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Olhares sobre a transgeneridade

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Reprodução/B9

Por Guadalupe de Souza Pereira

Uma das pessoas transgênero mais conhecidas do Brasil, Roberta Close – atriz, modelo e cantora – passou 15 anos tentando ter seu nome Roberta em seus documentos, mesmo após passar por uma cirurgia de redesignação genital e por dezenas de exames biológicos e laudos médicos. Roberta, à época, descobriu ser uma pessoa intersexual – que biologicamente não responde ao masculino ou ao feminino.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que pessoas trans e travestis podem alterar o nome e gênero no registro civil sem se submeterem a provas ou a uma cirurgia. Se antes era uma questão sexual em diversos níveis, atualmente se trata do direito à identidade de gênero.

A separação do sexo e do gênero, ou mesmo o questionamento ao que realmente é considerado sexo, é encontrado em diversas literaturas. No Conto Roxo: A História da Minha Transexualidade, do livro Bricolagem Travesti, a autora Maria Léo Araruna relata: “nasci com uma marca de formato cilíndrico. Era algo largo e que ficava solto no corpo. Disseram-me para me orgulhar desse objeto natural. As pessoas chamavam isso de homem, mas sempre achei que se tratava apenas de um pênis. Ele não interferia em nada. (…) O homem colocado em mim não existe”.

A observação de Maria corresponde às discussões atuais sobre os estudos de sexualidade, que colocam a transgeneridade como uma dissidência a um sistema sexual vigente que impõe sexos binários e heterossexuais. Estudiosos como Thomas Laqueur, que escreveu o livro Inventando o Sexo, consideram o sexo humano como um conceito insustentável. 

Atualmente o que se discute em termos de ativismo e de legislação vai além do que se entende biologicamente como sexo, se solidificando na identidade e na dignidade das pessoas. Entre outras mudanças de percepção sobre o tema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) oficializou em 2019 a retirada da classificação da transexualidade como transtorno mental da 11º versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID).

Conceitos e termos

Em “Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos”, Jaqueline Gomes de Jesus, ativista trans, aponta que é necessário diferenciar a identidade de gênero do que ela indica como funcionalidade de gênero. Portanto, dentro da identidade de gênero está a vivência cisgênero, de quem se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento, e a vivência transgênero, quando não há conformidade com o que lhe foi imposto. Esta última engloba a vivência transexual/transgênero e também a travesti, que é um termo popular no Brasil e se refere geralmente a uma identidade transfeminina marginalizada. Atualmente as travestis requisitam um tratamento mais respeitoso e associam esta identidade a uma história de luta e de orgulho. Pessoas não binárias ou agêneras, que não se veem nem como homens tampouco como mulheres, também estão englobadas como pessoas trans.

Quanto à funcionalidade de gênero, Jaqueline Gomes descreve que são apropriações de papéis de gênero apenas por razões práticas (trabalho, recreação, arte, etc) e não por identidade. Drag queens, drag kings e transformistas são exemplos de expressões de gênero que ocorrem sobretudo por motivos artísticos. Uma pessoa que performa uma drag queen não necessariamente é uma pessoa trans. Crossdressers são também exemplos, sendo estes, em geral, homens cis heterossexuais que usam roupas, maquiagens ou peças ditas femininas em momentos pontuais.

É importante não confundir a identidade de gênero de uma pessoa com a sua sexualidade. Esta diz respeito à orientação sexual, isto é por qual gênero a pessoa se sente atraída, como heterossexual, bissexual, homossexual, assexual, panssexual. O transfeminismo busca, inclusive, que as orientações sexuais respeitem à identidade de gênero, fazendo com que, por exemplo, um relacionamento entre duas mulheres, cis e trans, seja respeitado como lésbico, independente da genitália.

 Realidade trans no Brasil

No boletim “Assassinatos contra Travestis e Transexuais em 2021”, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) relata que “dados  parciais  de  2021  indicam  que  assassinatos  contra  pessoas  trans  estão acontecendo mais precocemente, contra vítimas cada vez mais jovens e com maior violência,  e seguem  com  números  altos  apesar  da pandemia”. 

