Cotidiano

As crianças e as telas: diferentes perspectivas e consequências

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Reprodução/Veja

Para parte dos pais e especialistas, há uma forma saudável de interação da criança com as telas: supervisão de conteúdo e de horário, que vai depender diretamente da faixa etária do pequeno. 

Por Aldeir Oliveira e Maria Fernanda Arival

Você já notou seu filho ou sobrinho falando com um sotaque que mais ninguém da casa tem? Seus pequenos assumem uma postura e uma dicção totalmente diferente quando estão na frente das câmeras? Uma das brincadeiras favoritas deles é brincar de ser youtuber? Não são casos isolados e é cada vez mais comum entre os jovens dessa geração que nasceram com um celular na mão e são usuários de sites de streaming desde que aprenderam a usar seus polegares opositores para segurar o tablet ou smartphone.

É comum vermos crianças, cada vez mais jovens, com um tablet ou celular na mão, muitas delas até possuem seus próprios aparelhos, ao invés de pegarem emprestado de seus pais ou tutores. Essa movimentação ainda é mal vista na sociedade e ponto de discordância entre diversos especialistas. Mas é consenso que as atividades tecnológicas de nossos pequenos devem ser limitadas e, acima de tudo, supervisionadas. É comum ouvirmos que a internet é uma “terra sem lei”, o que não é verdade, porém, não é totalmente falso.

Em 2017, na sua plataforma Think With Google, voltada para a divulgação de dados relevantes aos profissionais de marketing, a gigante da informática revelou dados sobre seus usuários mirins, contabilizados através de um ano de uso do YouTube Kids, streaming voltado para o público infantil e com ferramentas de controle parental, tal qual escolha de faixa etária alvo, ativação ou desativação da ferramenta de pesquisa, dentre outras opções para ajudar no maior controle por parte dos pais. Os dados mostram que 80% das crianças entre 4 e 11 anos acessam o YouTube diariamente, sendo esses acessos distribuídos em quatro situações distintas: em seus próprios lares (81%), na residência de amigos ou familiares (60%), durante deslocamentos (49%) tal qual viagens de carro ou transporte público e na escola (38%).

Em um estudo publicado pelo periódico científico The Lancet Child & Adolescent Health e divulgado pela revista Veja, em 2018, o uso desenfreado de celulares, tablets e computadores pode vir a prejudicar o desenvolvimento cognitivo das crianças. A reportagem cita o pesquisador Eduardo Esteban Bustamante, da Universidade de Ilinois, dos Estados Unidos, para justificar tal afirmativa: “cada minuto gasto em frente às telas equivale a um minuto a menos de sono ou de atividades cognitivamente desafiadoras”. 

Para que o pesquisador chegasse a tal conclusão foram analisados os hábitos de aproximadamente 4.500 crianças norte-americanas, com idades entre 8 e 11 anos. Os fatores levados em consideração para a avaliação foram as recomendações de bem-estar para infância, tais como: dormir de nove a onze horas por noite, praticar, no mínimo, uma hora de atividade física diariamente e uso de eletrônicos por, no máximo, duas horas por dia. Também foram submetidas a testes cognitivos para avaliar memória, atenção e linguagem.

O uso excessivo das telas pode causar diversos problemas, entre eles a miopia. Reprodução/Vix

Mas há quem acredite que as novas tecnologias não devem ser temidas ou marginalizadas em relação às crianças, e sim devem ser abraçadas e integradas ao seu cotidiano, partindo de uma premissa de que devemos incorporar a evolução tecnológica, adaptando também a criação de nossos filhos. Não podemos negar o fato de que os dispositivos eletrônicos, no período pandêmico do novo coronavírus, mantiveram o mundo funcionando e aproximando as pessoas em isolamento social. 

Mas até onde o uso de eletrônicos pode influenciar os comportamentos culturais dos pequenos? Sotaques e dialetos são partes vivas, evolutivas e extremamente características de um local, formando a identidade de um povo para além de sua localização geográfica. E causa estranhamento ver uma criança acreana conversando com um sotaque sulista ou ainda com um mix de sotaques do qual não se pode identificar, usando palavras ou gírias que não são comuns, nunca proferidas em seus lares por seus pais, tios, avós, responsáveis ou tutores.

