da nossa transformação tanto espiritual quanto humana foram corrompidos ao ponto que você olha para isso e sente medo”, explica.
Sobre o racismo religioso, o babalorixá e doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Universidade de São Paulo Sidnei Nogueira explica, no livro Intolerância Religiosa, que “Há um padrão de poder perpetrado pelo projeto de dominação europeu-ocidental que opera na produção contínua de violência, destruição, desvio e subalternidade sobre outros princípios explicativos de ordenação/compreensão de mundo, dos seres e suas formas de saber. Trata-se da colonialidade do poder. A colonialidade do poder hierarquiza, classifica, oculta, segrega, silencia e apaga tudo que for do outro ou tudo que oferecer perigo à manutenção de um status quo, garantindo a perpetuação da estrutura social de dominação, protegendo seus privilégios e os de sua descendência e cristalizando as estruturas do poder oligárquico.” É por conta desse padrão de poder que as religiões de matriz africana são alvo de racismo, tidas como algo que se deve temer.
A festa segue ao longo da noite com as crianças derramando guaraná nos consulentes e filhos de santo que desejam receber as bênçãos. O som de gritos e risos embala a festa junto com os pontos cantados pelos ogãs. Os visitantes que não desejam participar do banho, observam de longe e as entidades respeitam e apenas oferecem doces.
Essa foi a primeira festa de Cosme e Damião que Guilherme Limes visitou, ele já havia ido à tenda outras vezes. “Me senti totalmente aliviado de tudo que estava me desconcentrando muito espiritualmente. Hoje foi um alívio espiritual, pessoal, psicológico também, para mim foi maravilhoso”, contou coberto de bolo e molhado de guaraná.
“O guaraná é como um banho de descarrego, ou um banho de bênção, é o elemento deles. Às vezes, as pessoas buscam um banho energizante ou de descarrego mesmo com ervas. O elemento das crianças, por onde elas trabalham a energia, é o guaraná e o doce”, explica a mãe de santo.
Durante a festa é notável como as crianças trazem a sensação de liberdade dos visitantes, adultos, a voltarem a ser crianças. “Essa foi minha primeira vez em um terreiro. Eu não quero mais ir embora. Estou me sentindo uma criança novamente e sinto que ninguém aqui me julga”, contou a estudante Giovanna Silva.
Presente de criança
É certo que há um aviso passado quase que silenciosamente para aqueles que nunca visitaram uma gira – ritual que acontece nas casas e terreiros de umbanda – de criança ou uma festa de Cosme e Damião. “Cuidado com os presentes de criança”, ou até mesmo “Se falar que tem um presente para você, não aceita”.
A história de que a Ibejada sempre presenteia com filhos é popular e chegou até Giovanna: “Eu estava com um pouco de receio. Uma amiga me disse para não aceitar presente algum, mas depois de chegar aqui percebi que não precisava sentir medo”. A mãe de santo Marajoana de Xangô explica a origem dessa história: “as mulheres com endometriose ou com síndrome do ovário policístico pediam às crianças para engravidar e recebiam isso como um milagre. É certo que aquilo que uma criança faz ninguém consegue desfazer. Mas o milagre não necessariamente precisa ser um filho. Aquilo que é pedido com fé e se houver o merecimento eles de certo vão atender”, explica.
O caminho contra a intolerância religiosa
No livro Intolerância Religiosa, Sidnei Nogueira expõe os objetivos do racismo religioso: “O racismo religioso quer matar existência, eliminar crenças, apagar memórias, silenciar origens… Aceitar a crença do outro, a cultura e a episteme de quem a sociedade branca escravizou é assumir o erro e reconhecer a humanidade daquele que esta mesma sociedade desumanizou e matou”.
Um grande passo para isso, é a desmistificação do imaginário popular acerca das religiões de matriz africana. “Ainda existe infelizmente o preconceito, mas graças a Deus de pouquinho em pouquinho, passo a passo vamos conseguindo desmistificar. Vamos criando e abrindo, firmando o chamado de ponte. Aquele que nos visita uma vez, vê que não é da forma que pensava. Assim vamos conseguindo desmistificar, e aí uma pessoa traz outra, que já vem com um olhar mais tranquilo porque já ouviu do primeiro”, conta a mãe de santo Marajoana de Xangô, que sempre abre a tenda de umbanda Luz da Vida às sextas-feiras para atendimento a consulentes sem cobrar pelos trabalhos.