O texto, assinado por Bruna Benevides e Sayonara Nogueira, avança descrevendo os casos mapeados pela Antra no Brasil: “Em  2020, a  ANTRA  encontrou um  número  recorde  de assassinatos contra travestis  e  mulheres  trans. Um  total  de 175 casos foram mapeados contra  44  nos Estados Unidos. Já em 2021, nos quatro primeiros meses, enquanto nos EUA foram 19 pessoas trans assassinadas, no Brasil chegamos à triste marca de 56 assassinatos – sendo 54 mulheres trans ou travestis e 2 homens trans ou transmasculinos. São inúmeros os casos  que  apresentaram  requintes  de  crueldade  e  uso excessivo  de  força,  e espancamentos – indicativos de se tratarem de crimes de ódio. Tendo sido encontrados ainda  5  casos  de  suicídio,  17  tentativas  de  assassinatos  e  18  violações  de  direitos humanos contra pessoas trans, no mesmo período”.

O boletim também alerta para a dificuldade em catalogar tais casos, pois boa parte são subnotificados ou as pessoas trans não têm sua identidade respeitada pelos registros policiais. Mesmo assim, o mapeamento da Antra já é alarmante. O ano de 2020 superou a média anual de 122,5. Os números, porém, também retratam o racismo no Brasil, visto que 80% das pessoas trans e travestis assassinadas em 2020 eram pretas.

Essa violenta realidade dá ao Brasil o título de país onde mais matam transexuais no mundo, de acordo com dados do Trans Murder Monitoring (Observatório de Assassinatos Trans). O topo desse infeliz ranking é ocupado pelo Brasil há 12 anos consecutivos.

A ditadura militar e a transgeneridade

Muitos apontam a Ditadura Militar que tomou o Brasil por 25 anos (1964-1985) como um regime que aumentou o estigma sobre a população trans e travesti. Além da influência conservadora sobre os meios de comunicação da época, o período também intensificou as políticas de repressão contra pessoas trans. “Foi durante o Regime Militar que a polícia iniciou uma pesquisa criminológica para justificar a prisão de pessoas LGBT por ‘vadiagem’. A partir disso o delegado Guido Fonseca definiu então o ‘alto grau de periculosidade travesti”, denuncia a comunicadora e historiadora Giovanna Heliodoro, conhecida na internet como Trans Preta.

Ela diz que a “ameaça travesti” contou com apoio da sociedade civil e foi a justificativa legal para a perseguição de pessoas trans e travestis. Giovanna ressalta: “precisamos lembrar da Ditadura para não esquecer da nossa história e a de muitas travestis que foram assassinadas e presas para que estejamos aqui hoje”.

O acervo LGBT do projeto Memórias da Ditadura, realizado pelo Instituto Vladimir Herzog, registra diversas operações policiais em São Paulo, que se iniciaram em 1968, coincidindo com a instauração do AI-5, e que se estenderam de maneira sistematizada a partir de 1975. 

O delegado Wilson Richetti é citado também no Dossiê da Ditadura, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. O Dossiê relata que “a ideologia dominante continha claramente uma perspectiva homofóbica, que relacionava a homossexualidade às esquerdas e à subversão”. À época, as transexuais eram costumeiramente tratadas no masculino e confundidas com homossexuais.

Além de confirmar as denúncias de Giovanna Heliodoro e o acervo do Instituto Vladimir Herzog, a Comissão da Verdade relacionou a efetividade das ações policiais aos governantes da época. 

“Famosos nessa época, o delegado José Wilson Richetti e seus policiais promoviam verdadeiros arrastões pelas ruas centrais. Estes resultavam em detenções violentas, justificadas por abaixo-assinados de comerciantes e trabalhadores da região, em prol da moralidade defendida pelo regime, muitas vezes incentivados pelo próprio delegado. Estima-se que durante os finais de semana, entre 300 e 500 pessoas eram detidas, arbitrariamente, por noite em São Paulo. Dentre estas, muitas eram extorquidas e algumas foram torturadas.”