A professora do ensino fundamental Sueli Severino, 46, acredita que as ferramentas eletrônicas devem ser conduzidas para as crianças com cautela e, acima de tudo, voltadas para o aprendizado dos pequenos. “Eu não sou contra uma criança de 5 anos utilizar essa ferramenta que está sendo a sensação do momento. Porém, temos de saber como conduzir essa ferramenta para as crianças, até que ponto esta ferramenta está ajudando, principalmente, na área educacional”, declarou.

Mas a professora concorda que os eletrônicos mudaram radicalmente as interações infantis. “Crianças de 7 ou 11 anos não brincam mais de boneca, não brincam mais de rodinha, somente usam o smartphone”. Profissionais do ensino infantil acreditam que é importante que, em seus anos formativos, as crianças tirem também tempo para executar brincadeiras que estimulem a imaginação dos pequenos, criando menos tempo ocioso. O uso desenfreado do tablet ou smartphone traz brincadeiras prontas, que não estimulam os pequenos a usarem a imaginação e as ferramentas ao seu redor para se distrair.

O novo passatempo da última geração. Foto: Arquivo Pessoal Maryllia Gabriela

De acordo com a psicóloga Renata Campos, os efeitos da exposição prolongada às telas são diversos e já existem pesquisas que sinalizam os malefícios desse comportamento. “Os aparelhos não são de todo ruim, eles trazem conteúdos e processos de aprendizagem. Porém, o excesso de horas em frente às telas está relacionado a efeitos negativos, que vão de questões físicas à psicológicas”, explica a especialista.  Ela identifica que a criança pode desenvolver alterações do sono, de atenção, do sistema hormonal, no humor, até depressão ou ansiedade. “Há vários riscos de comportamentos disfuncionais no processo de pais não conseguirem monitorar o tempo de uso”, reforça.

Nos dias de hoje, muitos pais trabalham fora e precisam deixar seus filhos com outras pessoas da família e isso requer uma comunicação mais direta com a criança através de ligações ou aplicativos de mensagens como o WhatsApp. Além disso, durante a pandemia o ensino de forma remota também demanda o uso desses aplicativos para comunicação entre pais, alunos e professores.

Maryllia Gabriela, empreendedora e mãe de uma pequena de 7 anos, conta que a filha começou a usar o tablet aos três anos para assistir desenho na plataforma Netflix. Mas o celular foi dado apenas ano passado, quando a menina tinha seis anos. “Ela começou a usar o celular para se comunicar com o pai, que viaja muito. Nem sempre estou em casa com ela para emprestar o meu aparelho, além disso, preciso dele para trabalhar. Então, a solução que encontramos foi essa, mas desde sempre eu tenho monitorado o que ela faz e a quantidade de tempo que usa”, afirma.

As crianças em desenvolvimento tem um processo de apreensão do mundo em que capta as informações do meio externo e armazena, como se fossem esponjas, por isso, quanto mais acesso os pequenos têm ao YouTube, mais sotaques e gírias eles podem armazenar e colocar em prática. “No processo de desenvolvimento infantil, a criança busca aprender a partir dessas relações familiares e de amizade. Quando a criança é privada disso, elas acabam se relacionando com esses personagens na internet e se apropriam desses termos, gírias e sotaques. O mesmo que aconteceria com uma interação familiar ”, explica a psicóloga.

Para Maryllia Gabriela, as crianças devem ter supervisão dos pais sobre o que assistem e a quantidade de horas que ficam em frente às telas, principalmente no YouTube, pois nesta plataforma há muitos canais que podem chegar à elas através das recomendações do site e não são indicados para a idade. “Minha filha usa o celular por uma ou duas horas, com a minha supervisão. Ela tem um quadro com os horários dela e a rotina do dia. Quando era menor, assistia muitos vídeos no YouTube, mas sempre na televisão, para que eu pudesse ver também. E sempre que percebia comportamentos errados nesses canais, eu a proibia de assistir”, conta a mãe.

Como é uma realidade recente e há poucos estudos sobre o assunto, a comunidade que é responsável pelas crianças e adolescentes deve estar atenta aos prejuízos que a exposição excessiva de telas podem causar. Para a psicóloga: “nos próximos anos acontecerão mais pesquisas sobre essa temática importante e necessária.

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