(acervo LGBT do projeto Memórias da Ditadura, Instituto Vladimir Herzog)”

A mídia da época repercutia todas essas ações perpetuando a discriminação e o estigma sobre as pessoas trans e travestis, como também aos negros, aos homossexuais e às lésbicas. 

Houve também a icônica manifestação em 14 de junho de 1980, na escadaria do Theatro Municipal de São Paulo, tida como o primeiro ato público do movimento LGBTI+ no Brasil, que exigia esclarecimentos de Richetti e do secretário de Segurança Pública da época, Octavio Junior, em razão das perseguições.

Como figura central na imagem, de terno, o delegado José Wilson Richetti, durante ação contra travestis, prostitutas e homossexuais. À direita, uma transexual algemada pelos policiais. (Juca Martins / Olhar Imagens)

O jornal Lampião era um folheto alternativo feito pela comunidade LGBTI+ da época que se esforçou em denunciar as perseguições. (Imagem com fonte desconhecida)

O Estado de São Paulo repercute a imagem de travestis associadas ao crime (Imagem: Disponibilizada por Giovanna Heliodoro)
Passeata contra a repressão policial do delegado José Wilson Richetti, evento lembrado como a primeira mobilização pública do movimento LGBT no Brasil, em 14 de junho de 1980. (Imagem: Comissão da Verdade do Estado de São Paulo)

Onde estão as pessoas trans hoje?

A política brasileira é um espaço que tem sido ocupado pelas pessoas trans. Só em 2020, nas eleições municipais, foram eleitas, segundo a Antra, 2 homens trans e 28 travestis e mulheres trans em todo o Brasil, sendo 7 delas com a candidatura mais votada em suas cidades.

Erika Hilton (Psol-SP), eleita na capital paulista, é a primeira mulher negra e transexual eleita vereadora na capital paulista – e com 50.508 votos, o que a faz a mulher mais votada do Brasil nas eleições de 2020. “Estamos sedentas de direitos humanos e equidade. Nós criaremos muitas fissuras nessas estruturas de poder e dominação”, disse ela, recém-eleita, ao jornal G1.

Duda Salabert (PDT-MG) em Belo Horizonte, Benny Brioli (PSOL-RJ) em Niterói, Carolina Iara (PSOL-SP) em São Paulo, Linda Brasil (PSOL-SE) em Aracaju, Erika Hilton (PSOL-SP) em São Paulo e Thammy Miranda (PL-SP) em São Paulo. Foto: Reprodução/Instagram/Arquivo de Socialismo Criativo.

No entanto, apesar dos dados imprecisos, a Antra estima que 90% da população trans e travesti no Brasil se prostituem, principalmente pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e por saírem muito cedo de casa – geralmente são expulsas. É evidente a dificuldade em inserir esta população no mercado de trabalho ou mesmo de terem seu nome e gênero reconhecidos legalmente. Um estudo da Prefeitura Municipal de São Paulo, organizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), indica que 75% das pessoas entrevistadas deixaram de morar com a família precocemente. Quase a metade (46%) das travestis, segundo o estudo, são profissionais do sexo, enquanto 34% das que se identificam enquanto mulheres trans atuam profissionalmente da mesma forma. Pelo menos 18% dos homens trans são atendentes de telemarketing ou vendedores de lojas e lanchonetes.

Representatividade nas artes

Mesmo com uma realidade adversa, as pessoas trans e travestis têm se destacado no mundo artístico. Ao lado de pessoas trans como a cantora Liniker Barros, a artista Verónica Valenttino, as cantoras Urias e Danna Lisboa, a rapper Ceci Dellacroix e a maquiadora Magô Tonhon participam da produção da música e do vídeo-clipe de Oração, na qual Linn da Quebrada levanta uma discussão sobre a ausência de afeto com a população trans e travesti, mas também indica uma unida cena brasileira de artistas e personalidades transgêneros.

Linn da Quebrada e coral de mulheres trans na canção Oração. A letra diz: “Não queimem as bruxas, mas que amem as bixas, mas que amem. Que amem, clamem. Que amém. Que amem as travas também!”. https://www.youtube.com/watch?v=y5rY2N1XuLI

A artista Liniker, cantora de soul e black music, também é a estrela da recente série da Amazon Prime Music chamada Manhãs de Setembro. A série conta a história de Cassandra, uma mulher trans, que descobre ter um filho de 10 anos.

Uma outra série que tem enriquecido o universo LGBTI+ é a americana Pose (FX), com o maior elenco trans da história da televisão. O roteiro apresenta a cultura ballroom entre as décadas 80 e 90 em New York. Mj Rodriguez, Dominique Jackson e Indya Moore são atrizes trans que dão vida a personagens marcantes da série de televisão. Fora do contexto americano, a vida de Cristina Ortiz Rodrigues, uma mulher trans conhecida na Espanha, ganhou uma série biográfica chamada La Veneno (HBO Max), seu famoso apelido. 

Cada vez mais, surgem também produções audiovisuais que apresentam vivências trans fora de estereótipos de agressividade ou de humor. Por exemplo, Euphoria (HBO) e Sense8 (Netflix, dirigida pelas irmãs Wachowski, duas mulheres transgênero), entre outras que documentam histórias e lutas da comunidade, como A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson (Netflix) e Revelação (Netflix). Revelação (em inglês Trans Lives on Screen) analisa, com análises  cineastas e estudiosos transgêneros, o amplo aumento de obras audiovisuais com narrativas trans e o seus impactos sobre a população trans e travesti.

A representatividade nas mídias e em demais espaços de poder são fontes de inspiração para as novas gerações e também de esperança para esta comunidade tão estigmatizada e violentada no Brasil. 

Os efeitos da ocupação desses espaços são incalculáveis e imprevisíveis, mas com certeza formam exemplos que despertam orgulho e uma luta cada vez mais forte em defesa dos direitos das pessoas transgênero.

“Existe um provérbio africano que eu gosto muito que fala: enquanto os leões não contarem a sua própria história, os caçadores continuarão sendo os heróis. É sobre isso que estamos falando: enquanto nós não contarmos as nossas próprias histórias e não construirmos essa história, o fascismo, o ódio, a ‘cis-hetero-norma’ continuará a ser heroica”, arremata Erika Hilton, a vereadora mais votada do Brasil, surpreendentemente uma mulher trans, negra e periférica.

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Mulheres jornalistas superam dificuldades e levantam questões importantes para a sociedade

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Um estudo realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostrou que em 2021 49% das mulheres jornalistas sofreram ataques de gênero sendo desqualificadas com ofensas e xingamentos. No meio digital, o número sobe para 56,76%. Em uma área historicamente dominada por vozes masculinas, apesar das dificuldades as mulheres estão se destacando cada vez em maior número e trazendo à luz temáticas importantes para a sociedade.

Juliana Lofêgo, professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre, diz que a presença das mulheres está influenciando na cobertura de questões sociais, culturais e políticas. Para Lofêgo, elas têm desempenhado um papel significativo em destacar questões de violência contra mulheres e assédio, garantindo que essas problemáticas não sejam esquecidas ou minimizadas pela mídia. “Com o avanço do movimento feminista e as mudanças sociais, as mulheres jornalistas têm sido influenciadas a trazer à tona essas questões, mesmo que isso não tenha sido comum no início de suas carreiras”, complementa.

Consuela Araújo é jornalista formada pela Ufac e atua na área de assessoria de imprensa, ela relata que como jornalista mulher enfrentou estereótipos de gênero e discriminação ao longo da carreira, principalmente fora do jornalismo. Já no telejornalismo, outro campo onde atuou,  diz ter sido bem acolhida por colegas e pela comunidade, entretanto considera que a busca pela igualdade de oportunidades continua sendo uma luta constante. Araújo aconselha as futuras profissionais a buscarem aprimoramento, construir uma rede de contatos sólida e manter a paixão pela verdade e pela narrativa honesta. “Acreditar na importância do jornalismo local é essencial para contribuir significativamente para a sociedade acreana”, afirma. 

Servidora concursada do Estado, a jornalista Andreia Nobre relata que um grande desafio que enfrentou na carreira profissional foi quando se tornou mãe, pois teve que conciliar a maternidade e o trabalho. Ela acredita que esse seja um desafio para as mulheres em qualquer carreira e também para as que trabalham no setor privado.

Apesar das contribuições significativas das mulheres para abordar agendas importantes a serem discutidas na sociedade, a desconfiança em relação a sua capacidade profissional ainda é uma realidade. Ana Paula Melo, estudante do terceiro período do curso de Jornalismo, trabalha como estagiária no jornal Cidade Alerta, ela diz que percebeu que há um preconceito dentro da universidade pelo fato de ser uma mulher estudante de Jornalismo.

“Já vi algumas pessoas torcerem a cara num tom de desconfiança quando falo que faço Jornalismo. Alguns já dizem que somos compradas, e, às vezes, por ser mulher, dizem que ao invés de buscar informações, buscamos fofoca. Em rodinha de amigos, embora ainda seja estagiária, já fui questionada se algum político me paga para fazer matéria sobre ele. Será se eu não tenho capacidade para escrever sobre política? São reflexões que sempre me questiono, afinal, ser mulher é ter a sua capacidade sempre questionada”. Ela acredita que o maior desafio é alcançar credibilidade equivalente a dos homens e enfatiza a importância de inserir mais mulheres em posições de liderança nos veículos de comunicação. 

Texto produzido pelos acadêmicos Ana Caroline Santiago, Adriely Gurgel, Maria Eduarda Melo, Rian Pablo de Oliveira e Júlia Andrade. A produção faz parte da disciplina Fundamentos do Jornalismo.

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Integração dos povos originários na mídia é instrumento de luta e resistência

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Formação para juventude dos povos originários acreanos em projeto da Ufac alia luta por direitos com visibilidade na mídia 

Por Sarah Helena e Tácila Matos

A maior parte das narrativas que circulam hoje sobre a história dos povos originários é contada ainda através do ponto de vista colonizador, ou seja, não partem do olhar indígena. Desta forma, estereótipos e violências são passadas à frente, sem que uma reflexão seja feita.

Em contraponto, a comunicação indígena vem se fortalecendo cada vez mais nos últimos anos, dentro de mídias como a rádio, cinema, internet, redes sociais e imprensa, a fim de transformar essa realidade. 

O acreano Tarisson Nawa, pertencente ao povo Nawa, do Vale do Juruá, jornalista da Defensoria Pública da União e doutorando em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que apenas com a Constituição Federal de 1988 o estado passa a reconhecer as formas de governo indígena e, a partir daí, surgem várias organizações representando seus povos.

Com o nascimento e estruturação dessas organizações, bem como o maior acesso a tecnologias digitais a partir dos anos 2000, o jornalista diz que a comunicação se tornou uma área chave de atuação dos povos para reconhecimento de direitos.“E aí você vai ter alguns setores de comunicação sendo formados dentro dessas organizações indígenas para fortalecer e amplificar as vozes dos povos indígenas pelos próprios povos indígenas” acrescenta.

Ele também afirma que a inclusão no sistema de cotas foi fundamental para a entrada dos povos originários no ensino superior e a comunicação se beneficiou com isso. Mas ainda é pouco, visto que existem, segundo ele, apenas cerca de 30 indígenas jornalistas formados no Brasil inteiro. 

Como indígena jornalista, Nawa expressa seu desejo de que os povos originários deixem de ser apenas personagens das notícias e passem a ser os autores e fontes especializadas nas mais diversas áreas de profissão e que a partir dessa presença, as representações negativas na mídia se transformem em positivas. “O que a gente vê hoje, é uma atuação muito forte dos comunicadores indígenas para tentar superar essa deficiência na comunicação enfrentada pelos povos indígenas do ponto de vista profissional técnico”, diz.

“A comunicação indígena ganhou o mundo”

Rasu Inu Bake Huni Kui, professor e doutorando no Programa de Pós-graduação em Linguagem Identidade (PPGLI), acrescenta que “começou lá com os jesuítas, depois veio os antropólogos, missionários, sociólogos e várias outros pesquisadores, e entraram nas comunidades e começaram a escrever sobre os povos indígenas. Nessa época poucos indígenas falavam o português (…) E o pesquisador acabava entendendo do jeito dele”.

Apesar do contexto histórico de invisibilidade e estereotipação dos povos nativos nas mídias tradicionais, os comunicadores já reconhecem os avanços por eles alcançados e o início de uma mudança maior neste cenário.

Os alunos do projeto de extensão da Ufac, Comunicadores Indígenas, mantêm uma visão otimista da trajetória dos direitos e integração na mídia. Morador da Terra indígena Nukini, no município de Mâncio Lima, Unhepa Nukini afirma que “é necessário reconhecer que a comunicação indígena ganhou o mundo. Se você reparar, o Instagram, Facebook, tudo tem indígena trabalhando na comunicação”. Samsara Nukini concorda: “hoje o que eu vejo é que nós somos uma potência mesmo, nós todos, não só os povos indígenas, mas quem protege a Floresta Amazônica, quem é em prol desse grande verde do nosso Brasil”. 

A coordenadora do projeto, professora Juliana Lofego, do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (Ufac), pontua a centralidade do projeto: “Os indígenas são pouco representados na mídia tradicional, então, é um fortalecimento para a visibilidade fazerem comunicação a partir das vozes deles. Para terem essa consciência de que a voz deles é importante e que eles podem fazer a própria mídia”.   

O projeto propõe uma série de atividades formativas no âmbito da comunicação digital, a fim de fortalecer a juventude indígena, mais inclinada e ligada às tecnologias, para que possam usar diferentes plataformas como apoio nas lutas por direitos. 

Formação de Comunicadores Indígenas no Acre

Nos últimos anos a Comissão Pró-Indígena do Acre (CPI-Acre) tomou a iniciativa de fortalecer o cenário da comunicação indígena no estado. O projeto Curso Comunicadores Indígenas teve início em 2021, com idealização de Vera Olinda e Leilane Marinho, respectivamente, coordenadora e assessora de imprensa da CPI-Acre, e da professora Juliana Lofego, que oficializou o projeto de extensão na Ufac em 2022. 

As atividades começaram em dezembro de 2021, em meio a pandemia, com aulas básicas de noções da comunicação. A cada ano, o projeto adicionava novas oficinas, para desenvolver habilidades de redes sociais, fotografia, edição de vídeos, etc

A 4ª Oficina de Comunicadores Indígenas (2023) contou com a participação de 13 indígenas dos povos Manchineri, Huni Kuĩ, Yawanawá, Nukini e Puyanawa, das Terras Indígenas: Rio Gregório, Mamoadate, Kaxinawá do Alto Rio Jordão, Poyanawa, Nukini e Kaxinawá da Praia do Carapanã e contou com a colaboração da produtora paraense Na Cuia na assessoria às redes sociais.

A última edição, realizada em setembro de 2023, teve como objetivo a montagem de dois produtos: o Podcast Vozes da Floresta e a criação da Rede de Comunicadores Indígenas do Acre. O primeiro, com narração e trilha sonora feitas pelos próprios alunos, está disponível no Spotify e a Rede teve definição de diretrizes e confecção de perfil nas redes sociais disponibilizado na plataforma Instagram (links ao final). Além disso, também promoveu a mostra de audiovisuais indígenas do Acre, o “Cinedebate: vozes da floresta”, no bloco de Jornalismo da Ufac. 

Uhnepa Nukini foi um dos primeiros a participar do projeto, desde o ano de 2021, hoje ele já auxilia os mais novos, enquanto continua no desenvolvimento das ferramentas de comunicação. Ele fala que alguns, no início, eram tímidos, mas ao longo do tempo isso mudou. “A gente foi trabalhando isso (a timidez) aos poucos e os meninos tão se soltando, a gente vê isso, cada dia evoluindo mais dentro deles. E eles tão querendo trabalhar com comunicação, isso é bonito (…). A gente vê isso nas apresentações, no andamento dos trabalhos, no esforço de sair de territórios, que gasta quase dois dias pra chegar num município e depois pegar carro, avião, pra chegar em Rio Branco, deixando famílias lá”. 

Alunos participando da Oficina na Comissão Pró-Indígena do Acre. Foto: Sarah Helena

CPI- Acre também tem papel de estimular jovens indígenas nas lutas políticas

A jovem comunicadora, Samsara Nukini, da Aldeia Panã, Terra Indígena Nukini, chegou à CPI-Acre em maio de 2023. Além dos ensinamentos sobre comunicação e tecnologia, ela relata que somente após ingressar é que tomou conhecimento de questões políticas importantes como a tese do Marco Temporal, ação que tramitou no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF) e que diz respeito às condições para demarcação de territórios indígenas. A partir disso, Samsara Nukini viu a importância das manifestações também pelas redes sociais, já que nem todos poderiam reivindicar os direitos presencialmente em Brasília. 

O projeto está se expandindo para além do planejado. “A gente volta pro território, leva as informações, e vai lá e trabalha. Hoje tem a possibilidade de criar coletivos, hoje já tem o coletivo da aldeia da Messiany, que é Huni Kuin, ela tem o coletivo das mulheres e partiu desse projeto da comunicação. Hoje, dentro do território Nukini, a gente tá dando andamento na criação do projeto de comunicação da Saga Produção Território. É um grupo que a gente tá fazendo de juventude, são 16 participantes. Hoje é metade homem, metade mulher […]”, conta o aluno Uhnepa Nikini. 

Projeto proporciona troca de conhecimentos entre indígenas e não indígenas, “É um momento de sair da nossa bolha”, diz colaboradora do projeto

A estudante do curso de Jornalismo da Ufac e colaboradora do projeto, Ludymila Maia, afirma que sua experiência com os comunicadores indígenas lhe proporcionou esclarecimento, possibilitando que enxergasse outras realidades: “é um momento de sair da nossa bolha”. 

Ela reforça o quanto a rotina de trabalho e estudos na cidade nos prende a nossa própria narrativa e impede de olhar além, de enxergar as dores e causas daqueles que vivem uma realidade diferente. Além disso, ainda critica a sociedade, que tende a “olhar com maus olhos uma coisa que eles nem entendem”. 

Sobre isso, a professora Lofego afirma  sempre ter cuidado com a escuta, de tentar entender quais são as demandas e as experiências dos diferentes povos, para enfim, trazer um conteúdo para ser aplicado nas atividades do projeto. 

Nesta questão, ela tem como inspiração a CPI-Acre, já com 40 anos de experiência na educação indígena, com formação de professores e agentes agroflorestais, bem como no trabalho chamado de “experiência de autoria”, incentiva publicações didáticas, pesquisas, relatórios e audiovisuais indígenas, com valorização da línguas maternas.  

Cine-debate com o antropólogo Terri Aquino e a turma dos comunicadores indígenas. Foto: Ila Verus

O conjunto das oficinas de comunicação apresentou aos jovens indígenas participantes outras formas de resistir, de lutar e fazer incidência política, mostrando ao mundo sua cultura, suas causas e o cotidiano de seus territórios, através da internet, redes sociais e mídias digitais. 

Além disso, também apresentou aos bolsistas, colaboradores e professores, novas perspectivas e oportunidades de expandir seus horizontes e também aprender com seus alunos. Como disse a professora Juliana Lofego: “ é um aprendizado pra gente também, de entender que eles vêem uma comunicação muito mais conectada com a natureza, e que a gente, enquanto cidadão urbano, se descolou disso”. 

A jovem comunicadora Samsara Nukini reflete sobre a importância do projeto, “pra mim foi ajudar a proteger o meu território, ajudar como liderança, como usar a tecnologia, como usar um aparelho celular, como usar redes sociais em prol do meu território, em prol da ajuda dos povos indígenas.” 

Foto: Ila Verus

Redes Sociais indígenas

Rede de Comunicadores Indígenas do Acre- @comunicadoresindigenasdoac Comissão Pró-Indígenas do Acre- @proindigenasacre 

Coletivo dos Estudantes Indígenas da Ufac- @ceiufac 

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira- @coiabamazonia

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“Pacto Brutal” e o efeito da mídia em casos de intolerância religiosa

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Documentário relembra crime dos anos 90 pautado em preconceito ao considerar a religião dos acusados fator motivador

Por Gabrielly Martins

No cenário midiático, é possível observar como a forma de veicular notícias pode impulsionar pautas imprudentes e agravar crimes de intolerância religiosa. Uma análise crítica dessas ocorrências podem ser visualizadas no documentário “Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez”, lançado em 2022, que além de evidenciar uma tragédia pessoal, expõe o papel da mídia na reprodução deste problema.

A cobertura em cima do caso, sensacionalista, distorce os fatos ao apontar a religião de matriz africana do casal de assassinos como fator motivador. Ao destacar estereótipos e simplificar discursos, a mídia contribui para a criação de um ambiente agressivo à comunidade praticante de religiões afrodescendentes. 

O documentário é assertivo ao convidar para as entrevistas a estudiosa em religiões Rose Rodrigues, para falar sobre essas crenças, ritualísticas e a não ligação das religiões de matriz africana com o crime cometido. Ela reitera que estimular esse olhar de preconceito para o crime é, acima de tudo, tirar a responsabilidade dos autores e depositá-las na fé do outro. 

Rose Rodrigues, estudiosa em religiões, foi convidada ao documentário “Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez”. /Imagem: HBO MAX

 Preconceito e desrespeito

As manchetes do  mês dedicado à luta contra o crime de racismo e à valorização da história do povo negro, em novembro de 2023, foram marcadas por uma significativa incidência de casos de intolerância religiosa. Pedrinho, jogador do Atlético-MG e adepto do Candomblé, foi alvo de desrespeito e preconceito em comentários nas redes sociais, após uma derrota do time. A insatisfação com o resultado da partida pareceu motivar o comportamento criminoso. 

Para Laiela Santos, escritora e militante do Movimento Feminista Negro, em matéria para o site Cult, a demonização e a criminalização religiosa vem do que foi implantado na sociedade desde o período de escravização e exploração dos negros, o que gerou marginalização da cultura e fé do povo africano. O meio encontrado para sustentar esse manifesto sociocultural foi a anexação ao catolicismo, o que originou a Umbanda.

Segundo o IBGE, menos de 1% dos brasileiros praticam religiões como a Umbanda e o Candomblé, o que justifica o baixo conhecimento da população sobre essas crenças. Isso leva a um fato, o de que a população não busca informações sobre essas religiões, impedindo que a grande massa entenda os valores e costumes desses grupos, e que atos tão violentos quanto o que vitimou a atriz brasileira não condizem com a realidade.

O processo de catequização e evangelização estabelecido no Brasil pelos missionários europeus não destruiu as manifestações de resistência do povo afro-brasileiro, como os que levam a fé no Candomblé adiante desde a época da invasão dos portugueses. Isso mostra que o combate à intolerância não é uma característica particular do momento atual e reforça que a resistência deve se manter de forma primordial.

Para Cassia Iasmin Marinho, professora de História pela Universidade Federal do Acre (Ufac), pós-graduanda em Criminologia na Faculdade Venda Nova do Imigrante (Faveni) e integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi/Ufac),  mesmo neste espaço de resistência e diversidade, o preconceito velado ainda é recorrente no imaginário religioso de grande parte da população. “Para algumas pessoas, é mais crível se apresentados elementos obscuros para explicar uma ação que apesar de hedionda, é humana”, explica a pesquisadora. 

A pesquisadora ainda complementa que a sociedade dos anos 90 não se diferencia tanto da atual quando se fala do preconceito contra religiões de matriz africana, e salienta que há uma absurda discriminação por serem consideradas “do demônio” por outros grupos religiósos, somente pela crença de que realizam sacrifícios e demais  inverdades. “Tudo isso está ancorado em um racismo estrutural, que crê não haver problemas em demonizar manifestações religiosas de matriz africana. Pelo contrário, acham ser o certo”, finaliza.

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